Um novo paradigma de habitação básica participante

O exemplo do Bairro D. Leonor (2014-2018)

Em Portugal a discussão pública em torno da habitação está demasiadamente centrada numa visão dicotómica e ideológica entre a municipalização da habitação e o mercado imobiliário. Os governos destes últimos 30 anos abdicaram de fomentar um programa de habitação pública e privada através de regulamentação e de planos mobilizadores. As propostas foram sempre em benefício da aquisição e da liberalização em mercado urbano tutelado pelos interesses imobiliários e financeiros. Ao Estado coube a promoção da aquisição de habitação através de linhas de crédito ou de isenções fiscais na redução do IVA para as obras de reabilitação e construção de habitação, com a isenção do IMT e IS jovem, com isenções nas ORU`s e ARU`s. Uma espécie de paraísos imobiliários onde reinou a total ausência de regulação e de interesse público ou colectivo. Aliás, alocado ao PRR estão cerca de 3,5 mil milhões de euros para promoção de habitação desde reabilitação e construção, apoios a renda e eficiência energética. Estamos a falar de uma soma muito significativa de recursos financeiros que podem traduzir-se num grande fiasco em termos de oferta de qualidade arquitetónica. Os programas que estão sob tutela do IHRU revelam uma falta de inovação e de criatividade conceptual, marcados pela habitação colectiva em blocos desintegrados e zonificados espacial e socialmente. Aquilo que devia traduzir-se numa complexa e rica experiência de conceber habitação está a transformar-se num episódio enfadonho em termos de produção e construção. Ainda vamos a tempo de aprender com algumas experiências de habitação que apontam novos processos, novos paradigmas e novos programas que rompem com as propostas municipais de habitação centradas numa reabilitação conceptual e formalista. Os casos da Ilha da Bela Vista e do novo bairro D. Leonor, ambos na cidade do Porto provam que se pode experimentar, transformar e participar.

A proposta arquitetónica da Cerejeira Fontes Arquitetos para substituir os velhos blocos de habitação coletiva do Bairro D. Leonor (1951/1953) representa um ponto de viragem na forma de pensar e projetar habitação coletiva na cidade do Porto.  A habitação é essencialmente «abrigar» enquanto possibilidade de função, mas não pode descuidar a sua dimensão de “obra” comunicacional aberta e universal. É preciso focar a arquitetura como uso e função e ao mesmo tempo compreender a sua representação gramatical enquanto conotação e topologia. Explorar os sentidos da espacialidade como possibilidade de acesso, de uso da arquitetura desde o passar, o entrar, o parar, o subir, o apoiar-se, o debruçar-se e o estender-se. A proposta arquitetónica explora um universo rico e diversificado de estímulos, que vão desde o aprender a subir ao saber parar, olhar e apropriar. O pórtico da entrada que se apresenta como uma possibilidade de passagem, conotação do triunfo ou celebração.

A construção do Novo Bairro D. Leonor (2015-2019) foi também uma oportunidade para aprofundar e monitorizar/validar metodologias participativas implementadas durante a operação de reabilitação na Ilha da Bela Vista (2013-2017). Uma oportunidade para arquitetos e cientistas sociais em processo participante e colaborativo entre moradores e promotores concertarem uma nova proposta de arquitetura básica participante materializado em obra aberta. 

O processo não foi longo, mas foi difícil e complexo, com momentos de tensão, de aceitação e de inovação, de colaboração e compromisso. Moradores, arquitetos e cientistas sociais numa estratégia de convergência colaborativa e apoiados num promotor decidido e estimulado foram a fórmula eficaz para levar esta operação a bom porto. Relembramos que a operação nasce de um concurso público para uma parceria público/privada para a construção de um bairro municipal em cedência de direitos de construção em terreno sobrante para uma das partes. É neste contexto particular que se organiza a operação no antigo Bairro D. Leonor. Foi necessário encontrar um promotor que tivesse capacidade financeira e sensibilidade social para participar neste concurso público. A equipa organizada em torno da comunidade e do promotor garantiram o direito ao lugar e a uma habitação digna para cada uma das famílias que resistiam contra a vontade política que lhes impunha um realojamento associado à deslocação.

A comunidade estava motivada para a resistência e para a luta em torno do direito ao lugar. As suas reivindicações e as suas vozes podiam-se ler nos jornais da cidade e escutar na rádio e tv. Os media davam visibilidade à luta dos moradores. E a mensagem era clara: «Não queremos sair daqui. Queremos casas reabilitadas e dignas, aqui no bairro».

A comunidade residente não aceitava nem o realojamento, nem a deslocalização da comunidade para outros bairros municipais. Foi neste ambiente de luta e de resistência que foi possível construir um amplo e sólido compromisso entre todos os actores envolvidos.    

Com esta nova operação foi possível garantir a todos os moradores e famílias o direito a uma habitação digna no mesmo lugar e na mesma comunidade. Foi possível desenhar e projetar as novas habitações tendo em conta as carências das famílias e as suas expectativas. As casas foram desenhadas e projetadas de acordo com o número de pessoas em cada um dos núcleos familiares, garantindo direitos a cada um dos moradores. Uma das reivindicações mais escutadas era da necessidade de “casa nova” e com maior número de quartos para dar resposta a algumas famílias que viviam num apartamento por onde entrava a chuva, o frio e o desconforto, com mais de 8 pessoas a viver com áreas de 48m2 para T1, de 67m2 para T2 e de 81m2 para T3.

