Aumento exponencial de toxicodependentes e de tráfico de droga, sem-abrigo, turismo, Unidade de Estrangeiros e Fronteiras, migrantes, falta de polícias municipais e de agentes nas ruas são a mistura difícil de digerir quando se fala em aumento da criminalidade. Cada um puxa para o lado que acha mais óbvio, mas quando se confrontam argumentos é difícil chegar a uma conclusão, fazendo lembrar o célebre ditado: ‘Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão’.
Para os autarcas de Lisboa, Porto, Matosinhos e Setúbal – que tornou públicas as suas preocupações no dia de ontem – o aumento da criminalidade é evidente, mas o mesmo não pensa a ministra da Administração Interna, assim como a direção nacional da PSP, embora esta admita que na freguesia portuense de Ramalde houve um aumento significativo da criminalidade geral, embora a criminalidade violenta e grave tenha diminuído, segundo as suas contas.
Mas comecemos por dados inquestionáveis: a população residente em Portugal aumentou para mais de 10,6 milhões, apesar da queda de natalidade; o número de cidadãos estrangeiros detidos na cadeias portuguesas em 31 de dezembro de 2023, segundo dados oficiais da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, era de 20% (10 157 portugueses e 2026 estrangeiros); o número de toxicodependentes passou de 34 mil em junho do ano passado para 45 mil um ano depois, segundo dados fornecidos ao nosso jornal pelo Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), com base em inquéritos realizados. Entre estes 45 mil, estarão muitos toxicodependentes dos anos 90, que vão tendo recaídas, assim como migrantes, mais no caso de Lisboa ; o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente a 2023 revela que a criminalidade grave, violenta, altamente organizada e complexa subiu 5,6%, tendo sido registadas mais de 14 mil participações. Os crimes de extorsão registaram uma subida superior a 25%, e o rapto, sequestro e tomada de reféns 22%.
O receio de se estigmatizar os migrantes
A acrescentar a estes dados inquestionáveis, somaram-se outros que, vistos isoladamente, são o principal ponto de discórdia: estará o aumento de criminalidade associado ao aumento de imigração? Entre os novos sem-abrigo haverá potenciais criminosos? O aumento de toxicodependentes, com a subida de migrantes nessa comunidade, também contribui para a falada perceção de insegurança de que tantos falam? E o turismo também contribui para a festa, já que nem todos são bons rapazes? Antes de esmiuçarmos estes dados, recordemos a polémica que já tem semanas, nomeadamente quando o Nascer do SOL, a 28 de junho, fez a seguinte manchete: ‘Droga e assaltos fazem disparar alarmes em Lisboa e Porto’. Nessa mesma edição, Carlos Moedas e Rui Moreira, presidentes das autarquias da capital e da Invicta, respetivamente, confirmavam os dados avançados pelo nosso jornal e explicavam quais os principais problemas assinalados pelas populações, locais e não só. A Polícia e o Ministério da Administração_Interna, então como agora, procuraram desvalorizar as informações e alguns conhecidos comentadores televisivos alinharam na narrativa do Estado. Só que tudo mudou quando mais autarcas, alguns do PS, e não só, vieram para o espaço público dizer que a criminalidade está descontrolada e que Portugal pode, à conta disso, perder a sua galinha dos ovos de ouro, o turismo.
Questionada por todos os lados, Margarida Blasco, ministra da Administração Interna, anunciou o reforço de mais 800 agentes para policiarem as zonas urbanas do país, isto dias depois de ter dito que a Unidade de_Estrangeiros e Fronteiras terá de ser reforçada com mais 1200 polícias no próximo ano. E é aqui que muitos se questionam, pois se no dia 2 de julho saíram da Escola Prática de Polícia menos de 400 agentes, onde irá buscar a governante tantos polícias?
A este propósito, e depois de explicar a sua posição sobre o fenómeno do sentimento de insegurança, que é diferente da criminalidade real, Bruno Pereira, líder do Sindicato_Nacional dos Oficiais de Polícia, escreveu um artigo no site do Nascer do SOL, cujo título é ‘Como realizar o milagre da multiplicação?’. Aí interroga-se: «Instada a recensear soluções, a Senhora Ministra da Administração Interna veio adiantar alegados reforços de verão para, à semelhança de tempos passados, conseguir-se atravessar mais um período de veraneio, especialmente exigente no panorama da segurança por óbvias razões. Não duvidando da imensa vontade da Senhora Ministra, há pouco menos de 4 meses no cargo, não esperemos que a mesma traga guardado na sua algibeira panaceias mágicas que consigam reverter, pelo menos com a velocidade aclamada, a manifesta insuficiência de quadros que a PSP apresenta neste momento, agudizada ainda mais pela recente nova competência no controlo de fronteiras, que virá a consumir quase 1600 Polícias, quase 10% do seu quadro de pessoal. Não se enganem, estes Polícias foram e serão retirados, grande parte deles, da primeira linha de resposta».
