Diz-se que nas cavernas já havia quem se divertisse aos chutos em fruta, calhaus ou até em crânios. O futebol terá tido um número infindável de percursores, outros jogos e brincadeiras com algum objeto cilíndrico. Os historiadores remontam as suas origens ao hábito dos maias fazerem os primeiros passes e remates, com a cabeça dos adversários derrotados, mas do Egipto à China, passando pela Roma Antiga, não faltam vestígios dessa afinação das regras que hoje são mais familiares que os dez mandamentos na maioria dos bairros onde os miúdos se amatilham. O futebol tornou-se o mais fervoroso dos cultos, ganhou uma expressão planetária que exalta mais os fiéis do que qualquer uma das grandes religiões, é um culto exuberante e que tantas vezes serve ao adepto ou fanático para exorcizar um quotidiano apagado, em que este se vê submetido a inúmeras formas de servidão.
«A omnipotência do domingo esconjura a vida obediente do resto da semana, a cama sem desejo, o emprego sem vocação ou a ausência de emprego. Libertado por um dia, o fanático tem muito de que se vingar», refere Eduardo Galeano, nesse já clássico guia a este fenómeno – Futebol ao Sol e à Sombra (ed. Antígona) –, em que o escritor uruguaio se confessa um «mendigo de bom futebol», alguém que passou tantos domingos a suplicar nos estádios, não pela vitória da sua equipa ou nação, mas por uma boa jogada – «pelo amor de Deus».
No fundo, é isto o que distingue o verdadeiro amante do jogo, desse fanático que já nem olha para o que se passa dentro das quatro linhas, mas que parece um “epilético”, reagindo ao que tem lugar na bancada, que é o seu campo de batalha. «O fanático é o adepto no manicómio», diz-nos Galeano. «A mania de negar a evidência acaba por meter a pique a razão e tudo o que se assemelhe, e os vestígios do naufrágio navegam à deriva nessas águas fervilhantes, sempre alvoroçadas pela fúria sem tréguas».
Como sabemos, os pulmões não se dilatam com serenas alegrias e suaves contentamentos, e o que o futebol providencia é essa atmosfera carregada, uma mitologia imensamente dinâmica, volúvel, de tal modo que permite que a alma humana venha ali descobrir esses signos e artifícios que lhe permitam ver exteriorizadas as lutas incríveis que arrasta na sombra. É um modo de confrontar o desalento, toda essa força aprisionada, todo esse conteúdo de resignação e rituais a que cada homem se sujeita diariamente, e que são hostis à crença e às paixões. A verdade é que quase ninguém hoje se reconhece na vida que levamos, e o espírito busca formas de correspondência com os antigos embates que estavam no centro das tradições mitológicas. Não é raro por isso assistir à perplexidade com que alguns encaram este passatempo mais ou menos frívolo, mas capaz de mobilizar essas massas fervilhantes, despertando em nós um temor ancestral sempre que nos cruzamos com uma dessas centopeias ameaçadoras, esse organismo que retira a sua força dos números, e de uma disposição para a delinquência, onde o humilhado se reúne a outros que saem para humilhar, onde o covarde consegue provocar medo.
Para quem observa de fora, e até com um vago enfado, todos esses sinais de paixões exacerbadas por coisas de nada, rivalidades tribais que procuram recuperar o dramatismo da guerra, tudo isso surge como algo patético. E, no entanto, mesmo para aqueles que não se deixam contagiar, quase todos já sentiram o gozo de participar nessa espécie de delírio, quando um golo é sentido como um «orgasmo» coletivo, «e o estádio esquece-se de que é de cimento e desprende-se da terra e sobe no ar» (Galeano). Mas se o apelo não deixa de ser evidente, é certo que neste século a engrenagem do espetáculo que tritura tudo e o crapuloso enredo que envolve na sua quase generalidade os dirigentes e as instituições do futebol, tudo isso levanta grandes obstáculos à crença no futebol, nos seus supostos valores democráticos e populares. «À medida que o desporto se foi tornando indústria, desterrou a beleza que nasce da simples alegria de jogar», nota Galeano. Neste momento, a omnipresença do esquema lucrativo, afasta muitos, que veem no futebol uma forma de escapismo oca, um regime que se foi desfazendo de toda a leveza, da inspiração e da pura ousadia, um jogo que se sufocou debaixo da tecnocracia. «Felizmente ainda surge nos campos, mesmo que pouco amiúde, algum pé-descalço descarado que se afasta do guião e comete o disparate de fintar toda a equipa rival, o árbitro e o público das bancadas, pelo simples prazer do corpo que se lança à proibida aventura da liberdade». É para não perder algum destes milagres que muitos ainda se arrastam até aos estádios, mas há muito que os constrangimentos do espetáculo deixam a sensação no adepto de cumprir mais outra obrigação.
