Ceder ou não ceder, eis a questão. A tentação que a mulher representa para o homem está presente em quase todas as religiões e desde os tempos mais recuados. Afinal, foi a traiçoeira Eva quem convenceu Adão a experimentar o fruto proibido, levando à expulsão do casal do abençoado Jardim do Éden.
No Bhagavad Gita, o famoso texto religioso hindu do século IV a.C., lê-se que a mulher corrupta destrói os valores da família. Mas é um pequeno conto zen japonês que talvez melhor ilustra como a mulher pode afastar-nos – ou não – do caminho da rectidão.
Mestre e discípulo caminham debaixo de uma chuva intensa por uma estrada lamacenta, e ao chegarem a uma curva deparam-se com uma bela jovem vestida com um delicado quimono de seda. Como ela mostra dificuldade em atravessar uma grande poça, o mestre oferece-se para a ajudar, levantando-a nos braços e transportando-a para o outro lado. A jovem agradece e seguem o seu caminho.
Daí em diante, o discípulo passa o resto do trajeto em silêncio. O mestre, nota-o amuado e macambúzio, mas não o manifesta. Até que, à chegada ao destino, lhe pergunta o que se passa.
“Nós, monges, não nos aproximamos das mulheres, especialmente quando são tão jovens e bonitas”, repreende-o o discípulo. “Eu deixei a rapariga lá atrás”, responde o mestre. “Pelos vistos tu continuas a carregá-la contigo”. É um exemplo da sabedoria zen no seu melhor.
Ameaça à ordem social Em Paris, no departamento de antiguidades orientais do Museu do Louvre, encontra-se uma pedra de basalto com mais de dois metros de altura que foi encontrada em Susa, capital da antiga Pérsia (atual Irão), em 1902, e depois levada para França. Esta pedra, datada de cerca de 1792-1750 a.C. e conhecida como Código de Hamurábi, é uma das mais antigas compilações de leis que conhecemos.
O artigo 129 diz mais ou menos isto: “Se a esposa de alguém é encontrada em contacto sexual com outro homem, deve-se amarrá-los e lançá-los na água, salvo se o marido perdoar à sua mulher e o rei ao seu súbdito”.
A razão de tal punição não é difícil de compreender: o adultério não era apenas uma traição ao cônjuge, mas uma ameaça a toda a ordem social.
Ali ao lado, no rival Egipto, o delito não era punido de forma menos severa. A condenação, porém, podia variar consoante o sexo do transgressor. Normalmente, o destino da mulher ficava nas mãos do marido, e podia muito bem ser a morte; já o homem podia ser condenado, por exemplo, a mil vergastadas – o que, ainda assim, não seria um castigo leve.
Tudo parece indicar que, tal como no mundo judaico-cristão, a mulher era sempre encarada com uma desconfiança acrescida no Egipto dos faraós. “A Literatura não é nada amável para a mulher egípcia”, escreveu o arqueólogo francês Pierre Montet n’A Vida Quotidiana no Egipto no Tempo dos Ramsés. “Frívola, garrida e caprichosa, incapaz de guardar um segredo, mentirosa e vingativa, naturalmente infiel, os contistas e os moralistas veem nela o feixe de todos os pecados, o saco de todas as malícias”.
Montet apresenta um conto popular que faz lembrar tanto o “pessimismo” da Bíblia como as reviravoltas da mitologia grega: “Os nove deuses, vendo Bytaú sozinho no vale do Pinheiro, tiveram piedade da sua solidão e concederam-lhe uma mulher única no mundo, porque nela existia a água de cada um deles. Principiou por desobedecer ao marido e depois traiu-o. Bytaú ressuscitou, transformando-se em touro. A sua antiga esposa, que se tornara favorita do Faraó, conseguiu, por meio de blandícias, que o seu senhor e dono mandasse imolar o touro”.
Noutro papiro, encontramos a história de uma mulher de um sacerdote que enganava o marido a toda a hora e já engravidara três vezes de outros homens. “Desculpava-se, dizendo que o pai era o deus Rá em pessoa, que por este meio tinha querido dar ao Egipto três reis piedosos e benfazejos”.
