Quando começou na publicidade? Sei que fez um curso de cinema em Londres…
Que durou de 63 a 66. Estudei em Londres cinema e fotografia. Depois fui um ano estagiar em televisão e cinema educativo para a televisão sueca.
Onde aprendeu sueco…
Onde aprendi sueco. Casei lá com uma sueca que já conhecia de Londres. A Suécia para nós latinos não é um sítio aconselhável. É um sítio ótimo para passar umas férias no verão. O arquipélago de Estocolmo é das coisas mais bonitas que conheço, é ótimo para estar na natureza com a família, etc., mas de resto, não é um país para nós latinos vivermos. Os suecos fecham-se imenso, especialmente naquela altura, a seguir ao verão, em que as folhas caem, o sol desaparece e as nuvens ficam até ao primeiro dia em que neva, que é normalmente no Natal. Depois da minha estadia na Suécia vim para Portugal e arranjei um emprego. Aliás, já estava planeado. Foram eles que me sponsorizam essa ida para a Suécia. Trabalhei numa coisa que se chamava Instituto de Meios Audiovisuais de Educação, IMAVE, onde me mantive um ano e nove meses. Foi o tempo de abrir duas secções, uma de fotografia e uma cinema, equipá-las e começar a fazer alguns trabalhos.
Trabalhos de quê?
Alguns trabalhos dedicados à educação. Na altura, posso dizer que não fiz muito cinema, basicamente lembro-me de ter feito uma campanha para a educação dos soldados macuas, em Moçambique, porque os soldados macuas – ao contrário dos macondes, que eram do norte de Moçambique e fizeram a guerra contra os portugueses – eram inimigos dos macondes e aliaram-se às forças portuguesas, mas não falavam português. Falavam a língua deles e fizemos uns filmes para ensiná-los a falar português. Fartei-me de não fazer nenhum, que é o que, acho, infelizmente, se faz muito no Estado, faz-se nenhum. Aquele que acabou por ser o meu primeiro sócio, Acácio de Almeida, diretor de fotografia, muito conhecido em França e que ainda está vivo, suponho eu, convenceu-me: ‘Queres aprender, queres mexer, etc. vai para publicidade porque aí trabalha-se, trabalha-se, trabalha-se’. E então consegui arranjar um emprego onde, de facto, fiz muito trabalho, aprendi muito e confrontei-me com dois tipos de produtores. Um, uma ‘fábrica’ que se chamava Telecine Moro, que era também sócia da RTC, portanto da parte comercial da nossa televisão. Esses tipos apanhavam tudo, as condições comerciais que davam aos clientes eram brutais, imbatíveis e limitavam a concorrência. Não tinham criatividade nenhuma, eram uma fábrica de filmes, mas davam condições comerciais tão boas aos clientes que toda a gente usava. E depois havia uma segunda firma que utilizava e que achava alguma graça, que se chamava Panorâmica 35 e pertencia, nessa altura, a dois sócios, em que o principal dos quais era Luís Gaspar, que foi o meu primeiro sócio. Aliás, antes disso ainda fiz uma firma com o Acácio de Almeida, a que chamei Vídeo. Ganhei muito dinheiro porque não tínhamos despesas. O escritório era num dos apartamentos do meu pai, onde tinha vivido, o equipamento ele tinha-o praticamente todo. Nós os dois fazíamos os filmes, sabíamos fazer tudo. Isso só durou seis meses, porque depois juntei-me à Panorâmica em 1972 com Luís Gaspar e o José Figueiredo Nunes. E assim nos mantivemos até ao 25 de Abril.
Lembra-se de algum anúncio que tenha feito antes do 25 de Abril?
