Francisca (Kika) começou a jogar à bola em miúda com os amigos e, já nessa altura, ninguém a parava. Jogou futsal nos Torpedos, antes de passar para o futebol feminino no Futebol Benfica e Casa Pia. Determinada, irreverente, habilidosa e com uma excelente leitura do jogo, ganhou rapidamente o seu espaço no Benfica e na seleção nacional a jogar como centrocampista e ponta de lança, e começou também a estar no radar dos grandes clubes europeus. A jogadora, de 21 anos, esteve seis anos no Benfica, onde realizou 128 jogos oficiais, ganhou 100, e marcou 82 golos. Era, indiscutivelmente, das melhores e contribuiu para o tetracampeonato dos encarnados, bem como para a conquista de quatro Taças da Liga, uma Taça de Portugal e duas Supertaças. Esta temporada recebeu os prémios de melhor jogadora e melhor marcadora da primeira liga, distinguiu-se ao marcar cinco dos 9 golos do Benfica na Liga dos Campeões feminina, e, no final da época, o seu valor de mercado era de 125 mil euros.
Talento em ascensão
Quando um clube como o bicampeão europeu Barcelona bate à porta não há como recusar, sobretudo quando oferece um vencimento superior a 300 mil euros por época. O interesse dos catalães era grande e, mesmo podendo contratar Kika no próximo ano a custo zero, não quis correr o risco de surgirem outros interessados e garantiu a internacional portuguesa por quatro época, até 30 de junho de 2028, por 500 mil euros (metade da cláusula de rescisão), esse valor pode ascender a 650 mil euros com bónus. Kika Nazareth tornou-se a contratação mais cara de sempre no futebol português – uma vez mais pela mão de Jorge Mendes – e ultrapassou a canadiana Olivia Smith, que deixou o Sporting para ir jogar no Liverpool por 250 mil euros. O futebol feminino ganhou visibilidade internacional graças à qualidade das atletas e tornou-se um mercado muito apetecível para os grandes clubes, isso explica que várias jogadoras tenham saído para Espanha, França e Suíça. Segundo a plataforma Soccerdonna, a transferência de Kika Nazareth é a terceira mais cara na história do futebol feminino a nível mundial, apenas duas jogadoras zambianas foram mais caras: Racheal Kundananji foi do Madrid CFF para o Bay FC por 805 mil euros e Barbra Banda do Shanghai Shenglin para o Orlando Pride por 675 mil euros.
A jogadora do Barcelona mostrou-se feliz por abraçar um projeto que lhe proporciona novos desafios e experiências diferentes. «É um privilégio e um sonho poder representar a melhor equipa do mundo e jogar com as melhores jogadoras do mundo. Estou muito feliz e contente, ainda não acredito que é verdade», admitiu, aquando da apresentação. «De mim, podem esperar compromisso, trabalho, golos e alegria. Espero crescer como pessoa e jogadora e ganhar tudo. Marquei muito golos pelo Benfica e vou dar o meu melhor para marcar pelo Barcelona, queremos vitórias e troféus», disse Kika, projetando uma eventual final da Liga dos Campeões – «gostaria de jogar a final contra o Benfica em Lisboa [a final realiza-se no Estádio José Alvaldade]». A jogadora falou ainda do ambiente culé: «Os adeptos e o ambiente à volta do jogo são a beleza do futebol».
A realidade nacional
Um estudo recente do Portugal Football Observatory mostra a evolução do futebol feminino nas últimas 11 épocas (2012/13 a 2022/23). Nesse trabalho, verifica-se que o número de jogadoras federadas passou de 2.446 para 10.423. Em relação ao número de equipas sénior, registou-se uma evolução de 60% (de 81 para 130) e nas camadas jovens o aumento foi de 413% (de 213 para 1.092).
Se em termos de número de praticantes, o futebol feminino está bem e recomenda-se, no que diz respeito às condições salariais e de trabalho há muito para fazer. A situação financeira da maioria dos clubes é muito débil quando comparada com o futebol masculino, que movimenta mais dinheiro graças aos direitos de televisão, aos patrocínios e ao número de espetadores que vão aos estádios e que compram produtos dos clubes.
Existe uma grande discrepância numa liga que admite atletas profissionais e amadoras, e em que os contratos profissionais têm grande disparidade ao nível da massa salarial. Os principais clubes pagam salários mais elevados, mas os de pequena e média dimensão praticam valores equivalentes ou pouco superiores ao salário mínimo nacional que é de 820 euros.
O Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol quer equiparar o salário mínimo entre o futebol masculino e feminino fixando-o nos 2.280 euros. Nesse sentido, entregou, em 2023, à Federação Portuguesa de Futebol uma proposta de Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) de modo a garantir condições mínimas às jogadoras para evoluírem. A intenção do sindicato tem esbarrado na resistência de muitos clubes, principalmente de menor dimensão, que não têm condições para fazer esse aumento salarial, e são as próprias atletas que saem prejudicadas. Não existindo qualquer ACT, o salário mínimo para o futebol sénior é idêntico ao salário mínimo nacional, que é 2,7 vezes menos do que a proposta do sindicato.
Na época passada, o número de jogadoras profissionais e não profissionais que competiram na primeira liga era de 181 e 195, respetivamente. Entre as 12 equipas que disputaram o campeonato, o Benfica é o que tem mais atletas profissionais (29), seguido pelo Sporting (26), Braga (24), Racing Power (20) e Torreense (15), já o Clube Atlético Ouriense tem apenas uma jogadora profissional.
Tendo em conta esta realidade nacional, é necessário um desenvolvimento sustentado para que haja uma liga verdadeiramente profissional, com mais riqueza/receitas para os clubes de modo a eliminar o fosso entre os grandes e os outros. A título de exemplo, a liga inglesa de futebol feminino gerou uma receita de 56 milhões de euros em 2022/23 e as previsões apontam para um crescimento até aos 80 milhões esta temporada.