Silvina Rodrigues Lopes. Uma lição de humildade e desacato

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Num livro (Inconjuntos, ed. Vendaval, Novembro de 2021) que talvez não pudesse senão ter passado inteiramente ileso face aos habituais registos de divulgação que, hoje, reduzem forçosamente as obras literárias a meros consumíveis, a autora desloca-se no campo da ficção, e, sem perder a força incisiva dos seus ensaios, vem sugerir-nos a paciência como sinal de uma radicalidade decisiva.

Todo o leitor trabalha a sua insatisfação, esse desacerto íntimo face à realidade que tem diante de si, alimentando o seu sonho a partir de vestígios ou ficções de modo a poder experimentar uma vida deslocada do presente, e longe também do tão decepcionante futuro que nos forçam a contemplar como um destino inescapável, e imensamente desolador. É difícil hoje apercebermo-nos onde começa a linha de um confronto decisivo quando parecemos ser perseguidos por uma irrealidade tão extensa que afecta tanto o narrador como o leitor. “Sente-se que o mundo se tornou pequeno, uma bola que acumulou energia até ficar pronta a explodir. Os abrigos subterrâneos, com as suas paredes adornadas, semeadas de imagens da lua, da rebentação das ondas, de uma sonhada ferocidade inicial, já não abrigam pessoas que buscam o ritmo dos tigres e das garças”, escreve Silvina Rodrigues Lopes. “A impaciência espalhou-se pelo escasso tempo livre, demasiado combustível, põe em perigo a vida e, sabe-se lá, tudo o resto. Mas não é o fim, nem sabemos o que é ser tarde, pois isso seria supor uma linha de progresso.”

Interessada nesse modo de inquirição que é próprio da poesia, esse modo de entrar numa relação que procura rasgar os véus e trocar a tranquilidade opaca do saber pelo espanto do não-saber, interrogando as imagens de mundo mais vezes reproduzidas num esforço de passar do conhecido para o desconhecido, Silvina não tem o menor interesse em reforçar o modo arrogante de quem pretende que tudo faça sentido, antes reconhece como a escrita passa por despedaçar-se, deter-se na finidade das variações que o instante oferece, e, sendo coerente com essa radicalidade suspensiva, publica os seus livros sem procurar impô-los como decretos imperiosos, preferindo libertá-los para a doçura de um imprevisto, para a atenção a outrem, não particularizado, não limitado.

Ossip Mandelstam diz-nos que o “discurso poético forja os seus instrumentos enquanto caminha e enquanto caminha destrói-os”. Importa sobretudo introduzir essa subtileza de quem desconfia do que já sabe, de si mesmo. Aquele que não mente, que não procura enganar, e que por isso mesmo está sujeito ao profundo desconforto da existência. Diz-nos Sergio Solmi que “os mentirosos e os fanfarrões são os únicos de quem talvez se possa dizer que verdadeiramente existem. A alma sincera extingue-se, torna-se diáfana para deixar passar os factos, as coisas anónimas e as realidades objectivas. Talvez cada pessoa tenha existência somente porque mente, adensando-se e concretizando-se na sua mentira.” Neste sentido, esta escrita corre seriamente o risco de se destinar à desaparição, e até mesmo de se desinteressar de toda a crueldade daquilo que está empenhado em vingar. Quem lê estes livros não sente que foram escritos para si, mas antes começa a pôr em dúvida a leitura como mais um dos tantos modos possessivos a que nos afeiçoámos. Pelo contrário, Silvina parece sentir sobretudo o apelo dessas “vozes que impregnam e estilhaçam a moldura a que por vezes se chama personalidade”. Distante de todos os poderes ou estratégias impositivas, estes são livros deixados à margem do tempo, desinteressados dessas urgências que procuram implicar-se naquilo que vai sendo lido ao abrigo dos esboços de historicização epocal. Esta escrita inscreve-se do lado de uma recusa perante as imposturas que permitem estabelecer os perfis dos nossos eminentíssimos autores, numa altura em que aquilo de que todos precisamos é de uma clareza diante da falta, de criar zonas de autonomia, pela abolição do ruído, pelo ganho que se obtém abrindo uma distância que nos permita estranhar inteiramente uma escrita, libertando-nos dos usos da sociedade literária habitual. Assim, este livro alimenta um tempo fora do tempo, essa distância, essa impossibilidade de coincidir com o rumor do mundo. “Quando lhe perguntaram ‘como se chama esta terra?’ descreveu-a sabendo que apenas se afastava. Era o horror das frases aceitáveis que se apoderava de si e lhe impunha a fuga. Na sua frente, um monstro ou insecto triturador ia engolindo o mundo em tiras e vomitava-o já moído, facilmente digerível, brando e informa.”

