Frederico Lourenço. ‘Cada vez mais me convenço de que Os Lusíadas são também imagens’

Numa conversa a propósito do 10 de Junho e de uma nova antologia de Camões, Frederico Lourenço e Francisco José Viegas falaram sobre a vida do poeta, a forma como Os Lusíadas foram lidos ao longo dos séculos e a outra obra mítica da literatura portuguesa.

A ideia de uma antologia de Camões nasceu numa manhã em Braga, a alguns passos da velha sé. Mas a parceria vem de trás – e tem produzido abundantes frutos. «O Francisco e eu conhecemo-nos em 2003, quando ele me convidou para uma entrevista televisiva», recorda Frederico Lourenço. Voltaram a encontrar-se na Feira do Livro do Porto, em 2015, e iniciaram «o diálogo que continua até hoje». Quanto a Francisco José Viegas, não poupa elogios ao professor e tradutor: «O que eu admiro mais no Frederico, para lá das suas qualidades pessoais, humanas, é a extraordinária capacidade de trabalho e a paixão que dedica aos textos e à tradução. E um entusiasmo maravilhoso, que alia à sua dimensão académica».

Tomando como ponto de partida o 500.º aniversário do poeta e a publicação de Camões – Uma Antologia, Francisco José Viegas – editor da Quetzal – e Frederico Lourenço – professor de línguas e literaturas clássicas em Coimbra, tradutor de Homero, de Horácio, de Vergílio e da Bíblia – juntaram-se a 10 de junho na Feira do Livro para uma conversa a dois.

FJV: Vamos conversar um bocadinho sobre Camões, hoje é o dia próprio para isso. E lembrei-me, a esse propósito, que sabemos que foi neste dia que Camões morreu, em 1580. Achas que o poema que aqui foi lido – ‘O dia em que eu nasci moura e pereça’ – indica a data de nascimento de Camões?

FL: Essa é uma pergunta que muitos estudiosos de Camões já fizeram. De facto, sabemos que hoje, dia 10 de Junho, é o dia da morte de Camões em 1580. Existe um documento que está na Torre do Tombo, de 1582, que foi redescoberto no século XIX e que confirma a pensão, antes atribuída a Camões, à mãe dele. No século XVII, acreditava-se que Camões tinha morrido em 1579. Mas a data certa é mesmo 1580, dia 10 de junho. Portanto, fazem…

FJV: 444 anos. 4-4-4. Atenção, cabalistas.

FL: Agora, nenhuma fonte nos diz o dia em que Camões nasceu, nem o ano, nem a localidade – se ele nasceu em Lisboa, se nasceu em Coimbra, como algumas pessoas pensavam no século XVII e também no século XIX.

FJV: Quando tudo acontecia em Coimbra…

FL: Se imaginarmos que ele nasceu em 1524, ainda não estava muita coisa a acontecer em Coimbra porque foi só em 1537 que D. João III transferiu a Universidade de Lisboa para Coimbra. Houve um estudioso de Camões, chamado Mário Saa, que escreveu um livro defendendo a teoria de que este soneto [‘O dia em que eu nasci moura e pereça’] cripticamente indica o dia e o ano do nascimento de Camões. E uma colega minha da Universidade de Coimbra, Carlota Simões, que é professora da área de Matemática, também fez agora um novo estudo em que defende que Camões terá nascido a 23 de Janeiro de 1524. Portanto, estamos certos na nossa celebração dos 500 anos.

FJV: Estaríamos sempre certos! Mas isso lembra-me uma coisa. O Bill Bryson, que escreve uns livros de 1000 páginas, 700 páginas, quando escreve uma biografia de Shakespeare, são 180 páginas. A grande surpresa dessa biografia foi ser o livro mais pequeno que ele tinha escrito. E perguntaram-lhe: ‘Porquê tão pequeno?’. E ele disse: ‘É que só tenho três documentos. A cama que Shakespeare incluiu no testamento e outros dois’. No caso de Camões também não conhecemos assim tantos documentos. Como se explica que já tivéssemos gasto sete minutos a falar? E porque é que há tanta gente que fica absolutamente fascinada com a biografia de Camões?

