Estrasburgo. A outra capital do projeto europeu

Por que têm os eurodeputados de mudar-se de armas e bagagens para Estrasburgo uma vez por mês? Mário Soares apontava o dedo a este desperdício de meios e de tempo. Mas a exigência partiu do seu amigo Mitterrand

O próprio nome assim o indica: Estrasburgo é uma cidade de estradas ou, mais especificamente, uma cidade que cresceu numa encruzilhada de caminhos.

Encostada à fronteira francesa com a Alemanha, a sua situação geográfica, natureza e simbolismo fazem dela uma das capitais do projeto europeu. De facto, é aí que se encontra a sede do Parlamento Europeu – uma das raras excepções à concentração das instituições em Bruxelas.

E é por isso que, uma vez por mês, os eurodeputados – e respetivos séquitos – abandonam a capital belga e se mudam de armas e bagagens para a velha cidade alsaciana.

A gigantesca operação logística – Bruxelas e Estrasburgo distam mais de 400 km – terá um custo anual estimado em mais de 100 milhões de euros. No tempo dos documentos em papel, cada eurodeputado tinha direito a levar caixotes e caixotes que muitas vezes regressavam à Bélgica intocados. Hoje, na era digital, continua a ser assim: enormes camiões transportam para cá e para lá toneladas de arquivos que muitas vezes não chegam a ser consultados.

Para quê todo o esforço? Porquê este desperdício?

“Os caixotes são carregados nos camiões e levados de Bruxelas para Estrasburgo. Isso são factos”, confirmou recentemente em entrevista ao Nascer do SOL o antigo eurodeputado irlandês Pat Cox, presidente do Parlamento Europeu entre 2002 e 2004. “No exterior de cada gabinete é colocado um caixote onde cada um põe os documentos que quer levar”. Se há caixotes que não são abertos, é porque os eurodeputados escolheram levar papéis de que não precisavam.

“Quando eu era eurodeputado, sentava-me com as pessoas que trabalhavam comigo e víamos do que é que íamos precisar”, continua Cox. “Depois disso não tínhamos de nos preocupar mais porque era tudo reunido e entregue à porta do gabinete em Estrasburgo. Assim que chegávamos a Estrasburgo – com todas as ineficiências e perdas de tempo provocadas pela mudança de um sítio para o outro – esvaziávamos a caixa e tínhamos tudo o que precisávamos para trabalhar”.

90% descontentes 

Dotado de um agudo sentido prático, o antigo Presidente português Mário Soares era um dos críticos deste sistema bipartido do Parlamento Europeu.

Mas não era o único, longe disso: segundo alguns inquéritos, cerca de 90% dos eurodeputados gostariam de concentrar o Parlamento numa só localização, para evitarem as deslocações e a perda de tempo e de recursos. Mas essa alteração teria de ser aprovada por unanimidade – e os franceses não parecem dispostos a abdicar da sede do Parlamento Europeu em solo gaulês. Esta ‘intransigência’ resulta, em grande parte, da própria história atribulada da cidade de Estrasburgo, que ao longo dos séculos tem mudado várias vezes de mãos.

Sucessivas mudanças de mãos

 Fundada há mais de dois milénios pelos romanos, que lhe deram o nome de Argentorati, do século IV da nossa era em diante a cidade foi governada pelo bispo de Estrasburgo. Uma violenta rebelião em 1262, quando estava em curso a reconstrução da famosa catedral, derrubou o poder episcopal e Estrasburgo tornou-se uma cidade imperial livre, ou seja, com governo próprio mas ainda assim fazendo parte do Sacro Império Romano-Germânico.

Com uma localização privilegiada à beira do Reno e na encruzilhada das rotas comerciais, assumiu uma enorme importância durante a Idade Média, importância essa atestada pela dimensão da catedral nunca terminada. Durante o Renascimento, terá sido em Estrasburgo que Johannes Gutenberg aperfeiçoou a sua prensa de caracteres móveis, com as consequências bem conhecidas de todos.

Em 1681 a cidade foi tomada pelas tropas de Luís XIV, tornando-se território francês, um estado de coisas que se manteve durante 90 anos, até à Guerra Franco-prussiana de 1870-1871. Com a vitória, a Prússia de Bismark anexou a Alsácia-Lorena, e Estrasburgo passou a ser germânica.

Novo volte-face em 1914-18: a derrota da Alemanha na Grande Guerra ditou que a Alsácia-Lorena fosse devolvida aos franceses. A região acabaria porém por voltar a ser ocupada pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial e anexada ao Reich. É o que dá estar tão perto da fronteira com uma potência militar… Com a libertação em 1944, Estrasburgo voltou definitivamente a fazer parte da França.

“Estrasburgo era a primeira cidade francesa do lado de lá do Reno e adquiriu um enorme simbolismo. Devido a esse simbolismo, foi escolhida no pós-guerra como sede do Conselho da Europa e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. E sempre que a assembleia da Comunidade do Carvão e do Aço se reunia, fazia-o em Estrasburgo, no edifício do Conselho da Europa”, recordou Pat Cox. “Mas à medida que a União cresceu em dimensão e escala ao longo dos anos, a atividade foi-se concentrando em Bruxelas. Esta questão já foi a votos e o mais provável é que a maioria dos deputados preferisse trabalhar num único local”.

O veto de Mitterrand 

Porque é que a vontade da maioria não se materializa? Aqui entra em cena, curiosamente, um amigo de Mário Soares – o antigo Presidente francês François Mitterrand.

“Quando o tratado de Maastricht foi negociado, uma das questões em cima da mesa era em que estados ficariam as sedes das instituições europeias. Por exemplo, o Banco Central Europeu foi para Frankfurt, a Agência Veterinária foi para a Irlanda e a Agência do Ambiente para a Dinamarca”, continua o antigo presidente do Parlamento Europeu. “Quando houve uma reunião em Edimburgo, durante a presidência britânica, para acertar os pormenores do Tratado de Maastricht, o Presidente Mitterrand disse que vetaria qualquer acordo a menos que o Parlamento Europeu ficasse em Estrasburgo. Isso ficou no documento e por isso hoje tem força de lei. Podemos ter um Parlamento que ignora a lei ao mesmo tempo que funciona como legislador? A resposta é não. E por isso chegámos a este beco sem saída, a este dilema”.

Um dilema que coloca dificuldades evidentes. “Quando eu era eurodeputado vivia na periferia e ir para Estrasburgo não era a coisa mais simples, até porque a cidade não tinha as infraestruturas de uma capital – hoje é mais fácil porque tem o TGV. Tal como acontece com outras coisas da Europa do pós-guerra, algumas destas cedências dizem-nos mais sobre o respeito mútuo que existe entre os estados do que sobre eficiência. Mas, no fim de contas, o respeito mútuo é parte do cimento que mantém o projeto europeu de pé. Por isso sou menos crítico do que outros em relação a estas ineficiências. Admito que a questão não está bem resolvida, mas não tem grande importância. Foi uma exigência de Mitterrand e só demonstra o respeito que temos pelo que a França deseja”, conclui. A falha está à vista e parece não ter solução. É um sinal de que o projeto europeu também se construiu em cima de tensões e conflitos. Que podem ser superados, mas nunca apagados completamente.