Lembro-me, fiz um filme para a TAP com o Acácio de Almeida, acho que eram três filmes para TAP, ainda a preto e branco, claro, em que tive de filmar aviões a levantar na pista. Colocámos uma câmara, em que eu estava a uns 300 metros do fim da pista, com uma 600, uma teleobjetiva grande e ele ficou a meio da pista e lá filmámos uns aviões da TAP a partirem para a Europa. E, de repente, há um avião que não é da TAP mas como era difícil com uma 600 seguir o avião, etc. resolvi treinar com esse avião, o avião começa a acelerar, era um avião maior, começa a acelerar e chega ao meio da pista, onde normalmente levantavam, mas não levantou, continuou a comer pista, a comer pista e quando levantou a uns 200 ou 100 metros antes de mim passou por mim soprou-me e fui pelo ar uns dez metros, a câmara caiu no chão e fiquei com o lábio chamuscado, não parti o pescoço por sorte. Fui pelo ar mesmo, fui soprado pelo avião. Depois vieram uns tipos e tiraram-nos dali. Este é um dos filmes, mas fiz uma série deles.
E dá-se o 25 de Abril…
Dá-se o 25 Abril e o meu sócio principal, Luís Gaspar, abandona a publicidade e dedica-se à política. Mete-se no MDP/CDE e mais tarde no PC. Nessa altura, rapidamente tudo o que existia em Portugal, especialmente os meios de comunicação, foram totalmente ocupados pelo PC que era o único partido organizado e com a proximidade depois do 11 de Março e do Verão Quente houve reuniões, etc. para transformar o cinema numa coisa estatizada. Houve uma reunião no Palácio Foz com o pessoal todo, eu não sei porquê, porque era patrão, mas era um dos representantes dos trabalhadores da produção independente, mas era um tipo que falava e sempre falei muito e fui para essa reunião e aquilo que apresentaram era uma cópia da lei húngara. A pessoa que estava à frente daquilo pôs a proposta a votação e perguntou quem estava de acordo que pusesse o braço no ar. Eram dezenas de braços no ar, eram umas 500 pessoas, quase toda a gente, suponho eu e ele disse que então a moção tinha sido aprovada por unanimidade. Levantei o braço e disse ‘um voto contra’, o gajo riu-se para mim, sabendo perfeitamente quem eu era, Rapazote, o apelido do penúltimo ministro de Salazar.
Está a falar do ministro do Interior…
Exatamente, ele sabia perfeitamente quem eu era – o António Gonçalves Rapazote era primo direito da minha mãe e tinha sido o penúltimo ministro com a pasta da PIDE. E ele disse: ‘A moção foi aprovada por maioria silenciosa com um voto contra’. A maioria silenciosa era o grupo que tinha ajudado Spínola a fazer o 28 de Setembro. E eu disse: ‘O voto contra é da minoria ruidosa’, porque era o único que estava a falar. A coisa passou, ocuparam-nos o estúdio porque o meu sócio Luís Gaspar tinha 90% do estúdio, os outros dois sócios só tínhamos 5%. O que estava lá dentro eram cartazes enormes, fotográficos, caríssimos da reforma agrária. Depois consegui obrigá-los a desocuparem o espaço e lá foram os senhores do PC buscar os cartazes, e eu disse-lhes que tinha de lhes cobrar a renda porque estive a pagar para eles terem essas coisas. Algures nas minhas coisas tenho um recibo a dizer ‘Eu, João Rapazote Fernandes, recebi do Comité Central do Partido Comunista Português, a verba de 15 contos’. Depois passou, mas mesmo antes do 25 de Abril tinha já feito uns filmes para a Compal. No Festival de Cinema Publicitário de 73, a Panorâmica ganhou sete dos 17 prémios e eu ganhei quatro dos sete da Panorâmica.
Como realizador?
