Muito tem dado que falar o texto do jornal espanhol El País que diz que Lisboa está a morrer do seu próprio êxito. O artigo, que saiu no mês passado, diz que Lisboa está a perder a sua essência, que agora praticamente só tem turistas – e que por isso os habitantes vão embora – tuk tuk e negócios. Tudo em prol do turismo.
No artigo, o jornal fala com Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior que garante que, nos últimos 11 anos, a freguesia perdeu população «porque as pessoas foram forçadas a sair não só por causa da grande crise económica, mas porque o governo de direita que existiu durante os anos da troika aplicou medidas que permitiram expulsar pessoas, e que coincide também com a entrada em cena de uma atividade aparentemente inofensiva, os apartamentos turísticos, profundamente invasiva para as pessoas».
No entanto, a visão do autarca não é partilhada por todos e o Nascer do SOL tentou perceber outras opiniões.
Cristina Siza Vieira, vice-presidente executiva da Associação da Hotelaria de Portugal (AHP) não concorda que Lisboa esteja a perder a sua essência. E explica a sua visão ao nosso jornal. «Lisboa ganhou a relevância que tem como destino turístico de excelência precisamente por que mantém a sua alma e identidade». A responsável adianta ainda que «todos os turistas que nos procuram destacam precisamente as características únicas da nossa cidade, da nossa população, gastronomia e cultura como elementos distintivos e estruturantes».
Para Cristina Siza Vieira, «é evidente que temos de manter este equilíbrio entre uma cidade cosmopolita, com marcas internacionais, desde comércio a restaurantes e hotéis, e uma cidade com identidade própria, única e especifica».
Quem também defende que Lisboa não perdeu a sua essência é Carla Salsinha, presidente da União de Associações do Comércio e Serviços (UACS) que, ao Nascer do SOL, defende que «é um mito quando se diz que Lisboa está com excesso de turismo», defendendo que a capital portuguesa tem capacidade de crescer mas, «pela estrutura da própria cidade, pela sua dimensão e por ter uma concentração muito grande de monumentos e equipamentos turísticos, há, de facto, uma grande concentração».
Na opinião da responsável, este é o «grande desafio» da cidade e da própria região que «tem de criar os mecanismos para podermos criar este equilíbrio e fazer uma gestão de fluxos que possamos informar aos turistas que podem, num determinado momento, em vez de irem para aquele monumento, edifícios ou equipamentos turísticos que estão com mais pressão, com mais entradas, irem para outros e visitarem esses espaços. Temos à volta de Lisboa uma região fantástica com outro tipo de recursos e com uma diferenciação e aqui, Lisboa tem que se associar aos diversos municípios que compõem a Área Metropolitana de Lisboa para também poder ir dispersando esses turistas».
No entanto, Carla Salsinha assume que há uma preocupação no que diz respeito à identidade, garantindo que o comércio tem estado em conversações com a Câmara Municipal de Lisboa – «sem algum sucesso ainda neste momento» – para que haja atenção com a preservação da identidade e das características que apaixonam os turistas: o sol, o bem receber, a segurança e, claro, a identidade.
Para a presidente da UACS, a câmara precisa de «ter cuidado» com autorizações e surgimento de novas unidades hoteleiras mas também do próprio comércio. «Estamos a transformar-nos numa cidade em que tínhamos um conjunto infindável de lojas com história diferenciadoras, um conjunto de comércio totalmente diferenciador e hoje estamos a tornar-nos numa cidade em que se multiplicam e replicam comércios que não são identitários da cidade de Lisboa», lamenta, dizendo que isso é uma responsabilidade da autarquia liderada por Carlos Moedas. «O turista não quer vir para aqui e estar a ver uma cadeia de moda ou uma cadeia de restaurantes internacional porque isso eles têm nos países deles. Eles querem é ir aos nossos restaurantes, às nossas lojas de comércio típicas que têm um produto diferenciado, querem vir aos espaços que não têm nos países deles e ver também, como é óbvio, preservar que se mantenham os lisboetas a viver nos próprios bairros, isso é uma grande preocupação» e «a câmara não tem estado atenta».
A concessão é uma das críticas que Carla Salsinha faz ao executivo lisboeta. «Quando temos um quarteirão onde há uma unidade hoteleira, onde havia por exemplo sete lojas e deixam de haver essas setes lojas, estamos a perder a identidade», defendendo que a câmara pode limitar o encerramento de lojas de comércio local.
Perda de população?
O artigo do El País refere que seis bairros de Lisboa – Castelo, Mouraria, Alfama, Chiado, Sé e Baixa – perdeu perto de 30% da população desde 2013 e que 60% das habitações são apartamentos turísticos.
Cristina Siza Vieira acena com números mais abrangentes relativos à capital. «Por um lado, e relativamente à população residente, basta consultar os resultados do Censos do concelho de Lisboa de 2021 e comparar com o Censos anterior (de 2011) para se constatar que a população residente era em 2021 de 545.796 pessoas, significando que perante o Censos de 2011 ocorreu apenas um decréscimo de 1.937 habitantes nestes 10 anos», acrescentando que, consultando todos os dados disponíveis sobre a população residente desde 1960, «constata-se que a grande e maior, sem qualquer comparação, perda de habitantes no concelho de Lisboa ocorreu entre 1981 e 1991: menos 21% (de 807.000 para 663.000). Donde, obviamente não houve perda de 30% da população desde 2013».
Por outro lado, acrescenta a vice-presidente executiva da AHP, e relativamente ao ‘ratio’ habitação versus alojamento turístico, os mesmos Censos de 2021 referem que estão registados 319.640 apartamentos e moradias. «Ora, consultando os registos do alojamento local (AL), porque é esse que o jornal quer referir, estavam registados em 2023, 18.905 AL, isto é, 6% da habitação», diz, acrescentando que «mesmo que a este número acresça outro tipo de alojamento turístico, seja hotéis, pousadas e hotéis apartamentos (total de 287) ou outros, não compreendo como é que isto representará os tais 60% de apartamentos turísticos do total de edifícios habitacionais». E questiona: «Será que há outra fonte de dados?».
Mas defende: «De qualquer modo, há outras questões que a notícia levanta, que são importantes, e devem ser ponderadas».
No que diz respeito aos moradores, Carla Salsinha não tem dúvidas que «o que apaixona em Alfama, na Mouraria ou na Graça é podermos ter o contacto com a população local, com aqueles que vivem» e que não se pode transformar tudo em turismo. «Temos tido outros comentários de turistas a dizerem que Lisboa está a perder essa identidade», lamenta a responsável que finaliza: «Não podemos deixar mas isso depende essencialmente da câmara municipal apostar nessa preservação da identidade de Lisboa».