Momento sensível
Se cada confronto entre duas nações tem algum potencial no que toca a despertar velhos ódios ou feridas, dessas transmitidas de pais para filhos, este Euro 2024 surge num momento particularmente sensível, em que o velho continente uma vez mais sente o passado desassossegá-lo como se um vento de fetidez terrífica o percorresse vindo de Leste, estando a decorrer o maior conflito militar terrestre desde 1945, tendo este sido desencadeado pela invasão russa, até então o principal fornecedor de gás da Alemanha, país anfitrião do evento. Ou seja, este campeonato europeu serve como um variado panorama, com 24 nações a competirem pelo título, e trazendo novamente à superfície todas as grandes cenas pretéritas, mas também uma série de dramas que estão presentemente ainda a ser cozinhados, dando-nos uma vez mais a perspetiva de uma Europa dividida, dilacerada por rivalidades e escaramuças sociais e políticas, que evocam alguns dos mais perturbadores da história recente. Renascem os velhos sistemas caídos, conceções que pareciam ter sido derrotadas e extintas dão sinais de vida a cada dia que passa. Um pouco por todo o continente, pressente-se que qualquer convulsão encontrará um terreno propício para que a violência recobre os sentidos e volte a ameaçar os habituais bodes expiatórios.
Chegam relatos de que, por estes dias, e depois de a formação de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD na sigla original) ter ficado em segundo lugar nas eleições europeias, ultrapassando qualquer um dos partidos do governo, alguns dos seus membros têm participado em reuniões secretas para discutir a forma de expulsar do país os imigrantes, os seus descendentes e aliados, assim que o partido ascenda ao poder. Assim, de um momento para o outro, uma nação que pensava ter enterrado o fascismo para sempre começa a ver o seu espetro ressurgir.
Tudo isto ficou patente num vídeo que se tornou viral recentemente. Filmado em Sylt, uma ilha de festas da elite alemã, as imagens mostram os foliões a entoar o slogan nazi ilegal «Estrangeiros fora – Alemanha para os alemães» ao som do êxito L’amour toujours de Gigi D’Agostino, enquanto bebiam champanhe, dançavam e iam fazendo a saudação nazi, uma ofensa punível por lei. Não era preciso uma especialização em semiótica para intuir, a partir das roupas ostensivamente convencionais e dos rostos rosados, que há uma nova geração de alemães endinheirados a quem o hediondo passado nazi não provoca qualquer embaraço. Pode não faltar muito tempo para que sejam os alemães a justificar a apreensão daqueles que sempre defenderam que não devia ter sido dada a possibilidade àquela nação de reassumir a soberania.
E isto faz-nos pensar num breve conto de Tonino Guerra:
«Um jovem que esteve preso na Alemanha, dois anos após o fim da guerra, regressa a Bona para se regozijar com o sofrimento dos alemães. Da janela da pensão, pela manhã, olha satisfeito o deserto de escombros em que se tornou aquela cidade. Mas ao fundo da rua, uma pequena banda aparece, tocando uma marcha militar com sons claros, nítidos, esféricos. De onde vinha e para onde se dirigia? No porte dos músicos, havia um desejo de recomeçar e já se adivinhava a eterna teimosia do povo alemão. E o jovem começou a soluçar».
Está na altura de começarmos a soluçar.
