Se me cruzo com o Manuel quando deambulo pelas ruas do Porto, ele é sempre simpático, ainda que seja, por vezes, um estorvo quando estou apressado. Na última vez em que nos encontrámos, acompanhava-o a sua mulher, e estavam a beber um copo, a caminho de casa, depois de terem ido ao Batalha. Disse-me que a programação era um bocado pra frentex, mas que tinham encontrado a sala cheia, ao contrário de prognósticos sombrios que lera. E só tinha um reparo a fazer: «Faltam pipocas e Coca-Cola».
Confessou-se preocupado, mais a mais desde que ouviu falar em ‘gentrificação’. «Presidente» exclamou, «faltam casas para os nossos filhos». Mas rematou lamentando a burocracia na aprovação de um projeto para reabilitar a ruína na Sé que herdou de uma tia. Pergunto-lhe se será uma casa para os seus filhos, mas explicou que quer transformá-la em alojamento local, porque é um negócio que «está a dar». Receia apenas não encontrar quem lá queira trabalhar, mas acha que esta coisa dos estrangeiros virem para cá à procura de emprego vai dar mau resultado.
A mulher queixou-se amargamente do ruído na rua onde vive. Expliquei-lhes que é difícil compatibilizar os benefícios de viver em plena cidade com a desejável tranquilidade de que desfruta no campo. O Manuel concordou, porque quando sai à noite com os amigos não se vai inibir de falar alto, na rua ou na esplanada onde nos encontrámos. Mas, apesar de não querer lixo à sua porta, e achar que a recolha melhorou, não quer que os lixeiros passem à sua porta durante a noite pelo barulho que fazem; ainda menos durante o dia, porque entopem o trânsito. Esse trânsito que está caótico, concordámos. Mas o Manuel, que quer continuar a utilizar o seu carro, interroga-se, quando está parado num engarrafamento, por que razão há tantos portuenses que ainda não recorrem ao transporte público. Quer que os outros andem de autocarro, mas não quer mais faixas bus, que só atrapalham.
Acha que o problema está na polícia, que não atua, e que o deve ter pegado de ponta porque este mês foi multado três vezes por estacionar indevidamente, «e foram só cinco minutinhos». A mulher resumiu tudo, atribuindo o problema à falta de educação e de civismo: poucos dias antes tinha ido à Foz, e quando parou o carro na faixa de rodagem para comprar um gelado junto ao Aquário, foi logo insultada por outros motoristas, apesar de ter tido o cuidado de deixar os piscas ligados. O Manuel não quer árvores diante da casa da sogra, porque as folhas causam problemas no telhado, sujam a varanda e provocam alergias várias. Mas acha que precisamos de plantar árvores nas nossas ruas; gosta de passear o Átila a seguir ao jantar, para que este possa satisfazer as necessidades enquanto ele fuma um cigarro, e nem sempre leva o saquinho, mas queixa-se que está tudo cheio de beatas e que os passeios deveriam ser lavados diariamente por causa dos cocós canídeos.
Estão muito tristes porque a loja da esquina fechou as portas. «A Zira vendeu-a a uns estrangeiros por um preço doido». Compram tudo online, o que é mais funcional do que usar o comércio de rua, mas a loja que lhes era inútil faz falta no bairro, e «vai-se perdendo o que é tradicional e típico». Explicam-me que estamos a perder autenticidade com tantos turistas que chegam pela Ryanair, a companhia barata que a família usa com frequência. Já visitaram muitas cidades europeias, como Barcelona, com as Ramblas e a Boqueria, onde adoram fazer turismo.
Todos conhecemos e compreendemos o Manuel. Todos somos, no fundo, um pouco como ele.