Tantos homens fechados na estalagem de Procusto

Quando a posse de bola de Portugal em vez de servir para atacar os adversários se transforma numa maneira de tentar esconder as suas fraquezas.

HAMBURGO – Não sei se conhecem a história de Procusto, um daqueles canalhas de pai e mãe que pululam na mitologia grega. Conta-se já aqui ao lado: o animal, que também levou o nome de Damastes ou Polipemon, convidava gente para a sua estalagem e oferecia-lhes a sua cama com uma generosidade de desconfiar. Tanto era de desconfiar que, depois de deitados, os pobres coitados se eram pequenos demais para o divã viam-se esticados pelas pernas e, se pelo contrário eram maiores do que ele, cortavam-lhes os pés. A besta de 124 patas tinha ainda o requinte de malvadez de não dar hipóteses aos seus visitantes: tinha duas camas conforme as conveniências. Vem este episódio a propósito da dificuldade que o Portugal de Roberto Martinez revela em deitar-se na cama que o espanhol tem feito. Atirada pela borda do Campeonato da Europa sem grande estrondo e também sem grandes penas, a seleção nacional continua a ser um projeto de sucesso continuamente adiado. As razões são muitas e profundas, mas irei ater-me apenas ao que aconteceu na Alemanha nestes últimos vinte dias. Começando pela realidade dolorosa de, depois de ter marcado cinco golos nos primeiros dois jogos, Portugal ter ficado a zero nos restantes três, com o acrescento de que dois deles duraram 120 minutos.

Ficou a ideia, após a eliminação frente à França nos quartos-de-final (desde aquele Verão surpreendentemente feliz de 2016 que não conseguimos ir além dos quartos-de-final em Europeus e Mundiais) se deveu mais a uma certa dose de infelicidade do que a uma real superioridade francesa. Claro que cada um tem a liberdade de olhar para o encontro e tirar dele as conclusões que quiser, é mesmo por isso que o futebol é apaixonante e gera discussões. Mas eu, que assino estas linhas, fixo-me na minha, obviamente. E, depois de fazer um «flashback» dos acontecimentos, continuo a ver nas poucas (muito poucas) oportunidades de golo que o jogo teve, mais perigo nos remates (um desviado) de Camavinga e Thuran do que nos de Vitinha e Nuno Mendes. Se quisermos entrar pelo campo da objetividade total, o zero-zero (tão, tão zero-zero, infelizmente) justifica-se. E, como tal, o desempate nas grandes penalidades que se ficou pelo milímetro do remate de João Félix, milímetro mais para fora do que para dentro, tornou-se a única solução. Agora, puxando a brasa à sardinha portuguesa, é evidente que fica na boca um certo sabor amargo por não termos ultrapassado uma das seleções francesas menos entusiasmantes e mais acessíveis de sempre, ainda por cima com os seus dois artistas, Griezmann e Mbappé tão condicionados como têm aparecido na Alemanha.

A maldita posse!

A sensação de superioridade dada pela equipa de Roberto Martinez baseia-se sobretudo numa filosofia de posse continuada da bola que é muito portuguesa, sim senhor, sempre foi desde há muitos anos a esta parte, mas levada ao extremo pelo selecionador escolhido para substituir o ultra-defensivo Fernando Santos, condenado às caldeira de Pero Botelho por uma opinião pública que, depois da vitória de Saint-Denis, resolveu exigir-lhe o impossível, como se ele já não tivesse lá chegado. Não digo que o engenheiro não se pôs a jeito, porque, no meu ponto de vista, continuou a ter aquela vitória frente à França, toda tem-te não caias, como barómetro para o que veio a seguir, tal como um jogador de xadrez teima até à inconsciência no mesmo gambito. A defesa teve sempre um papel fundamental na sua gerência mesmo quando se aconselhava um pouco mais de audácia. Ora, na verdade, e embora possa não ser evidente à primeira vista, a filosofia não se alterou com a chegada de Martinez.

A qualificação para a fase final deste Campeonato da Europa, o segundo disputado na Alemanha e o segundo que a Alemanha não ganha, com vitórias em todos os jogos num grupo francamente fraco (seguramente o mais fraco em que alguma vez os sorteios nos encaixaram), deixou a ideia, para mim completamente falsa, de que estávamos perante a melhor geração da história do futebol português, e tal afirmaram e escreveram alguns. Não só estou em desacordo como até  acho ofensivo para tantos jogadores enormes que vestiram a camisola dos cinco escudos azuis, formando conjuntos com classe misturada com um espírito competitivo de excelência. Faltou, pelo caminho (agora todas as críticas, até as mais absurdas, irão arrasar a seleção nacional, de fio a pavio), entendermos que o nosso jogo de posse de bola, passe e repasse, servia mais para esconder fragilidades do que para arrasar adversários. E, bastou, de repente, depararmo-nos com opositores mais rijos, mais decididos a ferirem-nos onde sentiam ser os nossos pontos fracos, para essa posse de bola se revelar grandemente improfícua. Se a Geórgia e a Eslovénia já o tinham posto às claras, a França tratou de o pôr a nu. Ao fim de 120 minutos saímos vencedores no capítulo da posse de bola e do número de passes, empatámos praticamente no número de passes precisos, e perdemos nos remates e nos remates enquadrados com a baliza. Com uma realidade que não se escamoteia: se a França utilizou o passe para avançar no terreno, procurando a velocidade dos seus homens da frente, Portugal utilizou o passe para ir adormecendo o adversário, para os lados e para trás, conseguindo adormecer até a paciência de muitos que viam o jogo desapaixonadamente. Enquanto temos posse de bola, sentimo-nos seguros, o opositor não nos agride, sonhamos com uma arrancada de Leão, uma abertura de Bruno Fernandes, um momento de Ronaldo, quiçá, embora os seus momentos se tenham esfumado com o correr do tempo. O facto, que alguns se têm recusado a aceitar, é que a nossa posse de bola é uma forma enganosa que Roberto Martinez inventou para defender fingindo que ataca. Um fingimento que não resiste à ausência de oportunidades de golo à medida dessa posse e ainda menos à falta concreta dos golos. Sejamos sinceros: um equipa que passou os últimos 330 minutos dês Europeu sem um golinho para amostra já não estava aqui a fazer nada. Não, a cama feita pelo selecionador nacional não nos serve. Podemos não ser tão bons como julgamos, mas ele está a cortar-nos os pés.