As instâncias implicadas no efeito da valorização de certas obras, limitam-se a forçar juízos inanes, elevando este ou aquele perfil, escritores cuja única função é reincidirem e, reduzidos a objectos de culto, respirar aquele ar de decomposição e reproduzir as mesmas noções estafadas, estando treinados para os processos de eterna reciclagem, hábeis nos seus contorcionismos, na expressão dos bons sentimentos, incapazes de se virarem contra si mesmos, de manifestarem algum desconforto por se acharem prisioneiros do sentimento do tempo enquanto uma ordem decrescente e que consome em si a vida. Na verdade, são incapazes de dizer seja o que for, não acedem àquele ritmo e comportamento vital distintos, não provocam qualquer desacerto, apenas reforçam o mesmo. “Os que deixaram de ouvir continuam a bater os pés com força, sem saberem que já não são ouvidos. O ruído atinge-os e converte-os em outros, uma praga de respostas pré-fabricadas.” Isto faz com que hoje, para quem exige o inesperado, não possa haver experiência mais desoladora do que assistir ou ler uma entrevista a um escritor. Parecem ser os últimos tipos de quem se poderia esperar algo que possa dilacerar-nos. Apenas sabem dirigir-se à multidão, e quase sempre de um modo que a reconforte ou reafirme as suas noções. Tudo são réplicas de um mesmo protocolo ou cerimónia exausta, sequelas desse enredo espectacular e que rapidamente degenera em cenas amorfas e degradantes para quem nelas se vê envolvido, procurando uma evidência faustosa, mas esgotando-se nos efeitos de fanfarra, num patetismo embaraçoso. “Parecia-lhe que acreditavam que estavam juntos e que gritavam isso mesmo para acreditarem ainda mais, para terem em que acreditar, uma vez que nunca tinham sido ouvidos, nem por deus. Era esse o problema, precisavam de gritar e eram excedidos pelo grito que deles se apropriava e se fazia medonho como uma imitação do todo-poderoso.

– Não procuravam o caminho directo do grito à violência. Era o caminho que vinha ter com eles, que lhes roubava o grito.

– No final, a linguagem técnica encarregar-se-ia de fazer o saldo dos prejuízos, os sociólogos falariam de tendências e a literatura exibiria didacticamente as perversões, se possível incluindo vestígios de apocalipse.”

Silvina indaga-se quanto à inércia e a monstruosidade próprias deste tempo, furtando-se a esses engarrafamentos, acidentes ou ajustes de contas daqueles que se especializaram na predição de catástrofes, esses maestros da retórica actual que se limitam a devassar as utopias do passado, envergando esse padrão do fácil pessimismo (“O fascínio pela catástrofe parece ser uma modalidade do fascínio pelo mais forte. Há aí uma rendição disfarçada”…), e, no meio disto, dos mil desastres que reforçam esta matéria densa e escura, identifica o perigo que representam esses que, na ânsia de se salvarem, como náufragos, se tornam tão perigosos. De um lado essa “estranha onda humana que se move como se fosse um corpo apenas, feito de milhares de olhos desvairados”, do outro, os náufragos. Para escapar a isto, a essa “tonalidade espalhada sobre o quotidiano que só deixa ver o amontoado de dejectos, lixo, indigências”, Silvina repudia o julgamento sem saída, o discurso desses que não percebem “a contínua modificação, e como tal os elos profundos entre liberdade, responsabilidade e amor”.

