Nasceu em 1961 num país que já não existe, a Jugoslávia. Mas a cidade, Sarajevo, ainda lá está. Haris Pašović estudou teatro na Sérvia e tornou-se encenador. Em 1993, durante o cerco de Sarajevo, organizou um festival de cinema e produziu À Espera de Godot, a peça de Samuel Beckett em que todos esperam por uma personagem que nunca chega. A encenação foi de Susan Sontag, então uma espécie de superestrela do mundo intelectual. Uma testemunha descreveu assim a estreia, a 17 de agosto de 1993: «Assim que as luzes se apagaram, senti-me como se estivesse num teatro da Broadway ou do West End em Londres. Ninguém na plateia emitia sequer um som. Durante aquelas duas horas, foi como se Sarajevo fizesse parte do mundo civilizado; não estava abandonada».
Pašović continuou sempre a fazer teatro, mas também cinema. Em 2012, para assinalar o 20.º aniversário do cerco, criou uma instalação ao ar livre com 11541 cadeiras encarnadas, perante as quais foi realizado um concerto. Cada uma das cadeiras representava uma pessoa que não tinha podido assistir porque morrera durante o cerco à cidade.
Entre as suas obras encontram-se também os documentários Greta, que conta a história de Greta Ferušić, que sobreviveu ao campo de extermínio de Auschwitz e ao Cerco de Sarajevo, e National Geography, sobre o genocídio de Srebrenica.
No ensaio Divine Uncertainty and Fall of Nationalism (A Incerteza Divina e a Queda do Nacionalismo), que escreveu para a BBC, recordou a história do seu avô, que estava a ajudar o pai na oficina de carpintaria familiar quando ouviu o disparo que matou o arquiduque Francisco Fernando, na manhã de 28 de junho de 1914.
Depois de várias visitas a Portugal, o encenador bósnio está de regresso, agora como curador da primeira edição do festival New Deal of Arts and Democracy, que decorre de 14 a 16 de junho em Aveiro. Um dos destaques do cartaz é a sua peça The World of Possibilities (Teatro Aveirense, sábado, 15 Junho, às 21h30), uma coprodução entre quatro países dos Balcãs que aborda o tema incómodo das pessoas com deficiência.
Pašović conversou com a LUZpor Zoom a partir de Belgrado. «Está muito calor aqui», queixa-se.
Esta é a primeira vez que vem a Portugal?
Não. Já estive em Portugal várias vezes. Fiz férias e tive algumas reuniões aí. Mas esta vai ser a primeira vez em que faço um espectáculo meu.
Esta peça que vai trazer a Aveiro – The World of Possibilities – do que trata?
É uma coprodução entre quatro países dos Balcãs – Bósnia, Sérvia, Croácia e Montenegro –, feita com o apoio do programa europeu Creative Europe. É uma peça sobre pessoas com deficiência e, em particular, pessoas com casos graves de autismo e paralisia cerebral. Fizemos uma pesquisa intensa, durante mais de um ano. Todos os papéis são interpretados por atores profissionais que passaram muitas horas junto de pessoas com deficiência e das suas famílias. E temos um músico profissional que é autista. Mas decidimos focar-nos, acima de tudo, nas pessoas que não conseguem sobreviver sem a ajuda ou o apoio de terceiros. O espetáculo é sobre isso: sobre essas pessoas com deficiência, mas também sobre a sociedade, sobre todos nós. O que é empatia? O que é solidariedade? O que é a luta pela vida? – olhando para estas pessoas, aprende-se muito sobre a luta pela vida, porque elas são grandes lutadoras. Há muitas questões sociais, políticas e metafísicas envolvidas. É um espetáculo, no fundo, sobre o significado da vida… e muito comovente. Devo dizer que os atores alcançaram um nível extraordinário de expressão. Conseguiram chegar muito fundo e muito perto de compreender as pessoas com deficiência. Espero que consigamos comunicar isso no palco.
Como se deu a aproximação a este mundo das pessoas com deficiência? Foi durante essa longa pesquisa ou já tinha tido algum contacto anterior?
