Nas últimas décadas, o campo da educação tornou-se uma espécie de teatro que oferece aos voyeurs da decadência um laboratório de experiências sociais absurdas, uma engrenagem insana em que, a partir desses planos formulados por atores tão imbecis quanto bem-intencionados, as instituições formativas vão ficando à mercê do ritmo e das aspirações empresariais e económicas. No fundo, já ninguém acredita que a aprendizagem de hoje resolve os problemas de amanhã; é quase certo, pelo contrário, que os desencadeia. E diante desse sem-fim de diagnósticos e propostas, serpentinas retóricas, enquanto se retira autonomia aos professores e se abatem os horizontes de possibilidades dos programas escolares, forçando-a a adotar a normatividade economicista e funcionalista, e tudo isto ilustra aquela noção de Nietzsche de que o Estado é o mais frio dos monstros frios. Em Assim Fava Zaratustra, ele registava isto: «O Estado foi inventado para aqueles que são supérfluos. Vede como ele os atrai, a esses supérfluos! Como ele os devora e os mastiga e os rumina! O Estado é o lugar onde todos, bons e maus, estão intoxicados; onde todos, bons e maus, se perdem; onde o lento suicídio de todos se chama ‘a vida’». Face a este contexto de gestão de crises engatilhadas umas nas outras, justificadas umas pelas outras, o mal-estar nas escolas foi servindo como um programa de desmoralização e de afastamento dos melhores, atraindo os espíritos mais impreparados e aqueles que se dão em regimes de submissão. Assim, todo o esforço de crítica foi-se deixando abafar por vagos humores. Apesar disso, e da geral demissão da crítica, surgiam entre nós algumas vozes que acompanhavam e denunciaram todo este processo, e uma das mais destacadas foi certamente o professor Santana Castilho. Nas suas crónicas, sempre escritas num registo combativo e informado, foi denunciando a vontade de promover uma gestão voltada para os números, as metas de ordem estatística, adotando-se um regime de moral numérica, onde tudo se quantifica, conta, mede, pesa, computa, ordena, categoriza, cataloga, para disso fazer objetivos, metas, avaliações, discriminações, imposições, veredictos… «A escola que nos estão a impor serve acefalamente essa sociedade e visa o homem sem humanidade», alertava ele há uns bons anos. Em tantas das suas intervenções, instigava os professores a uma forma de desobediência e rejeição das diretivas dos sucessivos governos e dos modelos de submissão e degradação a que a profissão estava sujeita…». «Cabe aos professores rejeitarem vigorosamente o papel de simples sujeitos – mercadoria que o ‘gadgetismo’ irresponsável lhes reserva, impondo-lhes, como se desejo seu fosse, toda a sorte de porcaria perniciosa».
Manuel Henrique Santana Castilho morreu no dia 29 de maio, aos 80 anos. Desde o final de março que a sua condição debilitada o impedia de escrever, e foi certamente um alívio para muitos dos nossos «pedabobos» que foram sendo os alvos constantes das suas inamistosas denúncias. Se há muito se instalou um espírito servil e medorros, que leva a que, mesmo diante dos maiores desastres, se imponha um dever de moderação, todos essas modulações próprias da etiqueta, e que são veiculadas segundo os ideais da ‘imparcialidade’ e do ‘olhar objetivo’, há muito que estes se foram revelando «mentiras, ou até a expressão perfeitamente ingénua de uma banal incompetência» (Walter Benjamin). Este educador quis estar à altura dos problemas e denunciar todas as imposturas de uma forma de cinismo que se veste de realismo ou pragmatismo. «Falando um erudito ‘eduquês’, essa corte tem imposto estereótipos pedagógicos ineficazes e eternizado tabus que vão conduzindo o país à desgraça, pela mão da permissividade e do facilitismo, únicos universos em que são competentes».
Nascido em Beja, a 7 de junho de 1944, Santana Castilho foi professor durante mais de 40 anos em diferentes níveis de ensino. Foi presidente do Conselho Diretivo da Escola Preparatória Francisco de Arruda, logo a seguir ao 25 de Abril, e presidente da direção da Escola Superior de Educação de Santarém e do Instituto Politécnico de Setúbal. Foi consultor da União Europeia, da UNESCO e do Banco Mundial e formador de quadros de várias empresas, tendo sido autor de diversos livros e inúmeros artigos, publicados em vários jornais e revistas, sobre Educação. Em sinal da ridicularia dos valores e das aspirações que triunfam entre nós, e que subjugam o país a essa classe dos supérfluos, quase todos os obituários que lhe foram dedicados puxavam para o título a sua passagem de oito meses por um governo de Pinto Balsemão, como subsecretário de Estado dos Assuntos Pedagógicos do Ministério da Educação, sendo que dessa experiência este apenas ressaltou que o mais importante foi o facto de não ter «vergado a coluna».