Sim, lembro-me que dois eram para a Compal, que eram feitos debaixo das árvores, as pessoas iam à árvore buscar o fruto e traziam um Compal, coisas muito básicas. Na altura, os filmes eram muito pobres mas também não dava para fazer muito melhor, porque, como disse, a empresa que mandava na produção de publicidade era a Telecine Moro que era uma ‘fábrica’ e tinha preços tabelados. Um filme de 30 segundos custava 30 contos, o que era nada, não dava para fazer nada. Arrisco-me a dizer que em Inglaterra, na mesma altura, o preço seriam 3000 contos. Claro que a produção internacional, Inglaterra estava no topo nessa altura, era muitíssimo melhor que a nossa. E aquilo que aconteceu com a minha entrada na produção é que fui progressivamente espevitando a qualidade da produção e em 1974/75 fiz um documentário turístico para o Centro de Documentação e Informação de Seguros. Era um documentário apelando à prevenção e seguros, em que andei pelo país a filmar muita coisa e, ao mesmo tempo, mais ou menos paralelamente, fiz um outro documentário para a Junta de Turismo da Costa do Estoril. Esse documentário fiz apenas como realizador, com a Telecine Moro como produtora. E no final do Centro de Documentação e Informação de Seguros na parte dos títulos comprei um conjunto de filmagens de desastres aos bancos de imagens estrangeiros. Um deles era o rebentamento de uma bomba atómica francesa num atol do Pacífico, rodeado de barcos de guerra franceses e depois aquele cogumelo que se vai desenvolvendo. Fui fazendo uma ótica ao cogumelo e depois transformando aquele som em cores e no final do filme eram só misturas de cores do cogumelo a desfazer-se. A imagem era só para ser o final do filme. Era a cena dos títulos de filme. Os acidentes, os desastres que podem acontecer, um gajo tem que se prevenir, mas há coisas que não é possível. Isso levou-me a Inglaterra a fazer uma pós-produção e eu que tinha estudado em Inglaterra e tinha conhecido um técnico em Cannes e em Londres, fui convencido e comecei a fazer a pós-produção dos filmes em Londres. Nessa altura, já a cores, ainda não havia televisão a cores, mas já convencia os clientes. Fui conseguindo levar a produção a um estádio de qualidade de imagem, pelo menos, melhor do que tinha, o que levou a que em 1980 um filme de 30 segundos já não custasse 30 contos, mas sim 600 contos. É claro que ganhava muito dinheiro nessa época. E isso não acabou em 80, continuou até 1990, em que multipliquei outra vez por 20, já custavam 12 mil contos em 1990, que é mais ou menos o que custa um filme de 30 segundos hoje, se transformamos os valores em euros. Estamos há 34 anos com o mesmo preço nos filmes de publicidade, talvez um bocadinho mais agora, mas por muito pouco. E é muito difícil sair disso. Claro que a produção hoje é muito mais simples de se fazer, a tecnologia é muito mais simples. Pagava balúrdios pelas pós-produções, hoje em dia faz-se os filmes num computador Apple topo de gama que custa cinco mil euros, talvez todo artilhado, 10 mil euros, quando, na altura, só o computador que comprei para uma pós-produção, que tive depois mais tarde, custou 80 mil contos, que eram hoje 400 mil euros. As diferenças de preços da pós-produção eram enormes em relação ao que existe hoje. As coisas foram melhorando, melhorando e agora estão simplificadas. Já não há filme, faz-se tudo em digital, há muito pouca gente a fazer em filme. Com o aparecimento dos telemóveis, toda a gente pensa que sabe fazer filmes e toda a gente experimenta e toda a gente faz aqui e ali e a especialidade de realizador e produtor de filmes de publicidade desapareceu ou tornou-se menos rentável.
