‘Na Monarquia havia muito mais liberdade de expressãodo que há hoje’

Nesta segunda parte da entrevista ao Nascer do SOL, a historiadora ilustra a liberdade de expressão na Monarquia com a crónica publicada num dos jornais radicais da época, O Patriota, intitulada ‘O conde ladrão’

Entrevista a Maria de Fátima Bonifácio, Historiadora

Há uma semana, a propósito da reedição de A Monarquia Constitucional 1807-1910 (ed. D. Quixote), falámos sobre a obra de D. João VI no Brasil e o «conflito insanável» entre liberais e democratas, que inquinou a vida política ao longo de quase todo o século XIX. Retomamos a conversa no ponto em que Costa Cabral – «um tipo muito duro, [que] odiava os democratas e governava ditatorialmente» – assume o Governo, na sequência de um pronunciamento militar, e devolve à Rainha D. Maria II os poderes que lhe tinham sido retirados pela Constituição de 1838.

Fez a distinção entre liberais e democratas, a que chama ‘radicais’. Os democratas eram de inspiração francesa?

Completamente. O nome radical era usado em França porque depois da revolução de 1830, que pôs o Luís Filipe no poder, houve imensos atentados contra o Rei, até que houve um a que ele escapou por um fio. Então fizeram-se as chamadas Leis de Setembro, que proibiram o uso do termo ‘republicano’ – e eles passaram a chamar-se ‘radicais’. Portanto, cá eu também chamo radicais ao equivalente dos franceses. Os radicais não são uma extensão de extrema-esquerda vinda do liberalismo. São outra coisa sob todos os pontos de vista. Têm uma ideologia completamente diferente, uma visão do mundo completamente diferente, são anticlericais até às raízes dos cabelos, e não são monárquicos… são republicanos! Acham que a religião é uma coisa completamente não só dispensável como perniciosa. Não é por acaso que a primeira lei que o Afonso Costa faz quando toma o poder em 1910 é a lei da separação do Estado e da Igreja.

Portanto, Afonso Costa é herdeiro desses democratas, ou radicais, do tempo da Monarquia.

E que teve a oportunidade de tomar o poder também com uma revolução. Os radicais tornavam a governação, de facto, infernal. O Costa Cabral teve mão na situação durante três anos, de 42 a 45, e depois em 45 dá-se a Maria da Fonte.

Que tem origem naquela proibição de enterrar os mortos nas igrejas.

O Exército dividiu-se. Uns apoiavam a Maria da Fonte, outros não. Entretanto, o Costa Cabral meteu-se num barco e foi para Espanha, a conselho da Rainha, porque a coisa estava mesmo feia. O país estava dividido de Norte a Sul. Não era só no Porto ou em Lisboa, no Algarve também havia quem apoiasse a Patuleia – como eram chamados os combatentes pela causa da D. Maria II…

Quando diz que o país estava dividido ao meio, está a falar de posições políticas ou isso também reflete uma divisão entre um Portugal mais tradicional, rural e conservador, e um Portugal mais inovador, urbano e progressista?

Pode ser. Porque o radicalismo de facto é um fenómeno urbano, no mundo rural não existia tal coisa. A maioria do país não era radical nem nada que se parecesse. Mas dominavam em Lisboa e em grande parte da tropa. Eram quatro mil para um lado e uns 3800 para o outro.

Uma coisa muito equilibrada.

E por isso é que nunca mais se desatava. Até que a Inglaterra resolve intervir. Chama um capanga qualquer espanhol e juntam-se em Gramido para fazer um acordo de paz. Esse acordo foi aceite e toda a gente depôs as armas. A Guerra Civil durou dois anos, com muito pouca batalha. A única mesmo relevante foi a de Torres Vedras em 22 de dezembro de 45.

A partir daí as coisas acalmaram?

Foi sempre um século muito turbulento. As coisas podiam estar sossegadas durante um ano e de repente entravam outra vez em ebulição. A guerra civil acaba em outubro de 46. Mas não acabou a balbúrdia. E o Saldanha, que tinha voltado para Portugal há pouco tempo e tinha a mania que era o salvador da pátria, fartou-se daquela balbúrdia toda e resolveu ir para o Porto e desencadear um pronunciamento de lá.

Outro?!

Outro. As adesões foram lentas, mas acabaram por se concretizar. Vem para Lisboa num vapor, vai ter com a Rainha e a Rainha nomeia-o chefe do Governo. E ele faz uma coisa meritória: forma um governo bastante equilibrado. O Saldanha era presidente do Governo, o ministro do Reino era o Rodrigo da Fonseca, um homem muito conciliador e muito inteligente, o Fontes [Pereira de Melo] já estava nas Finanças. E introduziu uma calma no país como não havia memória. Viveram-se ali cinco anos de sossego, de 51 a 56, ou coisa que o valha. Mas depois, claro, o Governo a alturas tantas já estava ‘gasto’, como se dizia – na altura os governos ‘gastavam-se’ muito depressa – e vêm ao de cima outra vez os radicais. O Governo cai em 56 e começa a balbúrdia outra vez.

Não tinha emenda.