FL: Acho que o facto de se saber tão pouco torna a vida de Camões uma espécie de tela em branco em que cada pessoa pode projetar um pouco aquilo que gostaria que vida de Camões tivesse sido. Como dizes, há poucos documentos. Praticamente a única coisa que sabemos dele é que foi preso em 1552, partiu para a Índia em 1553 e voltou para Portugal em 1569. Outra data certíssima é a da primeira edição d’Os Lusíadas, em 1572, e a data de morte. Outras coisas de que as pessoas falam – como os estudos em Coimbra ou não – são suposições. Mesmo o serviço militar em Ceuta, em que ele terá perdido o olho direito. Algumas imagens mostram o olho esquerdo. Mas as fontes mais antigas falam no direito. Parece ter sido esse que sofreu a lesão. Agora, se foi em Ceuta, se foi na Índia, se foi noutro lugar qualquer, não sabemos ao certo. São suposições.

FJV. Outras suposições têm a ver com as mulheres de Camões. Será legítimo falar também sobre os homens de Camões? Há vários personagens masculinos a quem ele dedica poemas. Como é a vida afetiva de Camões?

FL: De facto, Os Lusíadas são dedicados a D. Sebastião, mas existem outros poemas de Camões dedicados a grandes nobres portugueses, desde logo ao Duque de Aveiro, D. Manuel de Portugal, e a D. António de Noronha, que sabemos que morreu com 17 anos em Ceuta. Mas há todas as especulações, e não só minhas: porque é que Camões dedicou tantos poemas a D. António de Noronha? No século XIX, um grande especialista alemão, o Wilhelm Storck, apresentou a suposição de que Camões tinha sido precetor em casa de D. António de Noronha. D. António de Noronha fazia parte da família Meneses, dos marqueses de Vila Real, que tinham estado no epicentro, digamos assim, da introdução do humanismo em Portugal. No final do século XV veio para Lisboa um siciliano chamado Cataldo Parisio e D. João II contratou-o para ser seu secretário e sobretudo para o Rei português poder escrever cartas ao Papa que não fossem no latim talvez ainda um bocadinho tosco que as pessoas utilizavam antes do Renascimento. Cataldo veio para Lisboa e, além de ter tido essa função de secretário de D. João II, foi também professor de latim de alguns membros da nobreza. E a família Noronha estava dentro desse ambiente. Nós associamos a fidalguia portuguesa só a touradas, mas no início do século XVI havia pessoas muito, muito cultas, que eram capazes de escrever e falar em latim do mais requintado. Camões esteve nesse meio. E o facto de ter dedicado cinco ou seis poemas a D. António de Noronha dá-nos a entender que pelo menos havia uma afinidade intelectual muito grande e que essa família terá tido um papel mecenático relativamente a Camões. Uma coisa que se diz nas biografias do século XVII é que ele foi sempre muito pobre. Mas essas famílias certamente o ajudaram e reconheceram, é impossível não terem reparado que ele não era um rapaz igual aos outros, que tinha um talento, uma inteligência fora de série. Nós somos os homens dos livros. No século XVI também havia livros, mas eram muito caros. Como é que Camões conheceu tanto da literatura latina, italiana, espanhola? Havia bibliotecas privadas particulares e havia as bibliotecas das instituições eclesiásticas. Uma das chaves para mim da vida de Camões não é tanto a questão de quem foram as mulheres que ele amou, mas como é que ele adquiriu essa cultura absolutamente extraordinária.

FJS: Isso é muito engraçado porque a tua Antologia, no fim, indica uma série de fontes. De onde é que Camões poderia ter trazido este verso? De onde é que ele poderia ter trazido esta imagem? Vamos às fontes de Camões para ver de que forma é que esse rapaz talentoso, inteligente, que teve uma educação esmerada, transportou os clássicos para a sua poesia.