O adultério nas sagradas escrituras A Bíblia também está cheia de casos de sedução e adultério – tentado ou consumado. No Livro do Génesis, depois de ser maltratado e vendido pelos irmãos a uma caravana de mercadores ismaelitas, José vai parar ao Egipto, onde é comprado por Putifar. Este “oficial do faraó, e chefe da guarda” designa-o “mordomo de sua casa” e confia-lhe “todos os seus bens».
Mas as atribulações de José ainda não terminaram. “José era belo de corpo e de rosto formoso. Ora, depois desses factos, aconteceu que a mulher de seu senhor lançou seu olhar para José e lhe disse: ‘Dorme comigo’. Mas ele negou-se, e disse à esposa de seu senhor: ‘Vê, meu senhor nem sequer sabe, como sei eu, quanto existe nesta casa, e tudo o que lhe pertence o confiou a mim. Ninguém há mais importante do que eu nesta casa, e ele não reservou nada para si, exceto tu, porque és sua esposa. Como posso, pois, fazer tão grande mal e pecar contra Deus?’”.
Rejeitada, a insidiosa mulher vira a história ao contrário e diz que foi ele que a tentou violar. José acaba na prisão, de onde só sairá depois de conseguir interpretar os sonhos do faraó.
O adultério volta a surgir em vários momentos-chave da Bíblia. No Evangelho segundo S. Mateus, Jesus declara aos discípulos: “Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, digo-vos: – Todo aquele que olhar uma mulher com mau desejo, já com ela cometeu adultério em seu coração”.
A 9.ª lei inscrita nas tábuas que Moisés trouxe do Monte Sinai dizia: “Não cobiçarás a mulher alheia”. E diz ainda o Antigo Testamento: “Se um homem comete adultério com a mulher do seu vizinho, tanto o adúltero como a adúltera serão condenados à morte”.
Mas para Jesus, as coisas não têm de ser tão simples nem tão drásticas. Por isso, quando os escribas e os fariseus lhe apresentam uma mulher apanhada em pleno adultério, ele responde: “Aquele de vós que estiver sem pecado lance-lhe por primeiro uma pedra”. Os acusadores vão-se embora um a um, ficando Jesus e a adúltera a sós. “Mulher, onde estão? Ninguém te condenou?”, pergunta. Ela responde: “Ninguém, Senhor. Ao que ele retorque: “Nem eu te condenarei; vai e não tornes a pecar”.
Nem todos, porém, se mostram tão clementes. Ainda há poucos meses no Afeganistão, o líder supremo dos talibãs, Haibatullah Akhundzada, afirmou: “Vamos chicotear as mulheres, vamos apedrejá-las até à morte em público”. E não consta que estivesse a brincar nem a fazer bluff.
Os devaneios de Zeus e Afrodite No mundo clássico, o adultério era encarado com outra ligeireza e naturalidade. Como diz a velha expressão, “a carne é fraca”, e até os deuses da Grécia tinham dificuldade em resistir ao desejo.
A mitologia dá-nos disso abundantes exemplos. A começar pelo próprio Zeus, que soma conquistas atrás de conquistas à margem do seu casamento com Hera. Apolo, que foi o fruto de uma delas, veio a nascer na ilha de Delos, recém-formada como refúgio para a sua mãe dar à luz, depois de Hera, furiosa, tudo fazer para que ela não encontrasse um sítio onde repousar.
O ‘rei dos deuses’ usa todos os estratagemas e artifícios para seduzir e conquistar as beldades que o atraem: transforma-se em touro para raptar Europa e em cisne para possuir Némesis, entre muitas outras metamorfoses sempre coroadas pelo êxito.
Casada com o disforme e coxo Hefesto – o deus ferreiro de cuja forja saíam as armas e armaduras das divindades -, Afrodite também não se coíbe de manter romances com os mais variados protagonistas: Ares (o amante ‘oficial’), Dionísio, Anquises, rei da Dardânia, o belo Adónis e Butes, o Argonauta. Da relação com Dionísio nasceu Príapo, “uma feia criança com enormes genitais – foi Hera quem lhe deu esta aparência obscena, como castigo pela promiscuidade de Afrodite”, escreve Robert Graves em The Greek Myths.