Acabaram por emergir aqueles a que depois se chamou os ‘históricos’, capitaneados pelo Duque de Loulé, que se tornou um esquerdista. [risos] Mas depois aquilo também não resultou. Em 1868-70 houve uma crise horrível – quer dizer, financeiramente estávamos sempre em crise, mas havia momentos mais agudos. Até que em 1870, o ‘salvador da pátria’ [Saldanha] resolveu fazer não um pronunciamento militar, mas um golpe de Estado. Pega nuns regimentos, sobe a Calçada da Ajuda, onde estava o D. Luís, e a Guarda Real do palácio, quando viu aquele estardalhaço…

Pôs-se a andar?

Pôs-se a andar. Era fantástica a naturalidade com que estas coisas eram feitas e depois noticiadas. E o Saldanha não esteve com meias medidas: disse a D. Luís para demitir o Governo e para o nomear a ele presidente de um novo Governo. E o D. Luís, perante as circunstâncias, não teve outro remédio. Nesse Governo, a princípio o Saldanha tinha todas as pastas. Só aos poucos é que foi preenchendo os lugares. E depois entramos numa fase já de republicanismo aberto e de instabilidade governativa permanente.

Mas há um período que é visto como de progresso e de prosperidade, que é o fontismo.

E foi. O Governo do Fontes, de 71 a 77, é um momento de calma. Pela primeira vez – e única – houve um superavit. Isso permitiu ao Fontes, além de se preocupar com o país, descobrir que tínhamos colónias e não as aproveitávamos. E é nessa altura que o Serpa Pinto, o Silva Porto e todos esses exploradores fazem as suas expedições em África. Portanto, foi a partir daí, só, que nasceu em Portugal o interesse pelas colónias. E começa a haver algum investimento em África – em estradas, em escolas – mas pouco.

Não havia capital.

Éramos uns tesos, como fomos sempre e como continuamos a ser. Temos de nos habituar a essa condição… Angola só nasce na cabeça dos portugueses em meados da década de 70 do século XIX. Havia uma administração colonial mas não tinha meios para fazer nada. E apanhava doenças terríveis. Até à descoberta do quinino, em meados do século, ir para Angola era quase uma sentença para ir para o outro mundo… Depois, com o quinino, começou a haver emigração para Angola. Até que o Fontes, em 78, por razões que nunca percebi, resolve ir dar um passeio pela Europa e deixa no Governo o Duque d’Ávila.

Foi uma viagem de recreio?

Deu uma entrevista a um jornal espanhol a dizer que tinha ido passear «hasta la vuelta». [risos] Ele estava cansado. Foi o Governo mais longo do século XIX, nenhum Governo ultrapassava três ou quatro anos.

Ficava ‘gasto’…

E aqui entramos já na proto-história da República propriamente dita.

Tocámos no papel que os ingleses tiveram na pacificação da Patuleia. Eles zelaram muito pela nossa independência, em parte porque lhes dava jeito terem esta costa livre para as suas navegações.

Não lhes dava jeito – era essencial. Estive dois meses em Londres, onde li os Parliamentary Papers, não todos, mas depois estive dez meses em Oxford, e consolei-me na Bodleian a ver documentos. O Palmerston tem um discurso, justamente sobre as relações anglo-portuguesas, em que diz: ‘Lisbon must always be English’. E depois explica o que seria a Inglaterra, com a hostilidade dos franceses, sem ponto de apoio para chegar às suas possessões.

Tinham colónias para todo o lado…

Se perdessem a hegemonia em Lisboa isso punha em causa a estratégia deles para o Império. Claro que os radicais os odiavam porque a Inglaterra protegia a Rainha D. Maria II e a Carta. Mas não tenho nada a noção de se meterem na política do dia-a-dia… ou do mês a mês. Para eles, o vital era que Lisboa fosse acessível em qualquer circunstância.

D. Luís acaba por ter um reinado penoso.

É penoso porque há sempre aquela dicotomia entre cartistas [defensores da Carta Constitucional de 1826] e republicanos – que ainda não se chamavam republicanos, chamavam-se democratas…

Ainda não se assumiam?

Não havia condições. Mas rapidamente, depois de 1900, começaram de facto a assumir-se… Até que aparece o João Franco.

Que também fecha o Parlamento e governa em ditadura.

Mas já tinha marcado data para a reabertura das Cortes.

Entretanto, na imprensa escreviam-se as maiores barbaridades, inclusive sobre o Rei.

Só para fazer uma ideia, um dos jornais radicais, O Patriota, tinha uma secção diária, na segunda página, chamada ‘O conde ladrão’, onde, com verdade ou inventando, se expunha diariamente a ladroagem do Conde de Tomar. Olhe que é forte, ter uma rubrica chamada ‘O Conde Ladrão’! Escreviam-se os maiores disparates, os maiores insultos. 

Mesmo em ‘ditadura’ havia uma grande liberdade de expressão.

Muito mais do que há hoje. Como pode ver por mim, que tive um processo de quatro anos por causa de um artigo que escrevi para o Público.

E como acabou isso?

Ganhei. Está encerrado.