É manifesto que existe uma enorme crise da justiça em Portugal, em grande parte devido à falha do poder político em a dotar dos recursos necessários. No entanto, a única coisa que se tem falado nos últimos tempos sobre a Justiça é num manifesto de 50 personalidades, a que se juntaram outras 50, que desvaloriza totalmente a situação existente. No seu entender, apesar de «a morosidade na jurisdição administrativa e tributária e na investigação criminal [ser] o fenómeno mais persistente, existem muitas outras falhas que em nada são compatíveis com o Estado de Direito Democrático». Entre essas falhas encontrar-se-iam «as recorrentes quebras do segredo de justiça» e «o já habitual espetáculo mediático, nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos». É curiosa a exclusiva preocupação dos subscritores do Manifesto em relação aos agentes políticos, quando em relação a tantos outros cidadãos se têm verificado espectáculos mediáticos semelhantes.
Mas o que propõem os subscritores do manifesto? Nada menos do que o controlo político do Ministério Público, culpado de tudo o que está mal no país. Segundo eles vimos «a ação do Ministério Público gerar a queda de duas maiorias parlamentares». Que se saiba, as maiorias parlamentares caíram porque o Presidente da República as entendeu dissolver, e só fez isso porque os chefes de Governo se demitiram por sua livre iniciativa, quando nada os obrigava a fazê-lo. E a seguir houve eleições e os eleitores entenderam não renovar essas maiorias parlamentares. Mas naturalmente que o Ministério Público tem que se considerar o único culpado dessa situação.
Sustenta-se assim que os «magistrados do Ministério Público, sem qualquer mandato constitucional, têm, na prática, um poder sem controlo, quer externa, quer internamente, desde logo, pela assumida desresponsabilização da Procuradora-Geral da República pelas investigações». Por isso, os signatários propõem-se «reforçar os meios de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário e implementar mecanismos de escrutínio democrático externo, designadamente através de relatórios periódicos a apresentar à Assembleia da República pelos órgãos de governo institucional das diferentes magistraturas e sua apreciação nas comissões parlamentares competentes». Ou seja, aos subscritores do manifesto não basta que o poder político designe membros para os conselhos superiores de magistrados, aos quais incumbe a sua classificação para efeitos de progressão na carreira, como ainda propõem que esses conselhos respondam perante comissões parlamentares, não vá dar-se o caso de os escolhidos decidirem ter alguma independência no exercício das suas funções.
Na legislatura anterior, o Parlamento decidiu colocar a Ordem dos Advogados sob controlo do poder político, projecto que concretizou nas alterações ao seu Estatuto. Agora invocando igualmente «uma cultura de perfil corporativo, que manifestamente predomina no Ministério Público», surge uma manifesta tentativa de estender esse controlo político ao Ministério Público, prontamente acolhida pelo Presidente da República ao receber os subscritores do Manifesto.
No Manifesto afirma-se que «numa democracia constitucional, como a nossa, nenhum titular de cargo público é irresponsável pelas decisões e pelas suas falhas perante a coletividade». Onde o país tem fracassado sistematicamente é na responsabilização dos políticos pelas suas decisões e pelas suas falhas perante a colectividade e parece que assim vai continuar