Há situações em que é quase impossível negar a existência de linhas invisíveis do Destino. Logo a seguir a ter estado, pela primeira vez, com o crachá de ouro da Polícia Judiciária, encontrei, também pela primeira vez, o famoso ‘Grelhas’ do bas fond tripeiro. Disse ao antigo paraquedista na Guiné tornado taxista que tinha acabado de almoçar com Teófilo Santiago. «Ah, bom! Nós chamamos-lhe ‘O’ Santiago. Um gajo duro, mas justo!».
A dureza e o sentido de justiça não são as únicas características que aproximam o inspetor da PJ e o comissário criado por Georges Simenon. Tal como Maigret, Santiago, além de duro, pode ser bem humano (em certos casos até ‘lamechas’), não é corruptível, dedica-se em absoluto ao trabalho, prefere o terreno ao gabinete (‘o rés do chão ao 10.º andar’), absorve atmosferas do crime como uma esponja e, além de excelente leitor de homens, possui um apuradíssimo instinto de caçador. Acresce ter qualidades de comando que o fazem criador de uma lealdade granítica entre os grupos que lidera, cujos elementos instiga a competirem entre si com o objetivo de se superarem não só individualmente, mas também enquanto coletivo. Se Maigret tem os seus Janvier, Lapointe, Lucas ou Torrence, também Santiago tem os seus António Medina, Carlos Barata, António Veiga, Rui Valadares, Margarida Maria e outros. Na Polícia Judiciária, referem-se a eles como ‘os do T.’, o que deixa o grande inspetor, que despreza a manha da falsa modéstia, abertamente orgulhoso. Também na PJ se diz dele que tem “bruxedo”, que atrai os casos mais fortes.
Da ‘7.ª ligeira’ à Operação Face Oculta
Escrito a duas mãos, num tandem que alterna uma muito rica autobiografia profissional com excelentes quadros político-sociais, este livro de Teófilo Santiago e Eduardo Dâmaso deixa-se ler como um romance. Como um romance de traço policial-político em que não são poucos os capítulos que se percorrem com um prazer ávido. As duas linguagens são escorreitas, tendencialmente mais literária a de Dâmaso; o conhecimento dos assuntos é claro e seguro; vasta a informação de primeira água; e, ao contar, não falta ritmo, terminando a obra num arrebatador gran finale.
Pelas mais de duzentas páginas de Insubmisso-Memórias de Um Polícia, passa um Teófilo Santiago que chefia operações quer contra o crime violento quer contra o crime económico. Prefere, de longe, tal qual Maigret, investigar o crime violento, mais rente à vida, com mais ação que relatórios, papelada. Nos assaltos à mão armada, contrabando de tabaco ou tráfico de droga destaca-se a ‘Aveiro Connection’ e nela uma obra prima de engodo policial. Numa margem do Rio Novo do Príncipe, lugar alternativo dos desembarques de uma praia de grande atividade criminosa, Santiago põe dois investigadores a viverem uns dias numa carrinha velha. Tornam-se parte da paisagem. Certa noite de descarga de produto na praia, os contrabandistas, perante a chegada em grande estilo de carros da PJ, fogem para o rio. Os dois homens da velha carrinha chamam por eles, oferecendo boleia. E os fugitivos acabam por ser depositados na sede da própria polícia da qual fugiam. Com as operações e rusgas, com a aventura, o jovem Santiago sente-se viver no máximo, nunca se cansando, por exemplo, do ‘anúncio da praxe: Polícia Judiciária, acendam as luzes e desliguem a música, toda a gente de pé, mulheres para um lado e homens para o outro’.
Como caçador de foras da lei, Teófilo Santiago passa noites e noites sem dormir. As famosas ‘noites FM’ são de boa colheita de bandidos. Alguns revelam ter um código de honra, muitos são ‘belas peças’, puros bandalhos, e um, em especial, particularmente maldoso: o Setúbal. Este canalha gosta de deixar a sua ‘marca’, como diz, ao rasgar bocas com uma faca, criando jokers, como o personagem do filme de Batman. Desde a pequena à média e à grande criminalidade, por piores que tenham sido os crimes, Santiago não permite que se bata nos detidos, a não ser quando se tornam violentos, aí recebem logo um calorzinho para acalmar. Entre os criminosos que passam pelas suas mãos contam-se contrabandistas de tabaco de alto coturno como ‘o clã dos Serafins’, de Cascais, ‘Lagostas e ‘Patriarca’, de Peniche, ou tipos ligados ao El Viejo galego. Raiano de Trás os Montes, o inspetor da PJ, em rapaz, ouve histórias de contrabando que o fascinam; em adulto, dir-se-ia que a linha, neste caso reta, do Destino põe-no bem dentro dessas histórias.
Por esta altura tem um cão de nome Elvis e a sua música favorita é Jailhouse Rock.