FL: No século XVII, quando se começou a escrever sobre Camões e quando começaram a fazer edições comentadas de Camões, era tido como certo que a chave para entender seja Os Lusíadas, seja a poesia lírica, é perceber quais são os textos que ele está a citar, que ele está a propor ao leitor como jogo de decifração – será que o leitor vai perceber aquilo a que ele se está a referir? E houve uma obra extraordinária, feita por um homem chamado Manuel de Faria e Sousa, que nasceu perto de Felgueiras no final do século XVI, estudou em Braga e viveu em Espanha. E foi em Espanha que escreveu um comentário gigantesco a Os Lusíadas e às Rimas, em que tentou registar todas as fontes latinas e gregas que Camões teria utilizado. Essa obra é tão monumental que muitos pensaram: ‘Não vale a pena fazer mais nada, porque já está feito’. Mas não está. Eu tenho muita admiração por Faria e Sousa, mas já detetei várias coisas que é preciso corrigir. O problema é que hoje a maior parte das pessoas não tem o acesso à literatura da Antiguidade clássica que era normal no tempo de Camões.

FJV: Achas que um leitor que tenha contacto com os clássicos – Horácio, Vergílio… – está mais preparado para ler Camões?

FL: Sim. Tanto Vergílio como Horácio, como Ovídio, podem estar escondidos onde ninguém estava à espera de os encontrar, como nas redondilhas ‘Sôbolos rios que vão’, que são uma glosa a um salmo do Antigo Testamento. É o gato escondido com o rabo de fora. É importante ter esse horizonte, esse mapa das leituras de Camões. E foi isso que tentei fazer na Antologia, na parte dos comentários: ajudar as pessoas a descobrirem quais são os lugares – os loci, como se diz em latim – da poesia antiga em que Camões se inspirou para construir um edifício poético – e esse é o paradoxo – que é totalmente original. Como o Vasco Graça Moura dizia, Camões tem aquela ‘guinada’. Quando a pessoa lê um poema de Camões percebe que é outra coisa, um universo próprio.

FJV: Vamos centrar-nos agora na Antologia, que inclui a Lírica e Os Lusíadas. Como chegaste à escolha destes fragmentos d’Os Lusíadas e depois a esta seleção da Lírica? Podíamos começar por regressar a um certo dia em Braga, onde falámos pela primeira vez.

FL: Estávamos muito perto da Sé de Braga, quando este projeto começou a tomar forma.

FJV: Podemos dizer que também tínhamos comido uns bolinhos maravilhosos…

FL: Vocês comeram, eu não… [risos] Pensando um bocadinho no Homero e nos velhos rapsodos que tinham como função divulgar a poesia de Homero, a minha intenção foi fazer uma rapsódia a partir d’Os Lusíadas. Muitas pessoas são da opinião que a Ilíada originalmente era um poema muito mais curto, que Homero foi aumentando ao longo da vida. E eu pensei: e se Camões tivesse escrito Os Lusíadas da mesma forma? Ou seja, escreveu primeiro aquilo que ele considerava o essencial do poema e depois foi acrescentando outros episódios…

FJV: Que não fossem tão essenciais para a narração, mas que trouxessem um ornamento, um embelezamento.

FL: Então tentei descobrir o que seriam Os Lusíadas nessa sua forma original. Muitos estudiosos de Camões estão de acordo na ideia de que Camões não escreveu Os Lusíadas começando no primeiro verso – ‘As armas e os barões assinalados’ – e terminando no último verso do Canto X. Foi escrevendo. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, nos anos 20 do século XX, achou que tinha conseguido confirmar isso mesmo. E a minha ideia foi essa: tentar surpreender o que seria a semente… enfim, a essência d’Os Lusíadas.

FJV: É também uma espécie de teoria da composição.

FL: De alguma forma sim, especulativa, mas sobretudo a ideia de os leitores conseguirem ler esta seleção d’Os Lusíadas sem lhes faltarem peças fundamentais. A questão da escolha é sempre complicada, porque a pessoa, no fundo, gostaria de escolher o poema na íntegra e as rimas na íntegra, mas isso daria talvez um livro com 1500 páginas.

