H.G. Cancela. Investigações sobre o fim

O autor regressa ao romance, com uma narrativa que segue a errância de um homem que desperta num hospital, gravemente ferido, e que tenta regressar a casa. De tão mastigado, o universo de Cancela apresenta os sinais da desaparição, a emergência do vazio, desenhando uma zona-limite, à beira do fim.

Quatro anos depois, H.G. Cancela volta ao romance – mas a pesquisa é a mesma e o negro sem fundo que deixa entrever continua igual. São duas ou três histórias que se entrelaçam, apesar da distância indecomponível que separa todas as figuras que comparecem na narrativa, apesar do vento gelado, inumano, que percorre esta linguagem sem tonalidade, que não nos devolve identidade alguma, destino algum (um conhecido pensador dizia, relativamente à linguagem, que nela há apenas caminhos, mas não há nenhuma saída). Nostos, cujo título remete para a épica grega, para o retorno do herói a casa, é uma longa meditação cada vez mais próxima de um certo vazio inescapável, que tanto faz com que a figura masculina encete um longo périplo até casa (mas não há casa nem retorno, as figuras de Cancela encontram-se além de qualquer propriedade e de qualquer coisa de próprio) como faz com que a figura feminina encontre no suicídio e no desaparecimento dos dois filhos, não uma solução, mas uma espécie de resolução, de conclusão lógica para um problema que não consegue, sequer, formular. 

É o acaso que coordena Nostos. Não há nomes nos romances de Cancela, o nome é o último limiar da propriedade, a fronteira a partir da qual começa verdadeiramente a pesquisa de Cancela, como se fosse preciso desembaraçarmo-nos desse último vestígio de identidade para que a linguagem e os corpos possam, por fim, ganhar aquela luz fria que parece emitida de um lugar distante, inóspito e inabitável – tão próximo da morte que se confundem com ela. Um homem acorda num hospital, sem nada saber de si – a identidade é-lhe dada por outrem, pelos médicos e enfermeiras, é-lhe imposta do exterior – e o resto da narrativa é, de facto, a história do seu retorno a casa – apenas para encontrar todos os animais da sua quinta mortos por falta de comida e água. Mas esse retorno não é, na realidade, retorno algum – não há nada para onde retornar, casa algum é já possível, há apenas caminhos, desvios, errâncias sem fim, mas não há saída alguma – e o que acontece é o progressivo esvaziamento de tudo, como se o fim da narrativa fosse, de facto, o vazio varrido por um vento gelado, o inapropriável que, por um breve momento, brilha nos corpos dos animais amontoados em cima uns dos outros ou na cinza que resulta da pira funerária e sacrificial.

“Eu despejava gasolina sobre as carcaças, afastava-me, encharcava um pedaço de madeira com combustível, incendiava-o e atirava-o para o monte. As chamas explodiam. Nove fogueiras, que arderam até ao princípio da noite. Pela manhã, fumegavam ainda. Atravessei os campos no jipe. A chuva que caíra durante a noite transformara a cinza numa pasta. Remexi-a com o pé. Ossos, cascos, dentes, cornos, despojos que se misturavam como horas a acumularem-se nos olhos, expulsando-se e sobrepondo-se e ocupando apenas o tempo de que precisariam para dar lugar a outras (…) como momentos de uma cadeia que se soltava e se rompia a cada elo, não exigia mais nem permitiria menos do que a destruição”

É assim que termina Nostos, na ambiguidade de piras funerárias que tanto podem significar o sacrifício último (é preciso destruir tudo para, por fim, conseguir retornar) como, por outro lado, a destruição que se torna indistinta do vazio e do esvaziamento progressivo, como se retirando tudo sobrassem apenas um corpo dado infinitamente à morte – antecipadamente “ossos, casos, dentes, cornos” e isto desde sempre.