O modelo proposto pela Cerejeira Fontes Arqtos contraria os modelos tipo morfológicos e os processos higienistas e burocráticos de realojamento, baseados em inquéritos e regulamentos racionais e burocráticos, aplicados pelas entidades públicas nos sectores da habitação. A única exceção está relacionada com as operações SAAL durante o processo revolucionário em curso nos anos de 1974 e 1975, um processo participativo que envolveu as comissões e as associações de moradores na procura de soluções em resposta de tempo real ao problema grave de habitação.  Por outro lado, a equipa tem como missão a implementação de um programa que valorize a dimensão relacional e comunal das famílias residentes, que respeite as relações de vizinhança, que garanta a unidade familiar, que as novas habitações sejam concebidas e projetadas exclusivamente para as famílias ocupantes.

O programa desenvolvido e implementado foi amplamente discutido com a comunidade e com o promotor tendo em conta um programa mínimo de habitações definidas em regulamento pela entidade municipal. A natureza flexível do programa permitiu uma grande liberdade de concepção e de desenho colaborativo com a comunidade do Bairro D. Leonor. Daí resultou um novo bairro com um território ligante ao espaço da rua, com relações verticais e horizontais de grande interação visual e social. Os moradores foram alojados nas casas para si desenhadas e atribuídas em processo participativo, as infraestruturas públicas estão ao serviço da colectividade e da cidade, jardins, passeios, zonas de estacionamento livre, logradoiros abertos e bondosos para os moradores da rua. Com esta solução arquitetónica e urbana evitamos a segregação, a dualidade entre os de dentro e os de fora, a gentrificação negativa ou positiva.

Experimentamos neste projecto diversos procedimentos alternativos à habitação social atomizada espacial e socialmente criadora de “enclaves” da solidão e da exclusão. O nosso propósito era claro, não queríamos reproduzir os modelos municipais das últimas décadas, nem continuar com os programas de reabilitação dos blocos municipais em assentamentos estranhos e agorafóbicos. A proposta é experimental e radical na forma, na função e na integração, mas também nos processos de participação e de colaboração, envolvendo os moradores e dotando-os de capacidade interventiva e critica face às soluções projectadas.

O trabalho desenvolvido com a comunidade teve como ponto de partida a nossa experiência com a operação de arquitetura básica participada implementada na Ilha da Bela Vista que tinha iniciado entre finais de 2013 e inícios de 2014. Esta experiência permitiu a aplicação de metodologias participativas, aprofundando o conceito de habitação básica participante e compreender a importância de garantir o direito ao lugar aos moradores em situação de vulnerabilidade habitacional e de realojamento forçado.

Esta operação permite pensar a habitação básica enquanto construção nova, sem relação com uma pré-existência, mas mantendo esse fio de memória com o lugar, elemento agregador da identidade comunal. O lugar e a comunidade são a pedra angular desta operação de habitação básica participante. Neste aspeto, o projeto possibilita aprofundar o tema da habitação básica em Portugal, tirar daqui ensinamentos para outras operações, discutir novas tipologias e novos conceitos, novos métodos de construção sem realojamento e sem deslocação da comunidade. Permite ainda refletir sobre a importância da arquitetura enquanto “coisa” complexa, integrada na cidade e corpo ligante entre espaços domésticos e espaços coletivos. O projeto apresenta como elemento estruturante as duas ruas interiores que ligam os dois corpos do bairro às ruas da cidade. Estamos perante uma estrutura ligante entre dois volumes, com verticalizações suaves que permitem um jogo de forte interação entre vizinhos e passantes.  Os espaços projectados permitem esse jogo complexo entre vizinhos, entre crianças, entre os que ali moram e os que por lá passam. A complexidade espacial e a sua heterogeneidade morfológica permitem viver e habitar como experiência pessoal e comunal. Estamos perante uma arquitetura que constrói espaços significantes e portadores de bons significados. A porta pela sua dignidade construtiva e pela sua centralidade doméstica, enquanto elemento de mediação entre a vida interior e a vida exterior, é portadora de significados que dignificam o habitar e o habitante, mas acima de tudo é elemento com escala e com força de obra.

Um projecto que tem na sua base conceptual uma dimensão semântica e uma orientação pragmática, uma organização espacial e construtiva direcionada para soluções básicas, capazes de produzir espaços de grande complexidade arquitetónica e de forte interação social e comunal. Um espaço produzido com grande intensidade comunicacional permite aumentar os níveis de intensidade social e de consciência habitacional entre a comunidade e a cidade, rompendo com as dicotomias do dentro e do fora, do visível e invisível, da cidade e da não cidade, do lugar e do urbano, da cidade da soleira e da cidade do plano.

A sua composição gramatical remete para uma complexidade e diversidade de mediações espaciais, de escalas, de topologias, de liminaridades, de interações que fazem deste novo bairro um projecto de vida vivida em clara oposição às experiências modernas de separação social e de autonomia subjectiva produtiva e controlável. Já não estamos perante a valorização das experiências da fragmentação, do choque e da dispersão.