Aumento da toxicodependência
João Goulão é aquilo que se chama uma verdadeira instituição no que diz respeito ao combate à toxicodependência. Atualmente é presidente do ICAD, mas já leva muitos anos à frente de institutos ligados ao fenómeno._Assistiu ao período assustador dos 100 mil heroinómanos, na década de 80/90, e há um ano deu uma entrevista ao jornal i onde dava conta das suas preocupações: «Se não se fizer nada, o Casal_Ventoso vai regressar em força», dizia. Goulão dava conta que nessa altura estimava-se que existissem entre 30 a 35 mil toxicodependentes. Um ano depois, assume que esse número é mais elevado, acredita que andará pelos 45 mil, mas está esperançado, pois acredita que estão a ser reunidas todas as condições para se conseguir atacar o problema. Quando confrontado com as queixas de Rui Moreira, entre outros, de que a toxicodependência é que fez disparar os níveis de criminalidade, já que precisam de arranjar, no mínimo 150 euros por dia, Goulão responde: «É normal que as pessoas façam tudo para arranjar o dinheiro e o tudo passa pela pequena delinquência, pequenos biscates, pequenos expedientes de sobrevivência, e até prostituindo-se. Mas já vivemos uma situação muito semelhante a essa, em que, apesar de tudo, oferecendo às pessoas a possibilidade de se tratarem ou de serem incluídas em programas de redução de risco e minimização de danos, desde que se proporcione os níveis mais básicos de dignidade, como habitação, entre outros, consegue-se lidar com essas pessoas e atuar também ao nível da criminalidade. Embora os últimos dados fornecidos pelo MAI desmintam o disparo na criminalidade».
O cuidado é óbvio de não associar um suposto aumento da criminalidade à imigração. «O que temos é, de facto, uma população muito exposta no espaço público, muito fragilizada, muito carenciada do ponto de vista de enraizamento social, que a torna, de facto, muito visível. É sentida como ameaçadora pela envolvente, e é uma população carenciada de apoios sociais e de coisas muito básicas».
Mas há semelhanças entre os toxicodependentes de hoje e os dos anos 80/90? «Nós tivemos nas décadas de 80/90 aquela população enorme de utilizadores de drogas, mas havia como que uma transversalidade social, atingia todos os estratos sociais. Hoje em dia, estes consumos problemáticos estão mais confinados às populações mais fragilizadas do ponto de vista social». E é ou não verdade que, em Lisboa, uma parte dos novos consumidores são asiáticos? «Claro que os portugueses estão em esmagadora maioria, mas, no que diz respeito aos estrangeiros, há uma predominância de migrantes do Paquistão, Nepal, etc, embora não pretendemos, de todo, diabolizar essa população, mas é um facto que está muito fragilizada. E aquilo que acontece é que são, em muitos casos, pessoas que iniciam os seus consumos em Portugal, não têm um historial de consumo de drogas prévio. Tal como alguma incidência de infeções pelo VIH a que se está a assistir entre essa população, ocorre cá, através de práticas que desencadeiam cá, não são propriamente pessoas que transportem já consigo a infeção». Goulão está confiante em ajudar a resolver o problema, até porque o pessoal que está afeto ao ICAD já vai em 1200 pessoas, próximas das 1400 que teve nos tempos do IDT, e a léguas das 80 que tinha no SICAD, altura em que se desinvestiu fortemente na prevenção, razão apontada para o aumento desenfreado da toxicodependência.
As razões de Moreira
O presidente da Câmara do Porto foi um dos primeiros a denunciar o aumento da criminalidade associada ao consumo e tráfico de droga, embora também tenha referido que há problemas com comunidades de migrantes que não têm emprego, dando até o exemplo da população do Bangladesh que está instalada no Porto há anos e que se foi queixar dos assaltos cometidos por magrebinos, tantos na suas lojas, como casas e até mesquita.