“Sentia que a vida se escapava naquelas expectativas tristes e que a previsão de catástrofes era o princípio da preparação delas, pois se a vida for orientada pelo possível e se a catástrofe for colocada como o mais provável, isso contribui para a sua ocorrência. Cada vez mais se lhe tornava claro que viver do possível era cercar-se, liquidar-se enquanto responsável pelo desconhecido. Então parecia-lhe que o insignificante, a perda de tempo, tinha de fazer parte da vida, contrariar a dependência da expectativa.

– A iminência é um modo do que vem, imprevisível, e por isso solicita que se olhe de outra maneira. Ela ocorre num movimento de saída do horizonte de possíveis. Há aí apelo a uma resposta que também não se consegue articular por completo, mas de que o sentimento dá sinal e que acontece poeticamente.”

Silvina reclama a força daquilo que se mantém fiel à sua desordem, inacabado, fragmentário, de algum modo inconciliável com todos os projectos de obra finalizada, a literatura que em vez de estender ou reforçar o imaginário procura corresponder a ânsias que lhe são exteriores, ficando obcecada com a monumentalidade, com o efeito esmagador dos seus enunciados. “Repara nestes papéis. A desordem permite lê-los sem encadeamento. Tudo neles é menos nítido e daí advém a serenidade do olhar que repousa sobre alguma coisa sem pretender contê-la, apenas para se deslocar entre o que está escrito e o que lhe vem do mundo.”

Diante dos modos de funcionalização, de eficácia e de aceleração que procuram dominar a espontaneidade da vida, de todo o aparelho de organização e de um sentido que busca uma aceitação passiva, cumpre à literatura interromper o ditado. “Não era um sentimento de arrogância, talvez uma vontade de deserção, ou de inadaptação à voz sintéctica dos altifalantes.” A escrita que hoje não deixar de se fazer sob o ruído que faz já parte da textura do nosso tempo, se tem conseguido criar a separação, se nos sujeita a um constante efeito de erosão, e diminui a “disponibilidade para seguir passos perdidos, imaginar figuras, ou sombras, que se movem ao longe sobre um fundo de luz variável”, se num ambiente como este fica claro que “a alegria tinha de ser sempre inventada”, uma vez que não está aí simplesmente à mão de ser colhida, é possível apesar de tudo, através dos muros, deslocar o olhar e pressentir mundos. “As suas formas suaves quebram a monotonia e auxiliam as coisas soterradas.” Quando duas pessoas se olham, algo de comum as atravessa, por um momento o feitiço parece ceder… “por exemplo, quando um olhar se cruza com o outro ambos deixam de funcionar como espelhos.” Do mesmo modo, também “as coisas, pessoas, gestos e acontecimentos lembrados em excesso tornam-se insuportáveis, desestabilizam”. Esse excesso está presente numa escrita à qual se pode pedir uma paragem, “um instante retirado à corrente do tempo”.

