Através do deslocamento de lugares comuns, de frases feitas, tecidos com o rigor poético de um trabalho vagaroso e cuidado, Blaisten mostra-nos como os sujeitos se contorcem sobre esse magma que é a sua existência, como se construíssem uma pequena película sobre a qual se equilibram, ou, por vezes, como um saco que enfiam na cabeça e os asfixia lentamente.
Caso algum imbecil, cego de si mesmo, ainda duvide que vivemos arredados de todos os paraísos, que observe como se comportam os homens à sua volta. No meio literário, a imagem de um bando de exaltados, ansiosos por se salvarem pela saudação pública, é demoníaca que baste. “Estamos na terra, é sem remédio”, é um lugar opaco, múltiplo, que se subtraí a todas as cartografias. Apesar destas serem traçadas sobre o original e de se amputar sem piedade o que fica fora do desenho. Em Sodoma, segundo a lenda, na altura do velho testamento, usavam uma cama onde deitavam os estrangeiros. Se fossem curtos, esticavam-nos, se fossem grandes cortavam-nos pelo tamanho certo. Assim se faz ao planeta, para que se ajuste ao projeto que lhe impomos. São cada vez maiores as áreas a apagar, a cobrir, a fazer de conta que não é gente quem aí vive. O modelo já não é a “cidade de Deus”, mas o de uns poucos que se vão tomando por tal. Nas letras não faltam anjos que elevam a voz para os salões das divindades. Em 1949 Cyril Connolly escrevia “Soou a hora de fecho nos jardins do ocidente e daqui para a frente um artista será julgado pela ressonância da sua solidão ou pela qualidade do seu desespero.” Decorridos setenta anos quem se meter à escuta dos rouxinóis concluirá que voltaram a abrir as portas, mas são estufas artificiais no meio de um planeta infernal. Isidoro Blaisten, que nos chega agora pelas mãos da Maldoror, não tinha dúvidas sobre a origem da literatura, se alguém a tinha inventado, teria de ser o diabo. Não o falso mafarrico que se senta à espera de adulações, mas o que o Forte chamava “bom artífice”. Que outro nos poderia ajudar a sair dos carris? Talvez o ardiloso seja o melhor guia para descobrir onde viver, já que, conforme as escrituras, apenas Deus sabe onde vamos morrer. Este deu-nos a palavra, mas deixou-nos sozinhos com o presente envenenado. Um dom que acabaria por nos esburacar e fazer do mundo um deserto sufocado de miragens. “Para o olhar de Deus, que atravessa as aparências sem se deter nelas, não há romance, não há arte, porque a arte vive de aparências. Deus não é um artista.” diz Sartre numa crítica a Mauriac. Já no que toca ao Diabo… foi ele quem nos contou a primeira história, entre as ramas da árvore do conhecimento, uma história de poder e inveja, carregada de consequências, como as boas histórias para os leitores sensíveis.
Isidoro Blaisten, nascido em Concordia a nordeste de Buenos Aires é um dos grandes escritores argentinos da segunda metade do século passado. O seu discurso de receção na Academia Argentina de Letras começa assim: “Cada leitor pode fazer a sua própria seleção, mas não há dúvida de que Borges, Roberto Arlt, Marechal, Silvina Ocampo, Cortázar, Bioy ou Denevi, todos se destinaram a uma destruição. Todos eles se propuseram a destruir o solene.” Apesar de ser difícil etiquetá-lo sem deixar um membro de fora, há, no entanto, como ele próprio lhe chama, um denominador comum a reger a sua obra, a poesia. Quando lhe perguntaram porque só escreve contos, respondeu: “pela mesma razão que Faulkner. Ele dizia que todos os romancistas querem primeiro escrever poesia, descobrem que não conseguem, e depois tentam o conto, que é a forma mais exigente depois da poesia. E, não conseguindo, começam a escrever romances. Eu não consigo escrever romances, mas o denominador comum é a poesia.” Este pudor perante a exigência poética é vivido pelo contista por um trabalho lento de atenção à palavra. O livro “Dublin a sul”, que nos chega numa tradução cuidada de Miguel Filipe Mochila, é uma pérola no meio da longa tradição de contistas argentinos.