Entre Coimbra, onde cedo cria uma reputação de excelência com a sua ‘7.ª ligeira’, e a célebre ‘Operação Face Oculta’, Teófilo Santiago, passa pela Madeira (e prende um procurador da República), pelo Brasil (lida muito mal com um idiotizado inspetor anti-português no famoso ‘Caso Militão’, onde seis empresários, em vez da orgia prometida por uma ‘Noite Cinderela’, acabam enterrados vivos, na praia, em Fortaleza), Leiria (mais contrabando), Lisboa (com a ajuda do FBI, prende Pedro Caldeira, um Dona Branca chique que ‘dá ao slide’ para os EUA) e Porto (orienta a ‘Operação Apito Dourado’ que aperta um Pinto da Costa a cheirar a ‘fruta’ e, despoletado por um caso de má droga que envolve Bob Dylan e o pobre diabo Nelo Rabicha, desmantela o Pelotão de Intervenção da PSP corrompido de alto a baixo).
A estrondosa ‘Operação Face Oculta’ só foi possível por não ter sido gizada na capital, onde as malhas que a política tece a teria travado, mas na limpa Aveiro. A operação começa de facto com a descoberta do sucateiro Godinho a ‘tourear o fisco’ e a oferecer gordas peitas a diretores de empresas públicas e saborosos robalos a Armando Vara (que, curiosamente, tem ascendente sobre Sócrates). É a partir destes dados caricatos que Teófilo Santiago e António Veiga, Rui Carvalho, Carlos Barata, Miguel Afonso, Vítor Marques, Benjamin Monteiro, Filipe Soares, Anselmo Soares e Adolfo Santos, ‘usando telemóveis exclusivamente utilizados nessa investigação’, destapam ‘uma multinacional do crime, como diziam os próprios arguidos’. Os corruptos, além de Salgado, o grand seigneur que, na realidade, não passa de um grande patife financeiro, são basicamente membros do Partido Socialista. Com a infiltração do PS ‘no aparelho do Estado, ao mais alto nível’ e as respetivas vigarices postas a nú, militantes rosa como ‘António Costa, Vieira da Silva, Ferro Rodrigues e muitos outros’ reagem apostando ‘em partir a espinha ao Ministério Público’.
Na criminalidade económico-financeira de envergadura, o crachá de ouro da PJ reconfirma que sapatilhas não são sapatos. Ao contrário do bandido de pistola ou navalha, é quase impossível meter o ‘gravatinha’ de colarinho branco na prisão. Com um processo penal supergarantístico, excesso de formalismo dos tribunais e advogados hienas hiperlitigantes, todos os expedientes dilatórios são usados para manter aberto o ciclo decisório e a liberdade do corrupto. A Lei é igual para todos, mas a Justiça não.
Por esta altura o cão de Teófilo Santiago é um golden retriever, de nome Bond.
Um vibrante documento para a História
Mais de trinta anos como polícia de investigação deixaram a Teófilo Santiago muitas boas memórias, mas também algumas más recordações. As boas memórias vivem dos êxitos alcançados, dos seus operacionais e dos Diretores Gerais da PJ José Marques Vidal, Mário Mendes e Santos Cabral.
No que tange às más recordações, além da perda de inocência com a ‘Apito Dourado’ e da queda na amarga descrença total com a ‘Face Oculta’, também más são algumas relativas a hierarcas e aí avultam Adelino Salvado, um surreal amanuense de Durão Barroso, ou um Fernando Negrão destituído do sentido da realidade do mundo do crime. Adepto de investigações a começar pelo ‘10.º andar’, com agentes engravatados e licenciados que evitam o submundo da noite e seus informadores entre prostitutas, chulos e pequenos traficantes, Negrão alterna tretas puras com puras tretas. Numa clara indireta a Teófilo Santiago, afirma que na PJ «não há vedetas». Pretende ser ele a única vedeta, mas acaba corrido por certas ligações à Maçonaria e Universidade Moderna. Depois dos sucessos contra a venalidade do poder político que infeta e corrói o país, Teófilo Santiago, na sequência da ‘Apito Dourado’ recebe a vingança do ‘Sistema’ sob a forma da despromoção em oficial de ligação para Cabo Verde. Não a encaixa. Resta-lhe a reforma antecipada. Mas sabe bem que deixa uma marca indelével de superior eficácia na sua Polícia de sempre.
Pelo retrato abrangente e fiel da crueza do crime violento e dos maiores processos de corrupção em democracia, pela muito interessante descrição do funcionamento da PJ ou pela educativa amostra dos peganhentos jogos do poder político sobre a Polícia Judiciária, este é um livro de resultados amplamente vitoriosos. Eduardo Dâmaso, alentejano de Odemira, jornalista da curta elite mediática que não se vende, e Teófilo Américo Santiago, transmontano de Poiares, um servidor do Estado não apenas exemplar, mas, tal como Jules Maigret, um polícia de alguma espessura lendária, ergueram sobre bases sólidas uma obra indispensável. Não é aventureirismo afirmar que Insubmisso-Memórias de um Polícia ficará como um imperecível documento histórico