A seguir ao 25 de Abril estava com grandes nomes, como o Ary dos Santos…
O Zé Carlos Ary dos Santos era meu cliente e tornou-se muito meu amigo. Era diretor criativo de uma agência chamada Espiral que mais tarde deu em Publicis, era uma agência onde havia muito gente de esquerda, um tipo que estava à frente, não me lembro o nome, tornou-se do PS e o Zé Carlos toda a gente sabia que era do PC. O Zé Carlos era uma pessoa muito interessante, um gajo vivo, com uma cabeça maravilhosa, escrevia e falava maravilhosamente, era ótimo estar à mesa a conversar com ele. Era um tipo irritantemente elitista, só gostava das pessoas que lhe faziam frente. Não era uma pessoa que admitisse servilismo, nem mediocridade, quem fosse para ali lamber a bota estava feito. E quem lhe dizia ‘não, não, não estou de acordo contigo’, ‘é assim, assim’, ‘epá, mas não’ começava-se a criar ali uma relação. Fui uma pessoa que sempre conversei muito e sempre gostei muito do confronto e da competição. E ele começou a dar-me muito trabalho porque gostava de trabalhar comigo. Tenho uma cena com ele que me lembro muito bem em Cannes, em 74, logo a seguir ao 25 de Abril. Em junho de 74, agarrei na minha família, mulher e duas filhas – a Filipa só tinha um ano, nasceu a 13 de junho – metemo-nos no carro e fomos, via Cannes, passar férias à Suécia, onde os meus sogros tinham uma lindíssima casa de campo no arquipélago de Estocolmo. Nessa viagem, claro que sendo Rapazote, fomos apalpados na fronteira de cima abaixo, obrigaram a mãe da Filipa a tirar as fraldas à miúda para ver se levávamos dinheiro ou qualquer coisa que fosse. Cheguei a Cannes e fui ao festival, mas não me inscrevi porque a inscrição no festival era caríssima, mas vi o festival todo. Trazia apontamentos, entrava às 9h30 da manhã e saía ao meio-dia, anotava tudo num livrinho e depois tentava usar aquelas coisas, lembrar-me daquelas coisas quando voltava para Portugal. Uns dois ou três anos depois disso, estou no festival, na mesma situação, mas nessa altura, já em vez da família, tinha levado a minha equipa. Tínhamos ido de carro e ficámos num hotelzinho mais barato, talvez uma estrela ou duas. Íamos ver os filmes, mas não pagávamos a inscrição no festival. Logo no primeiro dia, vou a sair e encontro o Zé Carlos: ‘Epá, estás porreiro? Estás a gostar?’. O Zé Carlos era sempre o júri português porque era um bem falante e era muito conhecido, talvez fosse a alma mesmo daquele júri, e disse: ‘João, ainda bem que estás a gostar. A gente vê-se logo à noite na festa’, respondi: ‘Na festa não nos vemos porque não vou à festa’; ‘Não vais à festa? Mas por que não vais à festa?’; ‘Porque não me inscrevi. Isto é só para ricos’; ‘Vais com certeza’, puxa da carteira, tira um bilhete e diz: ‘Eu sou do júri. Os membros do júri têm direito a ter um bilhete para a mulher. Não tenho mulher, portanto vais tu’. E assim foi, fui esse ano e fui no ano seguinte com o bilhete do Zé Carlos. Depois comecei a ganhar mais dinheiro e comecei a inscrever-me, mas fui duas vezes ao festival, com um bilhete de mulher do Zé Carlos Ary dos Santos [Risos]. É uma das coisas que me gabo e as pessoas acham muita graça.
Nessa altura, também havia nomes como José Fonseca e Costa…
Exatamente, dei-me relativamente bem com ele, embora ele não fosse uma pessoa fácil, mas também gostava de mim. Na altura, pediu-me se empregava o genro dele que foi durante muito tempo, talvez a minha época mais áurea, o meu chefe de produção, o meu diretor de produção José Torres que era casado com a filha do José Fonseca e Costa. Mais tarde é que me dei, e bem, com o António-Pedro Vasconcelos, fomos sócios numa escola de cinema que estava ligada à Universidade Moderna que acabou tudo com a crise da Universidade. Mas tivemos aí um investimento conjunto.