O crescimento da extrema-direita
Quer a AfD chegue ou não ao poder, o certo é que, tal como o Chega alcançou já aquele que era o principal propósito dos seus investidores, ao deslocar o centro para a direita, normalizando os discursos xenófobos. Nos últimos meses, o chanceler Olaf Scholz, do SPD (centro-esquerda), elevou consideravelmente a sua retórica sobre a imigração, prometendo “deportar” em grande escala os imigrantes e os criminosos estrangeiros. E a poucos dias de ser dado o pontapé de saída no jogo de abertura do Euro 2024, partida vencida pelos alemães no Allianz Arena, em Munique, por 5-1 frente aos escoceses, na televisão nacional os temas de uma guerra cultural dominavam os debates. É uma boa altura para se equacionar que rumor persistirá daqui por uns anos deste campeonato nos estádios alemães que acolhem os jogos. De acordo com Eduardo Galeano, em Wembley soa ainda a gritaria do Mundial de 1966, vencido pela Inglaterra, mas, apurando o ouvido, podem ouvir-se gemidos vindos de 1953, quando os húngaros golearam a seleção inglesa. «O Estádio Centenário de Montevideu suspira com saudades das glórias do futebol uruguaio. O Maracanã continua a chorar a derrota brasileira no Mundial de 1950. Na Bombonera de Buenos Aires trepidam tambores de há meio século. Das profundezas do estádio Azteca ressoam os ecos dos cânticos cerimoniais do antigo jogo mexicano da bola. Fala em catalão o cimento do Camp Nou, em Barcelona, e em basco conversam as bancadas do San Mamés, em Bilbao. Em Milão, o fantasma de Giuseppe Meazza mete golos que fazem vibrar o estádio que tem o seu nome. A final do Mundial de 1974, ganha pela Alemanha Ocidental, joga-se dia após dia e noite após noite no Estádio Olímpico de Munique». Agora, a máquina mitológica está a carburar, sendo ainda impossível contemplar esses caracteres que irão erguer-se e que mais tarde serão lidos como prenúncios do que estava por vir. O que parece certo é que está em processo uma reimaginação do que significa ser alemão nos nossos dias, uma espécie de conflito dentro da própria alma desta nação, e que irá ter um impacto decisivo, podendo segurar a unidade do projeto Europeu, ou precipitar o seu colapso. E se a história tende a repetir-se, há claros sinais de que o país vive uma crise de confiança e de identidade, e, como é costume, o desalento mostra-se sempre fértil para que surjam esses agentes crapulosos que aproveitam a instabilidade para instigar o medo e chegar ao poder. A seu favor, têm a aparente erosão da supremacia alemã, económica e política, a guerra da Ucrânia e a crise energética que estão a alimentar o receio de que o país parece ter perdido o rumo, afrouxando assim os laços que outrora uniam uma sociedade que se mostrou capaz de se reerguer dos escombros e assumir novamente uma postura orgulhosa.
Alemanha: paz social em causa?
Não se sabe se uma vitória da seleção alemã poderá revitalizar os ânimos, ou servir para insuflar um novo “conto de fadas de verão” que possa instigar ainda mais a tentação nacionalista, que tem sempre no seu reverso um elemento de xenofobia e racismo. As elites aproveitam estes períodos de fragilidade económica para ir buscar as suas perdas de receitas em benefícios e incentivos estatais, desviando a atenção para as minorias, que são sistematicamente usadas como bode expiatório para todas as crises. Atualmente, os elevados preços da energia e os custos de produção estão a alimentar os receios de declínio industrial. E para aqueles que gostam sempre de lamber estatísticas de modo a depositarem a sua fé neste tipo de análises, podemos sugerir o inquérito Eurobarómetro desta primavera, que apurou que apenas 14% dos inquiridos na Alemanha acreditam que a situação económica irá melhorar nos próximos 12 meses, um número bem abaixo da maioria dos outros Estados da União Europeia. Como sabemos, sendo Alemanha uma nação que perdeu os privilégios dessa forma de autoparódia alarve que são as manifestações de orgulho patrioteiro, incluindo o investimento em termos das suas forças militares, desde a reunificação só lhe restava a pujança do seu motor económico que sempre ritmou a economia de toda a União Europeia. No ano passado, contudo, a Alemanha foi o único país industrial que não registou qualquer crescimento, tendo entrado em recessão nos primeiros três meses do ano. Em março deste ano, um grupo de importantes grupos de reflexão económica alemães reviu em baixa as suas previsões de crescimento de 1,2% para uma quase estagnação, com 0,1% para o ano. Face a este cenário, o país que até aqui mantinha um sólido pacto entre os sectores produtivos e laborais e os órgãos políticos, viu surgirem brechas, e a paz social foi posta em causa nos últimos 12 meses, com uma série de greves de maquinistas, transportadores de mercadorias e trabalhadores agrícolas, e com um governo de coligação cujos três partidos parecem estar em desacordo em tudo, desde as medidas climáticas e a política de transportes até à ajuda militar à Ucrânia.