Há um pequeno aforismo de Cioran que diz: “Ser é estar encurralado.” Encurralados nas suas expetativas, nas frustrações de um ideal inalcançável, naquilo que julgam ser o real, os miseráveis de Blaisten estão quase sempre bifurcados entre o que lhes acontece e aquilo em que acreditam, escravos de desejos que os invadem e destroem, como se habitassem duas histórias em simultâneo. Em comum, uma cidade, não menos fantasmagórica, um lugar estilhaçado pelo ideal diabólico da produtividade. Mas a loucura, onde são forçados a caber como na cama de Sodoma, é uma esquizofrenia difusa de se tomarem por seres isolados e à cidade por um mero cenário. Esta visão estanque, do sujeito com as suas propriedades, acaba sempre por chegar a um momento de rutura, de dúvida, uma altura onde as histórias se quebram como uma barragem de pequenas frases entrelaçadas. “Atravessado desde a infância por fluxos de leite, de cheiros, de histórias, de sons, de afetos, de cantilenas, de substâncias, de gestos, de ideias, de impressões, de olhares, de cantos e de comida. Aquilo que sou? Completamente ligado a lugares, sofrimentos, antepassados, amigos, amores, acontecimentos, línguas, recordações, a todo o tipo de coisas que, obviamente, não sou eu. Tudo o que me prende ao mundo, todos os laços que me constituem, todas as forças que me povoam não tecem uma identidade, como me incitam a apregoar, mas antes uma existência, singular, comum, viva, e de onde, aqui e ali, de vez em quando, emerge esse ser que diz ‘eu’” (A insurreição que vem – Comité invisível). Através do deslocamento de lugares comuns, de frases feitas, tecidos com o rigor poético de um trabalho vagaroso e cuidado, Blaisten mostra-nos como os sujeitos se contorcem sobre esse magma que é a sua existência, como se construíssem uma pequena película sobre a qual se equilibram, ou, por vezes, como um saco que enfiam na cabeça e os asfixia lentamente.
Outra tradução possível do aforismo de Cioran seria: “Ser é ser encostado ao canto.” Um lugar onde os ecos se multiplicam, se repetem, onde tudo parece já ter sido ouvido algures. Uma frase na boca de outra personagem, noutro contexto, torna-se outra frase, mostra outra cidade. Tudo parece já percebido, já visto, mas, no fundo, não está. A ambiguidade vem transtornar a forma como as coisas estão dispostas, aquilo que podem ser. A sabedoria de bolso, as frases feitas, que ao burguês servem como uma espécie de consolo, para “Os Tarmas” são um conhecimento de sobrevivência, uma ferramenta preciosa que juntamente com o saber dos costumes lhes permite passar de um espaço para o outro. Têm um conhecimento desesperado da cidade. Apenas um método rigoroso não os desmascara. Numa forma de funambulismo percorrem a cidade sobre um fio. De certo modo, são os únicos que aprenderam a respirar enquanto estão encurralados, que reconhecem a sua fragilidade, e por isso se apaixonam e fazem laços na inquietude. Têm um saber aprimorado das passagens, do que impede essas passagens, de como as almas mortas dos porteiros pretendem manter o mundo imóvel. “Devo aclarar que os porteiros são a maior porcaria que Deus pôs à face da terra. Farejam-nos à distância, têm alma de rato. Como não têm berço, são servis e melindrosos.” O gozo, o acaso e a invenção pertencem aos marginais, que entre os objetos ao abandono, junto ao que cai do universo plano dos abastados, se desviam do caminho e o incorporam no seu desejo, passam o desejo como uma agulha pelas possibilidades estreitas que os rodeiam. Para Hegel é o escravo quem goza da consciência do corpo, quem através do seu trabalho conhece o objeto como ativo, enquanto o mestre está condenado a não o ver senão na sua passividade.
