A lição americana

A crise de confiança nas instituições democráticas que se vive nos Estados Unidos deve fazer-nos refletir.

Não se sabe se a condenação de Trump, por decisão unânime de um júri de Nova Iorque, terá um impacto decisivo nas eleições presidenciais de novembro, nas quais o empresário surge como candidato favorito em quase todas as sondagens. Pela primeira vez um ex-Presidente americano é condenado, o que naturalmente pode influenciar o ato eleitoral.

Mesmo que tal suceda, o discurso de Trump e a reação dos principais dirigentes do seu partido e de milhões de seguidores, acusando a justiça de ser parcial e politizada, demonstram que há largos setores do eleitorado americano que não acreditam quer no sistema político, quer também no sistema judicial. Isto acontece, pelo menos, desde que foi posta em causa a legitimidade da eleição de Biden, com base numa infundada suspeita de fraude eleitoral. Para os que acreditam nesta teoria conspirativa, os processos com que Trump está confrontado são tão-só uma caça às bruxas.

Trump vê as eleições como um julgamento popular e o eleitorado como o júri supremo que o pode absolver. Ora, isto é o fim do Estado de direito. Há aqui um claro conflito com o princípio da igualdade de todos perante a lei, que está na génese da Constituição americana. Mas Trump parece acreditar que o facto de ser popular lhe concede um salvo-conduto para ilegalidades…

A justiça americana, ao contrário da europeia, é assumidamente política e partidária. Nos Estados Unidos, não há um sistema judicial único. A justiça está organizada num modelo federal, com jurisdições, leis, práticas e nomeações muito variadas. Em regra, cada sistema garante que juízes e procuradores respondem diretamente perante o eleitorado e são eleitos de acordo com uma lógica partidária. Por isso, quem desconfia do sistema político suspeita também da justiça. Ora, esta narrativa populista interessa a Trump e é potenciada quer pelas redes sociais e suas fake news, quer pela polarização da comunicação social.

A crise de confiança nas instituições democráticas que se vive nos Estados Unidos deve fazer-nos refletir. Será a partidarização da justiça, ou a sua subjugação ao poder político, o que pretendemos? Ou será que, como alguns acreditam, a politização da justiça já está em marcha, ainda que longe do nosso escrutínio?

Uma das pedras basilares das democracias liberais europeias é o sistema judicial imparcial, composto por juízes e procuradores que aplicam a justiça de forma cega. Ou seja, em nome do Estado, e não do poder político, sem qualquer sujeição às conjunturas, a modas ou à demagogia vigente. Se alterarmos este status quo, estaremos a promover o discurso salvífico dos populistas que querem destruir a democracia e a dar força aos políticos justicialistas, que não hesitariam em se transformar em exceções à lei sempre que o vento lhes estivesse de feição.

Temos um problema sério com a aplicação da justiça em Portugal? Sim, e é essa a perceção da população. Os políticos queixam-se da justiça? Sim, muitas vezes com razão, porque são alvos preferenciais e não beneficiam da presunção de inocência.

Tudo isto concorre para o descrédito do nosso sistema judicial. Ainda assim, há políticos que são os primeiros a tentar capitalizar casos judiciais quando isso lhes dá jeito, como Paulo Cafôfo, na Madeira, que se queixava da Operação Influencer mas não hesitou em atacar Miguel Albuquerque por concorrer como mero arguido.

Perante disto, só temos um caminho: a justiça – com todos os seus agentes – deve assumir que há uma crise e agir em conformidade. Isto significa propor, ela própria, reformas estruturais para o sistema judicial e passar a sujeitar-se à crítica e ao escrutínio, a agir sem exibicionismos e precipitações e a ter em linha de conta as particulares circunstâncias da ação política. Desta forma, poderá ser reconquistada a nossa confiança no sistema judicial.