O próprio apenas emerge como algo desconexo. Tudo nos surge enquanto vestígio, escombros… “Os papéis que tinha em cima da secretária pareceram-lhe despojos de uma guerra.” Não é fácil dizer como chegámos a isto, mas é evidente como toda a nossa experiência se situa num além, como o que sucede a uma derrota. “Deixámos que o mundo nos fosse sendo roubado.” Passamos a língua pelo idioma e a sensação é a de sentir apenas estilhaços. Tudo o que se reflecte está desintegrado. E a memória é apenas essa matéria onde o fogo continua a lavrar. “O pior é que tudo era excessivo e não se sabia o que faltava. Talvez um método para se escapar à posição de espectador de si próprio.” Nestes textos, que se dão a ler como momentos de interrupção, cenas arrancadas à regularidade sufocante dos dias, vão aflorando significados complexos, alguma relação temível sob uma iluminação particular. Em lugar de um fraseado habilidoso e contínuo, contrariando a tendência para forjar um enredo, prefere antes dissipá-lo em reflexões mutáveis. Temos assim aquela escura dobra, e nesse modo de questionar-se, temos instantes, cenas que se sucedem num caminho alto e silvestre, onde as certezas se indispõem, o fundo vem à superfície, tudo estremece. …“era a perseguição do acaso em bocados de histórias como bocados de espelhos”…. Assim, tudo aqui nos olha, tudo nos chega a meio da vida como de uma frase. “É a potência do desligado”, para usar uma formulação de Rancière, “daquilo que nunca começou, que nunca este ligado e que pode carregar tudo no seu ritmo sem idade”. Esse esforço de ler quando a realidade se expõe da forma mais ilegível, procurando estabelecer “a relação justa entre dois longínquos tomados no seu máximo afastamento”. “O que pode ser captado como justo é a frase, ou seja, aquilo que se dá como antecedido por uma outra frase, precedido pela sua própria potência: a potência do caos fraseado, a da mistura flaubertiana de átomos, do arabesco de Mallarmé, do ‘sussurro’ original cuja ideia Godard toma de Hermann Broch”, prossegue aquele filósofo francês. Trata-se de inquirir ou mesmo romper com o contexto, converter a morte num olhar, tendo claro que o que possa resultar desse empenho é uma forma de lacerar a existência, de se ferir a si e ao mundo, na percepção que dele se constrói.  Ao abrigo desta atitude crítica, a leitura transforma-se num contacto com o além. Como se a escrita estivesse a encenar, contra um fundo fascinante de ausência, semblantes de frases, restos de linguagem. O mundo deve assim ser resgatado através de um trabalho de restituir o frágil fio da voz humana, um antigo encanto. “Há muitos anos, pensava, as palavras terão trazido imagens vagas, sentimentos suaves, um terror longínquo. Hoje, são usadas como moeda, atiradas sem cuidado, não se duvida da sua eficácia e não se quer mais nada, o encantamento foi classificado como um fenómeno primitivo e já extinto.”

Se Bataille asseverava que é necessário escolher entre a recuperação da intimidade e a acção no mundo real, Silvina Rodrigues Lopes parece acreditar que a acção mais transformadora nos nossos dias seria recuperar a intimidade, a meditação, o próprio gosto do tempo enquanto relação interior. “ O frágil fio da voz humana permitiu-lhe seguir como se cantasse, sem mexer os lábios, trouxe-lhe uma memória que ignorara até àquele dia. Viu que noutras praças havia velhos que dividiam o seu destino com o das pombas.” É nestes lugares, entre todas essas dimensões que compõem as vidas que, de acordo com os mitos modernos, nem parecem ser dignas de ser vividas, é aí que está a margem para um sentido ulterior. Não uma homogeneidade, uma direcção firme, antes uma lealdade às experiências, à atenção que, do mesmo modo que se dispersa, ganha definição, decide-se por isto, e depois por aquilo… Nesses momentos de suprema intensidade vital, intervém uma repentina separação entre nós e nós, uma espécie de desdobramento” (Sergio Solmi). Desembaraçando-se dessa ansiedade de provar ou dramatizar a sua existência, esta é uma escrita que acompanha essas existências quase clandestinas. “Algumas mulheres cantavam muito baixo e esse era um pequeno sinal de tenacidade, um frágil fio que iria resistir até ser pisado pelas rodas dos camiões que viriam para os levar para outro destino.”