Cresci num bairro onde havia uma escola especial para pessoas com deficiência. Logo em miúdo descobri que havia essas crianças que não tinham as mesmas possibilidades que eu. Digamos que foi um processo de inclusão natural. Eu e os meus amigos sabíamos que aqueles tipos tinham um problema, mas de certa forma eles estavam connosco, comunicávamos com eles, não estavam à parte. Muito mais tarde, em 2016, trabalhei numa peça que se chamava Pelo que darias a tua vida? [‘What would you give your life for?’], um espetáculo sobre pessoas que decidiram dar suas vidas por uma grande ideia. Umas vezes era uma ideia nobre; outras vezes era uma ideia perversa. De um lado, tínhamos jihadistas, nazis, kamikazes… Do outro lado estavam pessoas que tinham sacrificado as suas vidas pelos ideais de liberdade, pela luta contra o fascismo e assim por diante. Eu e os atores analisámos mais de 200 personagens diferentes da vida real. Até que a certa altura, eu disse: ‘E as pessoas que querem viver suas vidas mas encontram um obstáculo que as impede?’. E acabámos por entrar em contacto com uma instituição na Sérvia que trabalhava com pessoas com deficiência. Só que naquela altura não tínhamos tempo nem dinheiro para montarmos a peça. A ideia continuou comigo e, em 2022, o East West Center, a companhia independente de que eu sou diretor artístico, em Sarajevo, convidou os outros parceiros da Sérvia, Croácia e Montenegro para formar o consórcio e expandir essa pesquisa sobre o assunto. Candidatámo-nos ao programa Creative Europe, e recebemos um apoio que nos permitiu fazer essa pesquisa em três países. Foi assim que surgiu a peça.
Falando agora sobre o seu percurso, como começou a interessar-se pelo teatro, pela representação e pelas artes do palco?
É um pouco difícil dizer, porque olhando para trás parece que sempre fiz isto. Quando andava na escola primária fazíamos algum teatro no nosso bairro – mas toda a gente faz, não é? Para o final do secundário comecei a ir mais ao teatro e a encenar alguns espetáculos na minha escola. Acho que foi aí que percebi que era neste mundo que me sentia bem. Mais tarde candidatei-me à academia – não havia curso superior de encenador na minha cidade, Sarajevo, por isso fui para a Croácia. Não entrei, não me aceitaram, mas numa segunda tentativa, na Sérvia, em Novi Sad, quando tinha 19 anos, entrei. Desde aí tem sido um percurso fantástico no teatro – e no cinema, mas sobretudo no teatro.
Fui à procura do seu nome na biografia de Susan Sontag, por Benjamin Moser, e lá estava ele, com várias referências. Conheceram-se em Sarajevo?
Sim. Susan Sontag era uma grande referência para muitos de nós, que crescemos e nos formámos nos anos 70 e 80. Era uma mulher interessantíssima, forte, uma grande escritora apaixonada pela liberdade e uma pessoa verdadeiramente inspiradora. E, de repente, um dia conheço o seu filho, David Rieff, que também é jornalista e escritor, em Sarajevo. Ele levou Susan Sontag a Sarajevo, apresentou-nos e foi assim que a conheci. Nessa altura já fazíamos espetáculos de teatro. E ela disse: ‘Eu gostava de ajudar. Podíamos fazer qualquer coisa com teatro’. E eu respondi: ‘Isso seria maravilhoso’. Naquela altura era muito perigoso estar em Sarajevo. Se alguém se oferecia para vir e trabalhar connosco, sabia que estava a correr risco de vida. Mas ao mesmo tempo seria uma mensagem de enorme significado para o mundo exterior sobre o nosso sofrimento. Ela sugeriu que talvez pudéssemos fazer Dias Felizes, de Beckett. E eu para ela: ‘Sim, mas estamos aqui à espera, Susan’. Ela começa-se a rir e diz: ‘À espera de Godot’. Foi assim que tudo começou. Na altura eu era diretor do festival internacional de cinema e teatro e produzi essa peça, que acabou por se tornar lendária.
No início da década de 90 Sontag era uma enorme estrela do meio intelectual, tanto na América como na Europa. Mas tinha fama de ser uma pessoa difícil e um pouco conflituosa. O que achou dela nesse primeiro contacto?
Era uma pessoa difícil, de facto. Mas eu diria que o era na medida em que queria que as suas ideias e a sua compreensão do mundo fossem claras. E devo dizer que gosto de pessoas difíceis, gosto quando as pessoas têm uma personalidade forte. Ao mesmo tempo, ela fez imensos amigos em Sarajevo. As pessoas interpelavam-na na rua e ela era sempre muito simpática e ajudava-as, levando-lhes cartas e encomendas para fora do país, por exemplo. Sentia-se que tinha uma grande compaixão pelo povo de Sarajevo. Mas quando se tratava de discussões sobre aspectos morais e políticos, tornava-se muito dura. Também era uma pessoa muito divertida. Desde então, tornámo-nos amigos e ela veio muitas vezes a Sarajevo e eu também estive com ela muitas vezes em Nova Iorque, estive em casa dela, conheci os amigos dela – via-a no seu meio. Como você disse, ela era uma diva, uma diva intelectual, que sabia como provocar um forte efeito nos outros. A certa altura também chegou a trazer a Sarajevo Annie Leibovitz, que também é uma pessoa fascinante e uma grande artista. Quando Susan faleceu foi muito, muito triste. O filho convidou alguns de nós, seus amigos, para o funeral em Paris, no cemitério de Montparnasse, onde ela ficou enterrada a uns cem metros de Samuel Beckett.