Filha ‘ilegítima’ de Zeus com Némesis, a bela Helena acabará por herdar do pai a tendência para o adultério. Quando o príncipe Páris lhe declara a sua paixão, Helena deixa-se seduzir e foge com ele para Troia. Menelau, rei de Esparta, com quem ela era casada, fica de cabeça perdida e organiza um exército para vingar a ofensa. Assim terá início a Guerra de Troia, que durará dez anos.
Nero: a traição como pretexto Embora só muito mais tarde, com Constantino, a moral e os preceitos judaico-cristãos se impusessem no império, o adultério já era considerado crime entre os romanos. O maquiavélico imperador Nero recorreu precisamente a esse expediente: acusar a sua mulher Octavia de traição para primeiro a expulsar de Roma e depois a mandar assassinar. Ficou assim com o caminho livre para se casar com a bela Popeia Sabina, com quem já vinha mantendo um caso extraconjugal (um dos vários que se lhe conhecem). Popeia acabaria também por morrer e, para a substituir, o imperador escolheu um jovem incrivelmente bem-parecido – Esporo -, a quem, para manter as aparências, mandou cortar os genitais…
Apesar da interdição que pendia sobre o adultério, o imperador regia-se por regras próprias. Mas não seria o único em Roma, longe disso. Na Arte de Amar, o poeta Ovídio sugeria truques para iludir a vigilância do cônjuge e manter uma prazerosa ligação extraconjugal:
“Para praticares o engano, frequenta os meus rituais. Ainda que tantos olhos te vigiem quantos tinha Argos, basta manteres firme a vontade e hás-de trocar-lhes as voltas.”
Dante e Gesualdo: adultério à italiana Na piedosa Idade Média, o adultério não é naturalmente visto com bons olhos. Dante, na Divina Comédia, coloca os amantes Francesca e Paolo Malatesta no segundo círculo do Inferno. É Francesca quem diz: “Nenhuma maior dor/ do que a de recordar tempo feliz/ já na miséria”. Gianciotto, marido dela e irmão dele, surpreendeu os dois amantes em flagrante delito e não esteve com contemplações. Despachou-os para o outro mundo sem lhes dar tempo sequer para o arrependimento.
Um caso que faz lembrar o de Carlo Gesualdo, príncipe de Venosa, e célebre compositor de madrigais e de música sacra. Casado com a Donna Maria D’Avalos, senhora de uma beleza celebrada por poetas, Gesualdo ouviu rumores de que a sua mulher manteria uma ligação ilegítima com um outro nobre, um tal Fabrizio Carafa.
Um certo dia, em 1590, o marido enganado anunciou que iria deixar Nápoles por uns tempos, que muito o entristecia deixar a mulher sozinha. A cilada estava montada. Quando regressou ao palácio, Gesualdo encontrou Donna Maria com Fabrizio na enorme cama de dossel do casal. Sacando da espada, só parou quando os lençóis estavam encharcados de sangue. Como se não bastasse, conta-se que ainda terá vestido o desafortunado Fabrizio com as roupas da mulher, expondo-o ao lado de Donna Maria, nua, de pernas abertas, no meio da rua, para que todos vissem o que acontecia a quem traísse o príncipe de Venosa.
De afonso henriques a D. carlos: adultério à portuguesa Em Portugal, os casos extraconjugais foram comuns entre os reis, e logo desde a fundação. D. Afonso Henriques terá tido ligações sentimentais fora do casamento, das quais resultaram três filhos ilegítimos. “Grosseiro de modos, D. Afonso Henriques não teria pejo em atirar-se publicamente a outras mulheres”, nota Joaquim Vieira na História Libidinosa de Portugal.
Em 1758, D. José vinha de um encontro com a amante, a marquesa de Távora, quando foi alvo de um atentado – o que desencadearia a purga contra aquela poderosa família orquestrada pelo Marquês de Pombal. E também D. Carlos, apesar do seu afeto por D. Amélia, colecionaria amantes. “24 dos 34 soberanos que se sentaram no trono português produziram uma considerável quantidade de bastardos, que pode ter-se aproximado da centena”, conclui Vieira. Do primeiro ao penúltimo rei, em matéria de atração pelo belo sexo, os nossos monarcas não deixaram os seus créditos por mãos alheias.