O efeito Ronaldo

A Seleção portuguesa tem ótimos jogadores mas não rende aquilo que estaria teoricamente ao seu alcance. Olhemos para a equipa espanhola e vejamos o abismo que, em futebol jogado, a separa da nossa

Nunca fui um fã incondicional de Cristiano Ronaldo. A idolatria sempre me incomodou, e com Ronaldo ultrapassou todas as marcas. Hoje já não é bem assim, mas quando ele tocava na bola os relatores subiam o tom de voz e gritavam: «Bola em Ronaldo, Ronaldo, Ronaldo, Ronaldo…» – e a voz só esmorecia quando a jogada se perdia. Às vezes era golo – e aí os homens atingiam o êxtase.

Ao longo do tempo, a forma de jogar de Ronaldo foi-se alterando – o que mostra a sua inteligência ou a inteligência dos treinadores que o acompanharam, em especial Alex Ferguson. Quando foi para Manchester, saído do Sporting, Ronaldo era sobretudo um driblador. Um jogador muito habilidoso, quase um malabarista, que frequentemente se perdia nas tentativas individuais. 

Mas Ferguson meteu na cabeça (na sua e na dele) que Ronaldo havia de ser um goleador. Logo à partida disse-lhe que iria marcar x golos por ano (um número muito apreciável). E Ronaldo marcou.

Mas não só a sua forma de jogar mudou. Mesmo o seu aspeto transformou-se: arranjou os dentes, mudou de penteado, e sobretudo ganhou arcaboiço: alargou o peito, endureceu os músculos e engrossou as pernas. O menino relativamente franzino que tinha vindo da Madeira para o continente já dificilmente se reconhecia naquele atleta robusto.

E à medida que a capacidade física e goleadora aumentava, a habilidade decrescia. A partir de certa altura, Ronaldo deixou de tentar fintar. Atirava a bola para a frente e corria. O malabarista cedeu o lugar ao concretizador, sempre de olhos postos na baliza. E foi o número crescente de golos marcados, batendo sucessivos recordes, que fez dele o melhor jogador do mundo. Messi sempre teve mais habilidade, mas também sempre marcou menos golos – e o objetivo do futebol não é fintar, é marcar.

Hoje, com quase 39 anos, Ronaldo ainda é um ótimo jogador. Talvez seja o melhor avançado português. Possivelmente tem lugar na Seleção por direito próprio. Mas o seu efeito na equipa é já muitas vezes pernicioso.

Porquê? 

Por várias razões, todas concorrentes. 

Em primeiro lugar, porque não admite ser substituído. Quando Fernando Santos não lhe deu a titularidade, no último Mundial, ele fez uma cena, despediu-se da Seleção, os dois travaram-se de razões – e quem acabou por sair não foi Ronaldo mas Fernando Santos. Ora um jogador que não admite ser substituído é um problema para o selecionador, que perde a autoridade perante os outros jogadores.

Em segundo lugar, o endeusamento de Ronaldo menoriza os companheiros, que se sentem pequenos ao lado da vedeta e perdem alguma motivação. A Seleção é Ronaldo e mais dez. A verdade é que, quando Ronaldo não está presente, os outros parecem jogar com mais alegria.

Em terceiro lugar, porque só quer a bola para ele. É certo que no jogo contra a Turquia até ofereceu um golo a marcar a um colega, quando se encontrava em boa posição – mas essa não é a regra. Nos livres nas imediações da área adversária agarra a bola com as duas mãos e não a cede a ninguém, mesmo havendo outros jogadores que rematam bem. E confesso que já não me recordo de ver um livre marcado por Ronaldo dar golo. 

Em quarto lugar, porque, estando Ronaldo em campo, os companheiros tendem a jogar para ele, afunilando o jogo. 

Tudo isto se tem observado neste Europeu.

Embora a Seleção portuguesa já esteja apurada para a fase seguinte, não fez nenhuma grande exibição, longe disso, e foi bafejada pela estrelinha da sorte. No primeiro jogo, não perdeu com a Chéquia porque não calhou: um jogador adversário resolveu marcar um golo na própria baliza, que nos deu o empate, e o golo da vitória resultou de outra oferta monumental de um defesa checo, que parecia uma galinha a pôr um ovo e, de cócoras, deixou a bola mesmo à frente de um nosso jogador, que só teve de a empurrar para a baliza. Um bambúrrio, já acontecido nos descontos. 

E contra a Turquia, Deus voltou a ser português: quando os turcos buscavam com perigo o empate, também um autogolo os deitou por terra. Enfim, em momentos críticos, os adversários marcam por nós na sua baliza.

Aos 40 anos, Ronaldo ainda é um bom jogador e – repito – se calhar ainda tem lugar na Seleção. E seria muito útil se fosse um jogador como os outros: se se deixasse substituir, se permitisse que outros marcassem livres, se não concentrasse tanto as atenções sobre si próprio. Mas a realidade é o que é. E, assim, talvez Ronaldo seja hoje mais prejudicial do que benéfico a uma Seleção que tem ótimos jogadores mas não rende aquilo que estaria teoricamente ao seu alcance. 

Olhemos para a seleção espanhola: e vejamos o abismo que, em futebol jogado, a separa da nossa.