Que pontaria!
Sem dúvida, uma estranha coincidência. Estava lá a Annie Leibovitz, o Salman Rushdie, a Isabelle Hupert e mais algumas pessoas próximas de Susan, foi uma pequena cerimónia privada. Mas a obra de Susan continua viva e relevante. Sentimos falta da voz dela. Uma das pessoas que vão participar no festival [de Aveiro] é Amber Massie-Blomfield, que foi diretora do Teatro Complicité, no Reino Unido, e escreveu um livro sobre teatro e resistência. Um dos capítulos desse livro é sobre Sontag. E é muito gratificante para mim ver uma jovem como Amber, que tem 30 e poucos anos, tão interessada no tempo que Sontag passou em Sarajevo durante o cerco. Estamos agora a desenvolver em parceria um projeto sobre Susan.
Sempre tive muita curiosidade em saber como seria a vida numa cidade em guerra – embora evidentemente não gostasse de o experimentar na pele. Durante o cerco de Sarajevo havia eletricidade e água nas torneiras? As pessoas, como você, podiam dormir descansadas à noite?
Não, não, não, de modo nenhum. Durante quatro anos houve bombardeamentos e tiros de snipers praticamente 24 horas por dia, com pequenos intervalos de cessar-fogo pelo meio, de cinco dias, três dias, um dia, às vezes nem isso. Não havia água corrente, tínhamos de ir aos poços da cidade buscar água todos os dias – os idosos, toda a gente… Até pessoas que moravam no 15.º ou no 20.º andar, e que não podiam usar o elevador porque não havia eletricidade. Tinham de descer esses 15 ou 20 andares a pé, caminhar dois ou três quilómetros, encher os baldes ou vasilhas, voltar o trajeto todo carregados, e finalmente subir aqueles 15 ou 20 andares pelas escadas até aos seus apartamentos. Todos os dias, até no inverno. Era muito, muito difícil.
As escolas e as lojas estavam abertas?
As escolas à superfície não estavam abertas. Mas havia escolas subterrâneas, os professores davam aulas aos miúdos nos abrigos, nas caves. Perguntou sobre as lojas. Nem por isso. Não havia nada quase para comprar, só nos mercados de rua. A cidade estava cercada, entrava muito pouca comida. E a que entrava era caríssima. Um ovo podia custar qualquer coisa como sete euros e um quilo de carne 80 euros. Era uma fortuna, as pessoas não tinham dinheiro para isso. Viviam de ajuda humanitária e de alguns vegetais que cultivassem nas varandas ou nos jardins – mas isso só dá para uma vez ou duas por ano, ninguém consegue produzir grandes quantidades de comida na varanda.
E podia continuar a trabalhar nessas condições?
Continuámos a trabalhar porque não havia nenhum sítio seguro nem hora do dia segura. Tanto podíamos ser mortos em casa como no escritório. Não fazia sentido ficar sentado em casa a um canto porque não era mais seguro do que o local de trabalho. Além disso, os artistas foram muito importantes para animar as pessoas durante a guerra, por exemplo dando espetáculos de teatro. Por exemplo, organizei o primeiro festival de cinema de Sarajevo durante o cerco, e também houve alguns concertos. Esses eventos culturais davam sentido à vida das pessoas. Por isso continuámos a trabalhar, mesmo sendo perigoso.
Apesar das dificuldades, não tem também boas recordações dos tempos de guerra na Bósnia? Por exemplo, da entreajuda.
Sim, claro. Houve muitos exemplos de solidariedade e de apoio. Mas no geral a guerra é horrível. E acho que essa é uma das missões da arte: comunicar com as pessoas por meio de obras artísticas a experiência da guerra. Você nunca esteve na guerra mas também não precisa de ir. Eu estive lá e posso contar-lhe, de uma forma artística, qual foi o nível de horror, de modo que você não precisa de vivê-lo por si.
Testemunhou esse tipo de horror pessoalmente, em primeira mão?
Quando vivemos em guerra, tudo é horrível. Vemos todos os tipos de horrores. Tive a sorte de não ser ferido – nem eu nem ninguém na minha família próxima. Mas muitas pessoas ficaram sem pernas, sem braços, outras perderam os filhos… É horrível.
Teve amigos ou familiares que combateram na guerra?