FJV: O teu editor não deixou…

FL: Mas acho que conseguimos um meio-termo que permite uma leitura fluida, corrida, do princípio ao fim. Temos aqui, diria, 70% d’Os Lusíadas. E a pessoa que ler fica com uma ideia clara e fundamentada do que é o poema.

FJV: Como leitores de Camões – pelo menos isso aconteceu comigo – temos oscilações de alma. Há uma idade em que lemos Os Lusíadas. Depois apaixonamo-nos pelos sonetos, apaixonamo-nos pela Lírica. Depois, de repente, temos um clarão e voltamos a Os Lusíadas. E há uma questão central na nossa identidade, na nossa memória, que é o facto de Os Lusíadas terem servido para justificar uma visão do Império, uma visão da História. E é curioso estarmos a celebrar Os Lusíadas no mesmo ano em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril. Aquilo que muitas pessoas da minha geração se perguntam é: que leitura podemos nós fazer hoje d’Os Lusíadas? Os Lusíadas foram ou não foram definitivamente inquinados por essa visão imperial que lhes estava colada no anterior regime? Jorge de Sena, que foi comissário das primeiras comemorações do 10 de Junho depois do 25 de Abril, disse logo: ‘Vamos libertar Os Lusíadas’. Que sentido faz hoje ler Os Lusíadas a uma luz ou a outra?

FL: Temos de ter uma visão histórica do livro. D. Sebastião morreu poucos anos depois da publicação d’Os Lusíadas – houve Alcácer-Quibir – e a partir de 1580 deu-se a chamada União Ibérica, a Monarquia dual. O ambiente em que as pessoas em Portugal liam Os Lusíadas mudou radicalmente do dia para a noite. Ler Os Lusíadas em 1572, quando D. Sebastião ainda era vivo e Portugal era um país independente, era muito diferente de lê-lo depois disso. A partir de 1580, ler Os Lusíadas começou a dar muita autoestima aos portugueses. E as pessoas começaram a pensar: ‘O nosso maior poeta escreveu uma obra fantástica e só um livro é que foi publicado? Onde estão as outras obras dele?’ Então, 15 anos depois saíram as Rimas de Camões e também as de Sá de Miranda e de António Ferreira, autores que não tinham sido assim tão considerados quando eram vivos, o que é uma coisa muito portuguesa. Na fase seguinte, com a Restauração, no final do século XVII e mesmo no século XVIII, as pessoas não liam Os Lusíadas com os olhos com que nós lemos. E depois vem o século XIX, vem a perda do Brasil, vem a perda desse império que Camões cantava…

FJV: O ultimatum…

FL: E cada vez mais as pessoas liam Os Lusíadas com esse sentimento de autoestima. ‘O país está cheio de problemas, mas temos uma razão para nos sentirmos orgulhosos, que é este poema que diz que nós somos os melhores do mundo’. Depois vem o Estado Novo, que, claro, encontra neste livro a melhor justificação possível para muitas das suas políticas. Ao mesmo tempo, em Itália, Mussolini quis que todos os italianos lessem um poema que Vergílio tinha escrito há dois mil anos, e financiou edições críticas fantásticas desse poema e fez monumentos a Vergílio. Era uma época em que toda essa política viu em poemas como Os Lusíadas e a Eneida uma espécie de Bíblia que confirma a legitimidade do Império. É preciso também dizer que antes do 25 de Abril houve um grande pensador português a quem penso que não se dá o mérito que merece. António José Saraiva foi um homem clarividente e um grande leitor de Camões. E atreveu-se, em 1959, em pleno salazarismo, a propor uma contra-leitura d’Os Lusíadas. Foi a primeira pessoa a dizer que Os Lusíadas não são só essa glorificação do Império Português, também chamam a atenção para os problemas desse império. No Canto X, uma divindade pagã prevê as futuras conquistas dos portugueses. Mas se lermos com atenção, o que é que Camões coloca na boca dessa ninfa? São autênticos crimes de guerra. Penso que devemos ler este livro das duas perspetivas. Temos esse grande conseguimento do Portugal renascentista, do Portugal humanista, do Portugal de pensadores, navegadores, pessoas cultas, poetas, artistas – todos eles são celebrados n’Os Lusíadas. Mas temos também esse outro lado. António José Saraiva propôs a ideia de que Camões colocou a figura do Velho do Restelo como retrato de si próprio, de que toda aquela resistência do Velho do Restelo em relação aos Descobrimentos representa a opinião do próprio Camões. Tenho até dificuldade em entender como é que a censura permitiu que esse livro fosse publicado.

