Foi assim que Ana Gomes descreveu, no seu espaço televisivo, o senhor Jean-Luc Mélenchon, líder da França Insubmissa. E num painel da CNN dedicado à segunda volta das eleições francesas, na companhia de Francisco Louçã, Francisco Assis e Jaime Nogueira Pinto, comparei essa ‘Le Pen de calças’ a Donald Trump, o que levou o antigo líder do BE a comentar que isso seria produto da minha imaginação.
Compreendo o natural entusiasmo de Louçã com a vitória relativa da Nova Frente Popular (NFP). E também percebo que não lhe interesse admitir que Mélenchon, o velho trotskista que teve o mérito e o engenho de promover a coligação vencedora, não é reconhecido como pessoa confiável pelos outros partidos de esquerda, que não se reveem no seu populismo. Algo que Ana Gomes denunciou, e bem.
Ainda assim, a comparação entre Mélenchon e Trump não é fruto da minha imaginação. Se Francisco Louçã recuar a 2018, encontrará um editorial do Le Monde que assinala a semelhança entre os dois políticos, que se reclamam vítimas do ‘sistema’. Mas há mais: depois da campanha para as eleições europeias, em que os Insubmissos se quedaram pelo 4.º lugar, Mélenchon apelou aos seus apoiantes para terem vigilância acrescida por possíveis irregularidades eleitorais. Aliás, alguns socialistas – como foi o caso de Michaël Delafosse, maire de Montpellier- insurgiram-se por o líder trotskista seguir a metodologia de Trump para tentar desacreditar a democracia francesa.
Mélenchon é, em suma, um daqueles políticos para quem a democracia é um mero instrumento de conveniência. Assim se entende que tenha apoiado os graves motins na Nova Caledónia, que causaram inúmeros mortos e um rasto de destruição. E que tenha defendido as violentas manifestações que eclodiram em França, no ano passado, depois da morte de um jovem às mãos da polícia.
Estas eleições correram-lhe bem. Mas, se porventura o resultado tivesse sido outro, a França estaria a ferro e fogo. Mélenchon, com o seu antissemitismo e o seu apoio a Putin, é um populista de esquerda que acredita na vitória pela insurreição. Mais uma vez, o que aqui escrevo não é fruto da minha imaginação: num debate televisivo, quando questionado sobre se as pessoas estavam preparadas para lutar contra Marine Le Pen, um dos apoiantes de Mélenchon mostrou-se disponível para encorajar um levantamento popular.
É este o homem que a esquerda moderada francesa, que com ele formou uma coligação negativa, não quererá certamente no cargo de primeiro-ministro, como ficou patente na noite eleitoral. Pouco depois das sondagens à boca das urnas anunciarem a vitória da esquerda unida, Mélenchon precipitou-se para ser o primeiro a falar. No seu tom execrável, tratou logo de apontar o dedo a Emmanuel Macron, que acusou de ser o principal derrotado, poupando Le Pen. Após esta bravata, surgiram imediatamente vozes dos outros partidos da NFP a sugerirem que não pode ser ele o primeiro-ministro.
Resta saber, é claro, se Mélenchon aceitará a desfeita de não liderar o novo Governo ou se, pelo contrário, irá clamar ‘aux armes, citoyens’ e precipitar um agravamento da tensão social em França, a poucos dias dos Jogos Olímpicos de Paris. Um cenário ideal para a insubmissão que Mélenchon tanto apregoa.
Os franceses não quiseram Le Pen e os seus nacionalistas, pelo que a aposta arriscada de Macron acabou por resultar. Mas, como sempre sucede nas estratégias de contenção, importa agora perceber se há condições de governabilidade que garantam que o risco do extremismo não foi apenas adiado até às próximas eleições presidenciais.