‘Futebol e pátria sempre ligados’
Como é sabido de todos, e como vinca Galeano, «o futebol e a pátria estão sempre ligados; e os políticos e os ditadores aproveitam-se desses vínculos de identidade com frequência». É uma questão de saber se as forças democráticas serão capazes de aprender alguma coisa com o passado. O escritor uruguaio sublinha que, a certa altura, o futebol ocupou o lugar da religião enquanto ópio dos povos, não só pela devoção que desperta em muitos crentes, como na desconfiança com que é olhado por parte dos intelectuais. Esquecendo os intelectuais conservadores, que, sendo uma força reacionária, nestas alturas se limita a oferecer sinais da sua soberba diante do ressentimento das massas, vale a pena focar a postura dos intelectuais de esquerda, que foram reconhecendo como o futebol castra as massas, desviando a sua energia contestatária ou até mesmo revolucionária. «Pão e circo, circo sem pão: hipnotizados pela bola, que exerce um fascínio perverso, os operários atrofiam a sua consciência e deixam-se levar como um rebanho pelos seus inimigos de classe». Talvez seja uma leitura demasiado simplificada do problema, mas basta lembrar como, muitos anos depois da equipa italiana ter vencido os mundiais de 1934 e de 1938 em nome da pátria e de Mussolini, já no fim do século, o dono do AC Milan ganhou as eleições italianas com uma palavra de ordem, Forza Italia!, que provinha das bancadas dos estádios. Silvio Berlusconi prometeu que salvaria a Itália como tinha salvado o AC Milan, mas aproveitou-se desse golpe dirigido ao calcanhar de Aquiles dos italianos e ludibriou-os enquanto eleitores. Só um perfeito ignorante não se dá conta como o futebol tem sido um tubo de ensaio para os novos fascismos, e como, à boleia das excitações que este alimenta, a violência e o ódio são banalizados, animando os nacionalismos xenófobos, os regionalismos atávicos e outras formas de ódios identitários ou racistas, originando «uma regressão cultural generalizada». Assim, vemos serem encenadas manifestações que nos transportam para uma nostalgia do fervor totalitário, um eixo de representações que preparam as condições para um fascismo de sorte alienante que serve para distrair inteiramente os homens do seu destino.
Galeano elenca uma série de episódios em que fica claro como a bola serviu como uma bandeira, e um deles estabelece um curioso laço entre a Alemanha e a Ucrânia, apontando para o perigo que uma derrota humilhante poderá ter para uma nação que historicamente lidou sempre muito mal com os seus fracassos. Se para os nazis o desporto foi desde cedo encarado como uma zona onde oferecer provas da superioridade da raça ariana, na Ucrânia existe um monumento que honra a memória dos jogadores do Dínamo de Kiev de 1942. «Em plena ocupação alemã, eles cometeram a loucura de derrotar uma seleção de Hitler no estádio local». Não foi por falta de aviso. Sabiam que qualquer outro resultado que não a derrota significaria a sua condenação. Como lembra Galeano, entraram resignados a perder, a tremer de medo e de fome, mas não conseguiram dominar a vontade de expressar um último gesto de insubmissão e dignidade. Resultado: «Foram os onze fuzilados com o equipamento vestido, no cimo de um barranco, quando o jogo terminou».
O braço-de-ferro na Bundesliga
Neste momento a Alemanha ainda não viu os seus filhos cederem aos medonhos entrelaçamentos dessa mitologia que nos arrastará de volta a um período de trevas, e o mais curioso é que a própria Bundesliga tem sido o palco desse braço-de-ferro, com treinadores como Christian Streich e Xabi Alonso a assumirem um protagonismo claro em sucessivas e enfáticas denúncias da extrema-direita, um confronto que, até ao momento, os seus homólogos na maioria das principais ligas europeias têm evitado. Por agora, as claques ligadas aos principais clubes têm-se mantido impermeáveis às derivas xenófobas, liderando protestos anti-AfD.
Outra forma de rechaçar essas tendências está patente na própria seleção alemã, uma equipa multirracial confiante e bem-sucedida, capitaneada por Ilkay Gündogan, com Antonio Rüdiger na defesa e Jamal Musiala no ataque, provando ser um exemplo de coesão e força a partir da diversidade. E muitos cronistas não deixaram de notar o simbolismo no facto de o Deutsche Fussball Bund ter escolhido a Turíngia, no esquecido leste do país, como a sua base para o Euro.