A lei da IA: do papel à prática

Desconfio que poucos conhecem as práticas de IA que o legislador europeu proibiu por considerar de risco inaceitável.

Depois de um longo processo legislativo, a regulamentação europeia para a IA foi finalmente aprovada no passado dia 21 de maio. Na interseção entre segurança, direitos humanos e inovação, este é o primeiro instrumento legislativo a definir, no contexto mundial, um quadro específico para a IA. Com um período de adaptação de dois anos, o diploma entra em vigor em junho, deslocando agora o foco de Bruxelas para os Estados-Membros.

O ambiente é, contudo, de alguma preocupação. Para além de toda a imprevisibilidade que caracteriza a atual evolução tecnológica, e que pode ter impacto na relevância desta lei, numa perspetiva prática, antecipam-se desafios regulatórios significativos. E desde logo porque se trata de um ‘admirável mundo novo’, que poucos conhecem, incluindo os próprios aplicadores da lei.

Sendo a consciencialização um elemento fundamental, podemos e devemos fazer mais. Até porque, se não o fizermos, investindo na compreensão e na aceitação social destas normas, estaremos não só a afastar ainda mais o cidadão do processo de decisão, com tudo o que isso implica em matéria de enfraquecimento da democracia, como perdemos uma oportunidade única de fortalecer a resiliência societária em relação aos atuais e potenciais riscos da tecnologia, descoberta e por descobrir. Fator que em muito contribui para aumentar a necessária confiança e potenciar a desejável inovação.

A título ilustrativo, desconfio que poucos conhecem as práticas de IA que o legislador europeu proibiu por considerar de risco inaceitável. Estas disposições, em vigor dentro de pouco mais de seis meses, igualmente formuladas de forma pouco clara e com conceitos vagos, arriscam-se a não sair do papel. Uma crítica que, infelizmente, podemos estender a outros artigos, com preocupações sérias em matéria de consistência e alcance deste importante instrumento legislativo.

Inexistindo soluções ótimas, esta é uma lei que, na minha opinião, oferece uma solução boa, principalmente se assumirmos com humildade que é apenas parte de um esforço que necessariamente tem de ser mais abrangente, envolvendo abordagens multifacetadas e diferentes níveis de escrutínio, públicos e privados. E é exatamente por isso, em prol de um objetivo de eficácia, que chamo a atenção para a necessidade de preparar adequadamente o nosso ordenamento jurídico, conscientes que há decisões importantes a tomar, em áreas muito diferentes, e que vão desde a supervisão e controlo, aos direitos processuais, mecanismos de reparação, ambiguidades institucionais, ou mesmo questões de sustentabilidade.

E se preparar o ordenamento é importante, não é menos relevante conhecer o estado da arte, em particular no que se refere ao uso da IA tanto no quadro do tecido empresarial nacional, como da própria Administração Pública, sobre a qual recaem maiores exigências de responsabilidade e transparência.

A este propósito, é interessante referir uma iniciativa da Provedora Europeia que, no âmbito de um inquérito iniciado recentemente, solicitou informações à Comissão sobre a decisão e utilização de IA nos respetivos processos de decisão. Informações que, no âmbito nacional, seriam igualmente importantes de obter, seja por razões de transparência e escrutínio, seja como forma de contribuir para a consciencialização pública sobre a necessidade de garantir responsabilidade na forma como estas decisões são tomadas relativamente ao uso, implementação e monitorização de modelos de IA.

A aposta da UE foi, sem dúvida, alta. Resta agora saber como vão responder os Estados.