O conto “A felicidade” é a história de uma condenação. Do logro que é a petrificação do desejo no capitalismo. Expulsos de casa e do trabalho, depois de anos a penhorar a vida numa mesma aposta. Com a vertigem do dinheiro a capturar a criatividade como um vórtice, “Eu, que sempre me caracterizei por inventar coisas, comecei bem.”. Após falharem inúmeras vezes no único caminho que o liberalismo permite. Quando se encontram na rua, como se de um pensamento mágico se tratasse, “não o queríamos verbalizar, mas à medida que caminhávamos pensávamos no mesmo: uma nova sociedade.” Deste encontro de almas gémeas que não duvidam um segundo do que realmente lhes interessava, iria nascer “a felicidade”, uma empresa que venderia o que encontra perdido pela cidade. Mas seja qual for a novidade, tudo está previsto na organização liberal e o resultado é inevitavelmente o mesmo. “Quando a constatação positiva dos factos sociais não é contrariada pela “negatividade” de um princípio crítico oposto, o estado atual das coisas é configurado, pensado e vivido, como insuperável. Uma sociabilidade incapaz de julgar o presente do ponto de vista da sua mudança é uma sociabilidade culturalmente paralisada e, portanto, imutável.” Berardinelli. Mas ao chegarem onde queriam, seriam felizes? As mulheres não eram, e eles respondem com a face mais conhecida do poder, o desprezo. Agora que as possibilidades eram tão largas como o rabo do diabo, de onde Lutero dizia ter vindo a humanidade, nunca mais tinham de olhar para o chão, e, como escreveu Pavese, não veriam como nasce a rã debaixo da chuva do verão.
“Ser é estar encurralado” dizia Cioran, apesar das várias modalidades de “não ser” que fazem com que os miseráveis escapem a este bloqueio ontológico, basta prolongar uma tragédia para que esta se transforme numa comédia, diz um amigo de Isidoro. Convencido ou não que o mundo terminará em agonia, uma das formas de me libertar do seu discurso unívoco é o humor. “Grande entre os homens e de grande terror é o poder do riso, contra o qual ninguém na sua consciência se encontra inteiramente armado. Quem tem coragem de rir, é dono do mundo, quase como quem está pronto para morrer.” Leopardi, pensamento LXXVIII. Rir é uma das maneiras de libertar o objeto do seu significado literal, de o abrir a outras possíveis realidades que transgridem um reconhecimento único e imediato, diabólico pela sua divisão. O riso que por todo o lado se quer domesticado, diminuto, cómodo, que não perturbe, é para Blaisten uma forma de piedade, “como essas tias gordas que todos temos, que se mantém afastadas dos velórios porque se riem dos mortos.”
O conto “o tio Facundo” permite outra leitura do aforismo, neste caso, um sitiamento colectivo. Toda a família está afincada num modo de ser, presos num discurso, em máximas que herdam sem questionar. Acumulam dizeres como quem constrói um caixão, tábua a tábua, como se assim conseguissem aprisionar o que há muito se escapou. Blaisten apresenta-os sem nos dar nenhuma descrição, apenas nos diz o que costumam dizer, um inventário de frases mais ou menos redondas, saberes comuns que poderiam ser ditos por outra família qualquer. No entanto, algo misterioso acontece, sem sabermos mais nada destes personagens. Tornam-se mais sólidos do que a casa, conseguimos vê-los, apenas através do que dizem. Ocupando uma geografia comum do pensamento, aparecem de súbito como as grandes pedras de granito no Alentejo. Enquanto ao tio, dúctil, quase líquido, temos dificuldade em situá-lo. Ele, por se escapar à imobilidade, é visto como o que traz o mal para a família. No entanto, quando aparece, desponta algo similar ao jovem dionisíaco em Teorema de Pasolini, todos se apaixonam por ele. Mas, ao contrário da família do filme de Pasolini, onde cada elemento sofre a sua paixão e as suas consequências segundo a sua individualidade, a família do Tio Facundo, assombrada por essa imobilidade coletiva, reage coletivamente. Os gigantes calhaus ao serem tocados pelo vento da paixão esborracham o tio impiedosamente. É de uma absurda coerência que este tenha sido emparedado na casa onde a família vive.
“Ȇtre, c’est être coincé”, mas quem é que pode dizer que é? O diabo folga, baila, nesta fragilidade, toda a sua força está no parecer. Nós quando julgamos ser, já cá não estamos, e, como “Vitorzinho, o homem oblíquo”, vamos para beijar uma rapariga e acabamos agarrados a um velho ou a uma árvore. O real escapa-se, sacode-nos e desaparece. Entramos como podemos na convenção da realidade, algures entre o paraíso perdido e a terra prometida, como diria Blaisten. Num limbo onde os que mais aparecem se exaltam na sua individualidade, bojudos de um histerismo alegre, rouxinóis de estufa. Aqueles que, dizia Cioran, privados de melancolia não conseguem senão arrotar.