Tenho manifestado por diversas vezes nesta coluna a minha preocupação com a governança e gestão das finanças públicas nacionais. Fui daqueles poucos que não embarcou em arco com os resultados orçamentais de 2023. Chamei, então, a atenção para que o excedente se devia ao saldo (não discricionário) da Previdência, que a redução do rácio da dívida abaixo dos 100% assentava numa operação financeira cosmética e que os resultados positivos tinham como reverso a deterioração do stock de capital público. Pertenci ao grupo, ainda mais restrito, dos conservadores fiscais que denunciaram as ‘contas certas’ como um jargão mediático sem suporte na teoria e sem utilidade prática. Mais recentemente, a propósito do desvario despesista que campeia num parlamento dividido e em permanente antecipação eleitoral, apelei ao fortalecimento da ‘norma travão’ por forma a impedir a ‘estratégia do cuco’ – colocar um ovo em ninho alheio para que outro passarão o choque. Finalmente, na semana passado, defendi as novas regras orçamentais europeias por conseguirem um bom equilíbrio entre a flexibilidade e a (necessária) disciplina.
Foi, pois, com agrado que ouvi em prestigiado professor de economia – que combina credenciais académicas com muita experiência prática e política –, dar voz às minhas preocupações, notando que, ao ritmo a que nova despesa pública está a ser aprovada, o país arrisca-se a desbaratar já em 2025 qualquer folga orçamental existente para 2024. Falo, claro, do Professor Mário Centeno. A sua voz conferiu uma força e uma autoridade ao alerta que a minha pena jamais poderia almejar.
Acontece, porém, que Mário Centeno não é apenas um economista. Ele é, também, governador do Banco de Portugal (BdP). E esta simples situação suscita-me uma interrogação: a que título pode o BdP criticar as decisões em matéria orçamental das do Governo e da Assembleia? Conhecendo pessoalmente a pessoa em causa há várias décadas, e apreciando a sua prudência e sensatez institucional, estou seguro que esta questão foi bem maturada. De qualquer jeito, parece-me educativo refletir sobre ela. Na minha leitura da lei orgânica do BdP existem apenas dois ‘cabides’ onde pendurar uma intervenção daquele teor: a estabilidade de preços ou a estabilidade do sistema financeiro. A primeira hipótese pode ser imediatamente descartada, a não ser que se acredite que um eventual défice português alterar a perceção sobre a sustentabilidade das finanças publicas na restante zona euro. Quanto à estabilidade do sistema financeiro, os aspetos relevantes são saber em que medida o rating da dívida soberana estará comprometido, a quantidade e maturidade da dívida na carteira das instituições financeiras será impactada ou, indiretamente, se a solvência das famílias ou empresas não-financeira estará em causa. Ora não me parece nada óbvio que seja este o caso quando, afinal, o país não estará em 2025 assim tão longe do equilíbrio orçamental nem os riscos de longo prazo mudaram suficientemente.
Muitos dirão que as minhas preocupações são académicas pois o que interessa é se as declarações são justificadas e se têm efeito dissuasor pretendido. Discordo. Teria sido pedagógico ouvir o governador explicar em que medida o seu alerta se insere no mandato do Banco. Nas democracias liberais, a ‘forma’ – as normas, escritas ou informais, as tradições, os comportamentos políticos e o respeito pelos papéis institucionais – é irmã gémea da liberdade e, portanto, tão importante quanto a ‘substância’. Como nos mostra a atuação de tantos atores, isto é esquecido com demasiada frequência em Portugal.