Entretanto começa a fazer alguns anúncios emblemáticos. Tem uma história engraçada com a filha Filipa com as Fantasias de Natal com o famoso ‘o coelhinho vai com o Pai Natal de comboio ao circo’…
Esse anúncio tornou-se, de certo modo, o ícone do cinema publicitário português. Quando se fala de cinema publicitário vão sempre buscar esse anúncio. É um anúncio interessante porque no final o que é que o anúncio trouxe? Trouxe uma empatia tão grande com as crianças que nos anos seguintes, quando o anúncio começava a aparecer na televisão, as crianças diziam ‘Olha, vem aí o Natal, já estão a dar o anúncio do coelhinho’. Quem criou esse anúncio foi uma amiga minha, Maria Nobre Franco, nessa altura havia também um diretor de coppy que era o Artur Portela Filho. Mas a Maria sempre se deu muitíssimo bem comigo e trouxe-me esse script um dia e disse-me. ‘Olha, isto é para uma miúda loirinha de olho azul de quatro anos’. Eu respondi: ‘Quatro anos não são controláveis’, e ela respondeu-me: ‘Tem de ser’, e lá arranjámos uma menina bonita, etc. Lá fomos para o estúdio e depois de uma manhã sem ter conseguido apanhar nada que fosse capaz para montar o filme, eu disse-lhe: ‘Olha, uma miúda de quatro não dá, mas tenho uma miúda de seis anos, loirinha de olho azul, sueca, que faz este filme. Tenho a certeza que faz este filme. ‘Quem é?’, ‘É a minha filha que é meio sueca, tem o olho azul, é loirinha, fala português, é despachada e é capaz de fazer isso, mas está no colégio’. Fui buscá-la ao colégio e então ela veio vestida com as roupas do colégio, etc. e fez o filme nessa tarde, despachou logo.
Filmou com a farda do colégio?
Sim, do St. Julian’s. Saiu-se tão bem que levei-a depois a dobrar, naquela altura os filmes não eram feitos com som síncrono, o som era dobrado em estúdio, e levei-a a dobrar. O que se ouve no filme é a voz dela, mas dobrada num estúdio de gravação, o que me levou mais tarde a usá-la como atriz de voz, em outros filmes, filmes estrangeiros. Ela, por exemplo, dobrava filmes aos seis anos e daí tornou-se uma pessoa…. quando foi estudar para Inglaterra, estudou teatro, inclusivamente.
Depois fizeram juntos muitos anúncios, como as Bombocas…
Fiz as Bombocas, fiz vários filmes. Ela fez vários, até a Susana, a mais velha também fez. Mas isso já estamos a falar em 1979, deve ser 80 ou 82 por aí. O primeiro filme da Filipa foi em 79 e é esse das Fantasias de Natal.
Há quem diga que talvez seja o realizador que mais ganhou prémios em Portugal…
De publicidade nessa altura, sim.
Mas ficou com mágoa de não ganhar em Cannes…
Não, Cannes é um negócio. Um festival que é um negócio e os prémios vão para os grandes investidores desse negócio. Quem eram os grandes investidores? Inglaterra, os Estados Unidos, o Brasil, a partir de certa altura, os prémios iam muito para esses países. Mas não só isso. A produção desses país era muito superior à nossa produção, estão envolvidos dinheiros que não há em Portugal. Mas levava sempre filmes a Cannes, lembro-me de ter feito um filme que foi muito assobiado em Cannes, foi o último filme feito de tabaco em Portugal e pior do que isso, além de ser um filme de cigarros era um tipo que depois de matar duas perdizes e o cãozinho trazer as perdizes na boca até ele, sentava-se no banco num murete e fumava um cigarro, era um filme da Tabaqueira. E foi ‘assobiadíssimo’ em Cannes, primeiro porque matava as perdizes e depois era um filme de tabaco, quando já ninguém fazia filme para tabaco.
Dos filmes que fez para a publicidade quais colocaria num top 10?
Não sei. Mas um dos filmes que me ficou na cabeça foi um para a Renault. Fazia praticamente todos os filmes da Renault, os que não vinham de fora. Esse foi feito se não me engano para o Renault 9 que era um filme que usava meios, filmámos do helicóptero o carro e no final o carro saltava para dentro de um ferryboat que já tinha saído do cais. Claro que o salto final do carro no ar é pós-produção. Mas filmámos aquilo em vários planos e filmámos com um cascadeur (perito em condução) francês. Ele dizia que já tinha rebentado com mais de mil carros e que já tinha tido 50 acidentes graves, tinha sido operado umas 50 vezes e, de facto, o tipo coxeava, etc. . Era uma condução louca por aí fora, pelas estradas do Alentejo até chegar ao cais.