Antes deste fim ambíguo, da imagem irresolúvel que apenas adensa o vazio, há toda uma errância por parte da personagem masculina – uma errância sem sentido, um adiamento progressivo da chegada a casa, um esvaziamento de toda e qualquer pertença. E o que encontramos, de facto, em todas as personagens de Nostos (mas há apenas duas que são como que diferentes formas de lidar com o vazio) é a fronteira a partir do qual não há pertença a nada e propriedade alguma (não há nada de próprio, há uma distância indecomponível de si a si com a qual é preciso lidar). O universo de Cancela – rarefeito, tão próximo do vazio – é um mundo além de qualquer mundo, como se as personagens experimentassem ou exprimissem a absoluta ausência de qualquer coisa em comum. Daí a pungência e o acaso que reveste qualquer encontro, principalmente o encontro com a mulher que, por um outro acaso, salva sem salvar da morte (esta sobrevem no fim, mas já não através do acto suicida). São, tanto num caso como no outro, pessoas sem ligação ou pertença a nada ou a alguém, que se foram esvaziando progressivamente de tudo, doravante sem nome e sem mundo, que vagueiam sem sentido – figuras além da própria ideia de humanidade. Neste sentido, talvez se possa dizer que H.G. Cancela constrói um experimento, a passagem ao limite de certas características que têm como paisagem o nosso tempo e a nossa história (é um filho da primeira metade do século XX, mas quem, como ele, não se encontra preso, tantas vezes sem conseguir respirar, ao que aconteceu nesses poucos anos que vão de 1914 a 1945?): é uma épica contemporânea, é a escrita a levar ao limite aquilo que tão bem conhecemos, a ausência de pertença, a impropriedade, o inapropriável, um certo vazio cravado nas nossas vidas e nos nossos corpos. Nostos é o limite, a fronteira franqueada, o avesso de um universo que conhecemos demasiado bem – não uma utopia nem uma distopia, mas a escrita a abeirar-se do fim.

Depois, há esta mulher e este encontro ao qual apenas o acaso consegue conferir a sua pungência (duas pessoas que se libertaram de qualquer laço, de qualquer pertença ou propriedade, que brilham no exterior rarefeito da própria linguagem – libertar talvez seja uma palavra imprópria, mas não há, neste caso, palavras apropriadas).

“Há semanas que, ao acordar, não conseguia saber quem era. Sequer como era. O corpo, a cara. Levava as mãos aos olhos, ao nariz, à boca, procurava os lábios, a língua, mas o que sentia com os dedos não produzia nenhuma imagem. Conseguia recordar-se de rostos, os de homens, os de mulheres. Crianças, velhos. Não do seu. Tacteava o peito, o ventre, descia a mão até ao interior das coxas, para se assegurar de que era mulher. Confirmava-o com alguma satisfação, mas tal não lhe garantia mais nada, nem nome, nem idade, nem aquilo a que se chama consciência. Se fechasse os olhos, via um buraco onde se afundava.”

É, talvez, um dos aspectos mais interessantes desta longa meditação a que dificilmente poderemos chamar romance – poderia ser chamado de “ensaio”, dada a errância a que apela e o vazio a que nos remete. O encontro, de certa forma amoroso, destes dois seres que se estão além de qualquer humanidade, além de qualquer pertença, figuras acabadas do inapropriável, dá lugar a uma linguagem para nada, cada vez mais próxima do vazio. O longo solilóquio da mulher que chegou atrasada à sua própria morte (é impedida, mais do que salva, por ele, quando este, por um acaso, frustra o suicídio dela) encontra-se além ou aquém de qualquer explicação, além ou aquém de qualquer redenção. A sua história é a de alguém que se vai esvaziando progressivamente de tudo – até ao ponto em que já nada resta –, mas é-nos contada, não para explicar o que quer que seja, não para nos dar uma qualquer razão ou justificação, nem mesmo para se desculpar, expiar ou redimir, mas apenas para preencher, impossivelmente, um vazio, para se tornar sempre e de cada vez mais próxima dessa fronteira instável e porosa que separa a vida e a morte. É, digamos assim, a palavra de uma sobrevivente, de alguém que sobreviveu, por pouco tempo – ele acaba por matá-la, selando por fim o desespero –, à sua própria morte, e a própria linguagem acompanha-a nessa descida a um vazio inapropriável que é, no limite, o dela, e que apenas a morte poder preencher.

São duas formas diferentes de habitar o vazio, a dela e a dele, e este encontro que se dá entre ambos, o diálogo para nada que se insinua entre os dois – dois astros frios que gravitam brevemente em torno um do outro, sem nunca transpor a distância indecomponível que é necessariamente a dele, para mais rapidamente ainda se afastarem –, é a beleza intensa que advém do facto de o encontro estar, à partida, condenado. Estes dois seres que se tornaram completamente anónimos, que perderam progressivamente tudo, inclusive o nome, que não pertencem a lado algum – não implicando isso, no entanto, que possam estar em qualquer sítio, como se fossem exemplares de um certo cosmopolitismo –, cuja linguagem não serve para nada, nem para comunicar, nem para expressar, que ganharam apenas o inapropriável enquanto modulação da vida – que existem no ar rarefeito de seres que perderam há muito a recordação do que significa o solo comum da humanidade –, que existem, portanto, como puro movimento errante, no fim só podem conhecer uma coisa apenas: a destruição. São, como o filho mais velho dela, a pura negação do que quer que seja.