“Não posso escrever mais alto”, anotava Herberto Helder, falando nesse tão exigente ânimo que fazia com que as formas, interiores, se transmitissem, assaltando tudo. Silvina escreve o mais baixo possível, sem abrir mão do mesmo poder de indisciplina, mostrando-nos como a linguagem é uma promessa que alguém faz a si mesmo: “aquele que fala está à espera de si no fim da frase; a palavra é construção, empreendimento; o octogenário que fala é tão louco como o octogenário que semeia” (Sartre). Renunciando aos pronunciamentos enfáticos, aos desenvolvimentos ordenados, à ideia de uma construção ou narrativa regular, que se enriquece progressivamente, Silvina prefere desconjuntar, exprimir-se por meio de intuições, sobressaltos. Esta escrita é essa ferida que se abre por si mesma, a tal ferida do pensamento que busca o seu curso entre pontos de singularidade, ali onde é possível ultrapassar-se, abrirmos mão da nossa necessidade de segurança, das nossas certezas possessivas, dos nossos pequenos desgostos e dos nossos longos ressentimentos. “Inconjuntos” é uma obra cheia de uma paciência extraordinária, de um estranho optimismo num tempo que parece inteiramente reservado ao veneno. A sua benevolência mostra-se provocadora, sugerindo que faz mais sentido publicar livros em tempos de guerra, quando tudo parece desesperado, e não para vir desmentir os mil desastres ou o desejo de vingança e ressentimento que explodem quase por todos os lados, mas como ainda é possível iludir-se a distância infinita, lembrando como esta “é incitação de abertura, relação com o outro que se não regula pela existência de provas”. Lembra-nos como “a paciência vem do fogo invisível, aquele que ardendo sempre volta repetidamente como o verão, como as laranjas”, lembra-nos como a escrita nasce desse desejo de superar estes regimes de separação: “Em todos os quartos se poderá sentir subitamente o desejo de enviar mensagens secretas ao longo das paredes. Atravessando corredores, passando pelas enfermarias e pelas salas de audiência.”

O alcance da derrota depende da extensão dos efeitos da guerra que nos foi feita ao nível da intimidade. Se há uma grande perda de fé no poder da linguagem, assinala como, estando a memória em fogo, há que resgatar o que for possível, e isso mesmo é um acto de rebelião. “Não, não conseguia representar como se não existisse. Às palavras só podia dar o seu corpo. Arrancava-se dele, abrindo umas feridas e sarando outras.” Este processo tão antigo, a escrita que é capaz de destruir a voz, de nos fazer descer a um nível mais profundo e comprometido, subterrâneo, este é o grande factor de resistência, e ocorre nessa “síntese de confiança e incerteza”, permitindo que os nomes abram “os discursos e o mundo àquilo que excede o conhecimento, as apostas, as provações. E talvez por isso os testemunhos são sempre humildes, endereçados e para além de qualquer endereço”.

Num momento crítico, parece que cedemos posições por nos agarrarmos à certeza da nossa condenação. Mas como nos diz Bataille, “aquele que já sabe não pode ir além de um horizonte conhecido”. A este que insiste em afirmar que tudo está perdido, esquece-se como sempre aqueles que transformaram o mundo partiram de uma situação de desvantagem. “Ninguém lhe disse que os monstros vinham da fuga ao tédio. Como só pensava em defender-se, deixou-se atacar, por tudo e mais alguma coisa. Apenas atirava pedras ao inofensivo: ao cantar das aves, a si, às nuvens e aos que coravam na sua proximidade.” Apesar de tudo ainda temos essa promessa feita pelos nomes. “Era assim a vida das pessoas. O nome inesgotável de cada coisa salvava-as da monotonia e permitia que tudo se desse a ver como um amigo de há muito tempo que, quase desconhecido, vai voltar a casa.” Assim, é precisamente onde todos os meios parecem faltar que os nomes assumem essa força de desacato, que se insiste nessa correspondência, nessa desenfada liberdade de antecipar uma outra relação, um modo de se restituir ao mundo, “o que está por vir e existe desde sempre nessa maneira”. Se nos foi declarada guerra, se tudo ao nosso redor parece dominado pelos efeitos de devastação, se mesmo aqueles que se servem da elegância dos versos apenas para ornar o seu pavor de um cada vez mais vago efeito de escândalo, deixando-nos a sua expressão como uma casca abandonada, é numa voz como esta, com toda a sua cautela e humildade, que encontramos um dos discursos mais radicais e que é capaz de nos restituir a esses elementos de desacato e resistência que definem o que é verdadeiramente ser humano. Lembrando que, se não podemos ser outros, “podemos falar de outra coisa, abandonar as prisões definitivas sem sair delas completamente”, mesmo mortos. Mesmo aí ainda podemos tanta coisa.