FJV: Eu, quando leio uma história da literatura universal, vou ver a opinião sobre Camões. E lembro-me, por exemplo, da primeira vez que li um texto do Harold Bloom sobre Camões e sobre Os Lusíadas. É um dos 100 livros que Harold Bloom escolhe. Jacques Barzun, quando faz a sua grande história da cultura do Ocidente, elege-os como um ponto alto. E eles têm sempre essa tentação que é de comparar com a Eneida. Bloom diz: ‘Bom, isto é muito superior à Eneida’. No caso do Barzun, diz: ‘Está ao nível da Eneida’. É justa essa comparação?

FL: A comparação é justa. Em termos de conseguimento artístico, não tenho dúvida nenhuma de que Os Lusíadas estão à altura da Eneida. Acho que a Eneida tem uma universalidade que talvez não seja tão fácil de encontrar n’Os Lusíadas, a universalidade de contar uma história que continua atual. Hoje, no Mar Mediterrâneo, há barcos que estão a tentar chegar a Itália com refugiados. Muitos deles vão morrer afogados, outros vão conseguir. Isso é a história da primeira parte da Eneida. A segunda parte da Eneida é a história de pessoas que chegam a uma terra que não é delas e impõem: ‘Isto a partir de agora é nosso’. Em países que tiveram um império e colónias, esse é um debate que estamos continuamente a fazer. Essa dimensão tão obviamente universal falta, a meu ver, a’Os Lusíadas.

FJV: O que nos leva a pensar se o Vasco da Gama seria um personagem tão maravilhoso como Ulisses ou Eneias…

FL: Isso não era de certeza. Acho que a pessoa histórica deixava um bocadinho a desejar. Mas uma questão importante é a motivação da viagem. Qual foi a razão de irem à Índia? Levarem a fé católica. O próprio Faria e Sousa diz que se não fosse isso de levar a fé católica à Índia, os descobrimentos portugueses teriam sido todos péssimos. Mas eles não vão à Índia se não para promover a economia portuguesa. Essa é a única razão. Diferentemente da viagem da Eneida, que é uma viagem de sobrevivência de pessoas que estão a fugir de uma guerra. Agora, temos é de ler Os Lusíadas entendendo a mensagem que a maior parte das pessoas não lê.

FJV: Qual é essa mensagem?

FL: É o último livro d’Os Lusíadas. Não só há essa descrição das futuras conquistas dos portugueses que chegam à Índia e basicamente matam pessoas, como há outra secção fundamental do Canto X, que é a história do apóstolo Tomé. As pessoas dizem: ‘Camões pôs Tomé porque leu em Ariosto e Ariosto falou em Tomé’. Ariosto dedica dois versos a Tomé, Camões dedica dez estâncias. Dá-lhe uma importância enorme. Tomé chega à Índia, fala com as pessoas que lá encontra, muitas dessas pessoas ficam encantadas com a mensagem que ele traz. Outras não gostam e começam a planear matá-lo. No fim, Tomé sofre todas as violências até à morte, sem nunca levantar o dedo para fazer mal a ninguém. E isto é o último exemplo que Camões dá n’Os Lusíadas, antes de terminar com a parte final dedicada a D. Sebastião. A mensagem é claríssima: a única maneira de entrar em diálogo com os outros povos é pela não-violência.

FJV: Antes do Canto X vem o célebre Canto IX, que todos nós mitificámos, do género: ‘Ah, na escola não líamos o Canto IX’. Não é verdade. Líamos o Canto IX. Tendo em conta que falamos do século XVI, a Inquisição estava distraída? Houve uma distracção fatal? O inquisidor não leu? [risos]

FL: Perguntamo-nos como é que o livro de António José Saraiva saiu em 1959. Isso não é nada em comparação com esta dúvida. Como é possível o Canto IX num livro que tem no frontispício a autorização da Inquisição? É uma orgia ao ar livre, não há outra maneira de olhar para tudo aquilo.