De Setúbal?
Não, usámos o cais de Alcântara. Aliás, o salto foi feito e depois não usámos isso, recorremos à pós-produção, mas o salto foi feito com o meu carro que era um Saab 900 turbo a empurrar o outro carro porque só tínhamos um e tinha partido a caixa de velocidades nessa loucura toda. E o perito disse que dava o salto, mas para isso tinha de ser empurrado do carro, mas o carro sem caixa de velocidades não conseguia andar. Então o que sugeriu? ‘Tiram o motor ao carro, põem umas sacas de areia na mala para compensar a falta de peso do motor, o teu carro tem força que chega, porque é um turbo, para empurrar, põe-se pneus no para-choques do teu carro e ele empurra, o meu assistente também guia o teu carro e empurra-o até à rampa e depois vai com a velocidade que for e salta o que conseguir, não vão ser 25 metros, mas se calhar vão ser 15 que já dá para faz aquilo que queres’. E assim foi.
Pessoas da minha idade ou mais velhas lembram-se muito bem do filme da Robbialac…
Fiz vários filmes para a Robbialac, mas o filme que ficou na cabeça é um em que a música do jingle era uma música militar, aquelas músicas que os militares cantam enquanto vão marchando. Organizámos um exército de pintores que ia pela rua e cantava ‘Robbialac é uma grande tinta’ e esse filme ficou muito por essa música. Não acho que tenha sido um dos grandes filmes que tenha feito. Mas há muitos filmes que ficaram marcados na minha memória e alguns deles ganharam prémios. Fiz praticamente todas as cervejas que havia e muitas das bebidas, mas ganhei dois festivais com filmes da Carlsberg.
Provavelmente a melhor cerveja do mundo…
Exatamente.
O slogan não é vosso.
É deles e foi difícil de desligar desse slogan. Aliás, na política, um dia fui chamado ao PSD para dar a minha opinião do lado publicitário sobre a campanha que Cavaco Silva estava a fazer para a reeleição do PSD. Achei que a campanha estava muito baseada no Cavaco, que conhecia dos meus tempos do atletismo, e ele conhece-me muito bem, e a minha opinião foi que a campanha estava muito baseada numa pessoa e se a pessoa caísse em desgraça ou se qualquer coisa acontecesse, o PSD iria ruir com isso. Claro que não tive o apoio, especialmente dos líderes dessa altura, como Dias Loureiro, já Durão Barroso não abriu a boca. Duarte Lima também estava nessa reunião. Não concordaram comigo, mas usei exatamente essa coisa, porque quando fazia os filmes para a Carlsberg e usávamos um senhor Carlsberg quando fomos obrigados a mudar de campanha e retirar esse senhor da campanha foi difícil pensar em como é que íamos colmatar o final do filme sem tenr aquilo a que nos tínhamos habituados, que era um senhor a dizer ‘Provavelmente a melhor cerveja do mundo’.
Dizem de si que trouxe rigor para o setor, diferença e qualidade, mas por isso fazia tudo. Era capaz de pegar no martelo…
Tudo, tudo.
E que lançou vários diretores de fotografia…
A Panorâmica tornou-se uma escola, que tinha também uma função social. Os meus amigos, quando tinham alguém de família, normalmente filhos que tinham dificuldades de aprendizagem, como sabiam que não sei ler, digo a toda a gente que não sei ler, e de facto sou disléxico, não tenho qualquer amor pela leitura. Durante a minha vida usei frases e inventei frases para defender esta minha ligação à leitura. Uma delas é que só lê quem não tem ideias próprias e que a leitura é um inibidor de criatividade porque uma pessoa vai copiar o que está para trás, em vez de estar a pensar. Tenho muitas dessas frasezinhas assim e quando havia miúdos com dificuldades de aprendizagem pediam-me para os meter na Panorâmica e dar-lhes a mão para começarem qualquer coisa. Passou por lá muita gente e aquilo tornou-se uma escola, especialmente de fotografia, mas também de realização. Foi escola e não só foi escola como aprenderam que ali trabalhava-se.