Sabe, esta não era uma guerra tradicional, como a da Ucrânia, em que as pessoas são mobilizadas para o exército. As cidades estavam cercadas e as pessoas tinham de ir defender as suas casas e a cidade. Conheci muitas pessoas simples, como você e eu, que não tinham recebido treino militar, mas tornaram-se guerrilheiros para defender o seu país. Por coincidência, esta manhã vi um vídeo muito famoso do início da guerra na Jugoslávia. Quando começa a agitação na Eslovénia, um repórter pergunta a um jovem soldado de 18 anos, por aí – na Jugoslávia toda a gente tinha de cumprir o serviço militar obrigatório –, o que se está a passar. E o jovem, muito resignado, responde: ‘Parece que os eslovenos estão supostamente a separar-se de nós e nós estamos supostamente a impedi-los. Só quero continuar vivo e voltar para casa’. Acho que é isso. Os jovens só querem ficar vivos e voltar para casa e para as suas vidas normais. Não querem sacrificar a saúde, os braços e as pernas, a razão e, em última análise, as suas vidas em prol dos interesses de alguém. É uma situação muito estranha. Tudo na guerra é horrível. Tudo. Não há nada que se aproveite.
Pelo que vejo nas fotografias, Sarajevo parece hoje uma cidade simpática, agradável. Mas ainda há cicatrizes da guerra, traumas – visíveis ou escondidos?
Tem razão, muitas zonas foram reconstruídas, vê-se edifícios novos, mas ainda há cicatrizes. Trinta anos depois ainda encontramos edifícios com buracos feitos pelos bombardeamentos. Mas diria que a maior cicatriz está na própria sociedade, porque as pessoas ainda vvem muito fechadas, encarceradas nos traumas da guerra. E isso também tem sido aproveitado por muitos políticos para alimentarem o conflito e continuarem a dividir as pessoas.
Mas você neste momento está em Belgrado [capital da Sérvia], e tem este projeto que é uma coprodução entre a Bósnia, a Sérvia, a Croácia e Montenegro. Parecem dar-se todos bastante bem.
Podemos viajar livremente, de todo o lado para todo o lado, isso já não constitui um problema. Eu cresci na Jugoslávia. Desenvolvi-me na Jugoslávia, era o meu país. Sei que hoje existem todas essas divisões – quando chego à fronteira tenho de mostrar o passaporte – mas no meu coração sinto que a antiga Jugoslávia ainda é o meu país. Muitas pessoas ou sentem isso também ou estão abertas ao diálogo. Especialmente entre os artistas, no meio cultural, fazemos muitos intercâmbios. Sim, há nacionalismo, há populismo em toda a parte. Mas ao mesmo tempo também há este espírito de colaboração, de reconciliação e de intercâmbio cultural.
Os Balcãs tiveram a sua dose de banhos de sangue e de carnificina desde, pelo menos, a batalha do Kosovo, em 1389. E depois, claro, foi uma região muito castigada durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Como olha para o regresso da guerra à Europa, com a alegada «operação especial» de Putin na Ucrânia?
Acho que é horrível. Estou mesmo angustiado, desolado e triste com o que está a acontecer: em primeiro lugar na Ucrânia – o que a Rússia fez foi uma agressão –, e depois a guerra entre Israel e o Hamas, que também está a afetar a Europa. A guerra é a pior coisa que podemos imaginar. E é feita exclusivamente pelo homem. Não é um desastre natural, como uma inundação ou um terramoto. É criada por pessoas e pode ser terminada pelas pessoas. Pode terminar a qualquer momento desde que os envolvidos a queiram terminar. É por isso que me sinto tão apavorado e revoltado: é que temos tantos outros problemas com os quais devíamos lidar. Temos um problema climático sério, temos o legado pós-colonial que deixou milhões de pessoas em África e em muitas zonas da Ásia em condições horríveis – e que as obriga a migrar. Não resolvemos nada disso. Temos todo este desenvolvimento tecnológico acelerado que não sabemos para onde caminha, especialmente a inteligência artificial. E em vez de nos concentramos nestas questões e de nos comportarmos como uma espécie civilizada, envolvemo-nos em guerras. Dizemos que somos a espécie mais avançada, a espécie mais inteligente à face da Terra. O facto é que somos a mais primitiva. Somos a única espécie que mata os seus próprios membros em massa, incluindo os mais jovens. Não vemos os corvos a atacarem outro bando de corvos. Isso só acontece entre as pessoas. E é por isso que precisamos da cultura e do diálogo, para promover a civilização e a comunicação, e acabar com as guerras de uma vez por todas. Mas claro, há sempre os interesses do grande capital, a produção de armas e munições, e agora drones e todos esses meios modernos, além das ideias nacionalistas. Tudo isso ameaça a espécie humana. Apesar de sermos 9 mil milhões de pessoas no planeta, ainda não aprendemos a proteger-nos a nós próprios.