FJV: Acho que foi por ser ao ar livre que passou… [risos]

FL: Ou então por estar no canto IX. Era preciso ler muita coisa para chegar lá. Talvez Camões tenha planeado isso muito bem. Talvez tenha partido do princípio: ‘Se eu puser isto no penúltimo canto, talvez eles não cheguem tão longe e não leiam’. Eu diria que é se calhar a parte mais universal d’Os Lusíadas. É a parte que tem que ver com a importância do amor, da sexualidade, que são, claro, duas realidades que Camões vive muitas vezes de forma desesperada, atormentada. Camões escreve permanentemente sobre amores que não dão certo, como nós dizemos hoje em dia, mas no Canto IX d’Os Lusíadas, sim, dá certo. O sexo e o amor são coisas que não trazem frustração, como acontece na Lírica de Camões. São só felicidade e êxtase.

FJV: Já merecíamos! Gostava agora de entrar nas Rimas, na Lírica. Durante algum tempo não se sabia bem o que era de Camões ou não era, e a certa altura houve uma autêntica loucura: se é bom, é de Camões. Como se chegou finalmente à fixação desse corpus?

FL: Não se chegou. O debate continua. No meu romance Pode um desejo imenso temos um grupo na Universidade de Lisboa a tentar fazer uma edição crítica das Rimas de Camões. Ainda estamos à espera que essa edição aconteça. É preciso ver que na altura não era fácil publicar em Portugal literatura que não fosse religiosa – Os Lusíadas são a grande exceção. Camões escreveu os seus poemas, deixou os seus manuscritos, e há uma informação de Diogo do Couto, que era amigo de Camões, dizendo que ele tinha reunido um livro chamado Parnaso. Mas esse manuscrito, que continha talvez a poesia lírica completa de Camões, organizada pelo próprio Camões, foi roubado. Se alguém alguma vez encontrar num arquivo, numa biblioteca ou numa leiloeira internacional o Parnaso de Camões, penso que o Governo português vai ter de desembolsar alguns milhões de euros para comprar esse livro mítico da literatura portuguesa. Esse manuscrito foi roubado, mas os poemas existiam. E em 1595, 15 anos depois da morte de Camões, sai a primeira edição da sua Lírica. Esse livro teve um sucesso tão grande que teve logo uma segunda edição em 1598, com mais poemas. E quando veio uma nova edição, acho que em 1607, mais poemas. E mais e mais. Até ao século XIX, cada nova edição da Lírica de Camões trazia mais poemas. Era como se os poemas de Camões brotassem do chão. No fundo, há 400 sonetos que foram atribuídos a Camões ao longo da história. Mas acho que nenhum estudioso acreditaria que ele os escreveu todos. É um pouco como o Francisco estava a dizer: poemas anónimos que eram encontrados em cancioneiros, se eram bons, eram de Camões; se não eram bons, desvalorizava-se. Mas houve um professor da Faculdade de Letras de Coimbra, chamado Álvaro Júlio da Costa Pimpão, que fez uma edição das Rimas de Camões que ainda hoje me parece ser uma edição com um mérito extraordinário. E penso que é consensual entre os estudiosos de Camões que os poemas que o Professor Costa Pimpão escolheu para figurarem na edição das Rimas foram de certeza escritos por Camões e dão uma base adequada para se trabalhar a análise do corpus lírico de Camões.

FJV: Por falar em análise: a que fazes d’Os Lusíadas e da Lírica é magnífica. Mas aqui há um pequeno grão. Quando avançamos e chegamos a certas zonas da Lírica, percebe-se como tu amas mesmo, a expressão é essa, e tens uma relação muito apaixonada com algumas canções.