Nessa altura fazem filmes que ficam mais ou menos icónicos, como o Pingo Doce…
Sim, a partir de certa altura começámos a fazer o Pingo Doce e esse talvez tenha sido, por um lado, uma garantia de trabalho, mas por outro lado, começámos a dedicar-nos tanto e tanto ao Pingo Doce que deixámos de ser contratados ou deixámos de andar à procura de trabalho, porque já tínhamos trabalho que chegue, e a Panorâmica deixou de ser aquele firma que fazia tudo que aparecesse, arranjava sempre solução para tudo e passou a ser a produtora que fazia o Pingo Doce…
Com o Rui Morrison?
Sim, praticamente desde o princípio, foi a voz do Rui Morisson.
Sempre produziu esses anúncios até ter um acidente grave que o deixou impossibilitado de os fazer.
Já lá vão 18 anos. Em dezembro de 2005 tive um desastre brutal de moto, felizmente, a 500 metros do H. Santa Maria, onde fui operado de urgência, e durante a operação morri três vezes, e ainda apanhei uma septicemia, e ainda morri mais uma vez, mas estou aqui.
Qual é a grande diferença hoje em dia para esses tempos da publicidade?
Espero não ferir suscetibilidades. Estou a falar de um filme publicitário, um realizador é, segundo os livros americanos, um contador de histórias. É um tipo que sabe desenvolver uma ideia em imagens para contar uma história que se conta de muitas maneiras e posso dar exemplos de filmes que saltam do hoje para ontem, para o amanhã e há muita maneira de contar o mesmo. Mas a base de um filme é uma história em que é preciso ser contada. Uma história que depende da imagem ou daquilo que se pretende comercializar. Acho que hoje em dia os filmes não têm histórias. Começa por aí. Os filmes são um conjunto de imagens montadas e pós-produzidas, imagens muito bonitas, tecnologicamente muito bem feitas, com cada vez melhor qualidade, mas não têm histórias. E isso faz com que publicidade não tenha o interesse que já teve. Não há filme com história e, portanto, não há realização propriamente dita. São montagens de imagens bonitas.
É uma loucura de dinheiro que se paga para pôr um anúncio no intervalo do Supre Bowl. Os filmes têm de ser bons para compensar aquele dinheiro investido…
Os filmes têm de ser espetaculares e isso é o que são os filmes de publicidade hoje. São espetaculares, são filmes muito bem produzidos, muito dinheiro para produzir aquilo. Não tanto na parte técnica, mas muito em outras coisas. Há muita produção, muita art diretion, muita imagem e depois são montagens dessas imagens. Não há uma história por trás daquilo, não há a menina a falar com o avô.
Não acha que o mundo também mudou? A forma das pessoas serem incentivadas para comprar, para consumir.
Mudou à brava. Aliás, espero que continue a mudar, nem que seja para trás outra vez, porque se calhar vivia-se melhor há 50 anos do que se vive hoje. Espero que as pessoas tenham juízo e que mudem, por exemplo, em relação ao clima, à loucura de comprar e deitar fora, enfim, há muita coisa que é preciso mudar. E é preciso, eventualmente regredir para nos voltarmos a juntar novamente à natureza que temos que proteger.
Em relação ao clima quer dizer o quê? Além do consumo desenfreado…
Tudo o que tem a ver com a natureza tem de estar mais próximo da natureza. O nosso pensamento tem de estar muito baseado naquilo que a natureza faz. Quando nos afastamos da natureza, estamos a afastar-nos da maneira certa de a ver, certa e testada durante milhares de anos, e nós estamos cada vez a dar passos, a inventar coisas que não têm a ver com a natureza.
Isso é engraçado vindo de um homem que andou sempre a apelar ao consumo…
Exatamente, não tenha dúvidas. Uma coisa é uma maneira de ganhar dinheiro e ter uma vida boa para a família, outra coisa é o pensamento que uma pessoa tem. Estou convencido que estaríamos muito melhor, e tenho projetos nessa área, se vivêssemos numa casa pequenina com uma sala, um quarto, se calhar num condomínio que tivesse uma cozinha e um restaurante comunitário. Ou mesmo muito mais próximo da natureza, junto à terra e fazermos nós a nossa própria agricultura, que não precisa de muito, nem nós precisamos de muita proteína, nem nós precisamos de muita coisa que nos ensinaram a consumir. Quando era miúdo, toda a gente saía do quarto e apagava a luz, tínhamos uma lâmpada e mais nada. Em casa havia um telefone que estava no hall e como aquilo era caro só se usava quando era preciso. O consumo tornou-se uma coisa brutal. Mas deixe-me dizer, em relação ao facto de dizerem que fazia se tudo no cinema, realmente fazia de tudo e era eu que muitas vezes pregava os pregos, subia às escadas, subia às árvores. Sempre fui um gajo muito ligado ao desporto, tinha um físico fantástico e era sempre eu que fazia as coisas perigosas. Nunca deixava ninguém fazer as coisas perigosas, como andar pendurado do lado fora do avião para filmar um gajo que se lançava de um avião de paraquedas, ia pendurado com um cinto dos bombeiros e uma corda atada ao interior do avião, e ia todo do lado de fora a filmar o gajo. Como ir sentado na minha prancha de winsurf, sem mastro, sem nada, sem vela, no meio do mar, muito no meio do mar, com um veleiro a passar ao meu lado que me ia arrancando um braço em determinada altura. Todas essas filmagens que eram perigosas, era eu que filmava como operador. Assim como subir a escada para pregar. Por exemplo, nunca fumei na vida, mas aquele quentinho que aparece nos filmes, aquele vaporzinho, é feito com tabaco e era eu que fumava um cigarro e depois bufava aquele fuminho como queria. Era eu que fazia isso, era eu que servia as cervejas. Sou um bom ‘tirador’ de cervejas para ter aqueles dois dedos de espuma. Era eu que fazia essas coisas.
Mas não aparecia…
Não aparecia. Depois era realizador, era produtor, era eu que ia aos clientes sacar trabalho. Era realizador, era diretor de fotografia e, a partir de certa altura, passei ser eu praticamente sempre, só depois dos Pingos Doces é que já não. Mas ainda fiz muito Pingo Doce sozinho e era eu que montava os próprios filmes. Durante muitos anos fazia tudo e era eu que ia receber o dinheiro depois.
Disse que conheceu o Cavaco no atletismo. Como assim?
Quando andava no Técnico, antes de ir para Inglaterra estudar, não estudei nada no Técnico, em quatro anos fiz dois ou quase dois e passava o meu tempo no Estádio Universitário a treinar aquilo que era bom na altura, saltador à vara. Costumo dizer que fui recordista de salto à vara de aspirantes, fui internacional júnior de salto à vara duas vezes, mas esqueço-me de dizer que, na altura, se calhar havia para aí 15 saltadores. Agora estou a treinar ténis para se ver aos 100 anos quando já morreram quase todos sou campeão do mundo do ténis. Mas nessa altura, o clube era o Centro Desportivo Universidade de Lisboa e um dos atletas desse clube era o Aníbal Silva. Estudava economia e depois tornou-se assistente da faculdade. E foi professor assistente do meu irmão, a seguir a mim, que fazia 400 barreiras e o Aníbal Silva também fazia 400 barreiras. Na altura, era só Aníbal, depois é que apareceu o Cavaco, e era um tipo que estudava e fazia atletismo, embora fosse dos tipos mais disciplinados que conheço. Nunca tirava tempo aos estudos para treinar, tinha as suas horas e era um tipo muito determinado, o que se viu depois, mais tarde, durante a sua vida.
Disseram-me que quando estava a filmar tinha de arranjar sempre tempo
para jogar ténis…
Na maior parte das vezes tentava…