FL: Acho que essas dez canções que saíram na primeira edição de 1595 são obras-primas da história da literatura universal. São absolutamente geniais. Outras canções foram mais tarde atribuídas a Camões. Mas penso que essas dez são perfeitas. E não é por acaso que Os Lusíadas é um conjunto de dez cantos, as Bucólicas de Vergílio são dez, o primeiro livro das Sátiras de Horácio são dez sátiras. O número dez era um bocadinho mágico para um livro de poesia.

FJV: Traduziste Homero, traduziste Vergílio, traduziste Horácio, traduziste os Evangelhos, e isso transforma-te num leitor especialmente preparado para Camões. Mas há uma pergunta que todos nós, teus leitores, temos: como é que nasceu esse interesse, essa paixão, que te transformou também num camoniano?

FL: Os meus pais eram ambos pessoas muito cultas e a minha mãe tinha sido aluna, na Escola Francesa de Lisboa, do famoso Roger Bismut, um francês que foi um grande especialista de Camões. E um dos trabalhos que ele dava aos alunos era traduzirem sonetos de Camões para francês. Portanto a minha mãe conhecia muito bem a obra lírica de Camões, sobretudo os sonetos, e sempre ouvi falar de Camões. Mas quando fiz o nono ano tive de ler Os Lusíadas e devo confessar que tive muita dificuldade, pelo facto de ter passado a infância em Inglaterra. E acabei por comprar uma tradução inglesa. Mas o que me deu a porta de acesso a Camões foi a licenciatura em Estudos Clássicos, que fiz aqui na Universidade de Lisboa. De repente estava no meu ambiente, naquela linguagem, e depois de fazer o doutoramento bateu uma paixão enorme. Eu nunca me tinha dedicado muito à literatura portuguesa – claro que adorava Fernando Pessoa, e tinha os meus poetas preferidos, como Sophia. Mas reli Camões e então bateu de facto, uma paixão enorme, paixão essa de que nasceu o romance Pode um desejo imenso. Durante mais ou menos dez anos, escrevi bastantes estudos académicos sobre Camões. Mas parei com Camões durante aqueles anos em que me dediquei mais ao estudo da Septuaginta, e em que me dediquei a conhecer como a palma da minha mão Vergílio e Horácio. Isso permitiu-me descobrir elos que ninguém tinha referido ainda. Horácio está presente permanentemente em Camões. Houve uma pessoa que intuiu isso. De forma muito inovadora, Vergílio Ferreira escreveu um artigo nos anos 40 em que propôs que se formos às edições de Horácio que eram utilizadas no início do século XVI encontramos as respostas para muitos dos enigmas da poesia camoniana.

FJV: Nem todos nos formámos em Clássicas, como Vergílio Ferreira ou como Frederico Lourenço. Mas é muito bom contar com esta lição sobre a construção da obra de Camões que o Frederico nos deu. Escreves no prefácio que gostarias de fazer uma antologia mesmo para quem nunca leu Camões. Que conselhos darias a quem começasse agora a ler Camões?

FL: O meu conselho seria começar pela lírica e justamente pelos sonetos. E depois, com uma certa preparação, a pessoa pode ler Os Lusíadas com o prazer com que se olha para uma obra de arte extraordinária, como um quadro de Ticiano. Camões e Ticiano – Camões talvez na Índia, Ticiano em Veneza – ambos se fascinaram com o mito de Acteon e Diana, que é o que está na imagem da capa. As cores de Ticiano têm muito que ver com a estética d’Os Lusíadas – porque, além da linguagem, dos latinismos, cada vez mais me convenço de que Os Lusíadas são também imagens. Têm uma beleza arquitetónica por causa da construção exímia do poema, e têm a dimensão pictórica, por causa da beleza das imagens, das cores. É uma obra de arte completa.

FJV: A antologia termina com um texto de ficção que é uma espécie de uma viagem ao século XVI. Depois da antologia, depois dos comentários carregados de erudição, um texto de ficção. Porquê?

FL: É um texto em que eu me imagino não como um professor de Latim e Grego, mas como um pintor. Estou num palácio junto ao Tejo de um desses grandes fidalgos, numa sala do século XVI, com uma tela, tintas, pincéis. E tenho Camões à minha frente. A situação é essa. É o meu retrato de Camões.