«Em termos absolutos, os números do RASI falam por si. Por outro lado, no caso da freguesia de Ramalde, é a própria PSP que terá confirmado um aumento de 40% da criminalidade, não somos nós que dizemos. Nós não temos esses números. O que sabemos é que mesmo em zonas da cidade, normalmente muito tranquilas, como é o caso de Ramalde, uma zona residencial, nota-se a preocupação por parte da população. A polícia fala em menos criminalidade violenta. Isso é capaz de ser verdade. Agora, para as pessoas que veem os seus carros assaltados dia sim, dia não, pessoas a roubarem-lhes canos e coisas de metal e a irem em carrinhos de supermercado vender isso a um sítio ou outro, naturalmente que vivem revoltadas e bastante irritadas com o que se está a passar». «O que noto de diferente em relação a outros tempos, é que não se vê polícias na rua e há pessoas a vender droga em todo o lado. É difícil uma pessoa andar_à noite e não vir alguém oferecer-nos droga._Isso causa estupefação, sentimento de insegurança, irritação e a sensação de que não há Estado», acrescenta o autarca.
Diga-se que o Porto, à semelhança de Lisboa, debate-se com um problema gravíssimo que é o consumo de crack. «O crack tem vindo a ganhar importância, o que nos coloca desafios maiores, uma vez que enquanto para a heroína nós temos recursos terapêuticos muito eficazes, nomeadamente a terapêutica de manutenção opiácia com metadona ou outro, para o crack não temos nada disso. É muito mais a intervenção psicoterapêutica, um acompanhamento de coaching, que é extremamente exigente para os utilizadores e para os terapeutas», explica João Goulão.
O Porto não tem o Martim Moniz
Quando questionado sobre os migrantes, Rui Moreira diz que a realidade da capital é muito diferente da do Porto, «onde não existe nenhum Martim Moniz». O autarca quer mais polícias municipais, diz ter 180 quando precisa de 300 – até para existir mais visibilidade policial – quer mais PSP e que os guardas-noturnos possam ser pagos pelas câmaras para que a profissão seja mais atrativa e digna.
Moreira foi recebido recentemente pela ministra da Administração Interna, que se mostrou compreensível com as preocupações de falta de polícias, e do aumento da criminalidade. «Pedi à ministra que tentasse perceber o que se passa entre a PSP e a Comissão de Proteção de Dados, pois a Câmara já fez o que pode fazer, o investimento na compra de câmaras de videovigilância que estão prontas para serem montadas. A ministra mostrou interesse nisso». Moreira acredita que se tiver 300 polícias municipais estes irão libertar o seus colegas da PSP para as questões de segurança. O autarca, ao contrário do seu colega de Lisboa, é completamente contra que a Polícia Municipal tenha competências na área criminal, apesar de serem PSP. «Se passassem a ter competências na área de investigação criminal, e continuassem a depender do presidente da Câmara, eu passo a ser o sheriff, algo que penso ser bastante negativo». Por fim, Moreira não entende a razão dos TVDE não serem ‘tutelados’ pelas câmaras. «É uma escandaleira. É por isso que me tenho insurgido contra a forma como o negócio dos TVDE é gerido. Qualquer pessoa vai a uma plataforma, regista o seu automóvel e a partir daí põe uma placa a dizer TVDE, e começa a operar. Não pagam taxas às câmaras, não pagam impostos, não são certificados pelas câmaras…».
As razões de Carlos Moedas
O presidente da Câmara de Lisboa insiste que é necessário rever o fim de algumas esquadras para se combater a criminalidade. «Nos últimos anos assistimos ao desaparecimento da ação preventiva da PSP nas ruas. Ao mesmo tempo que se encerravam esquadras sob o pretexto de que absorviam muitos recursos humanos para se manterem abertas. Nesta linha, o fecho de esquadras permitiria a projeção de mais meios na cidade. A realidade demonstra-nos que isso não resultou. E os efetivos são cada vez menos porque os ingressos na PSP também são cada vez mais reduzidos. Para mantermos Lisboa como uma das cidades mais seguras do Mundo é fundamental ações concretas integradas numa estratégia nacional que deve partir do Governo. Em Lisboa faremos parte da solução. Aceito que o dispositivo de esquadras em Lisboa possa ser revisto, mas não posso concordar com o fecho de esquadras a pretexto de que se estão a otimizar meios, porque no final o que acontece é que se fecham as esquadras e os meios não são visíveis».
Quanto à possibilidade de as polícias municipais terem outras competências, Moedas não tem dúvidas: «As Polícias Municipais de Lisboa e Porto devem ser validadas como Órgãos de Polícia Criminal com a capacidade de efetuarem detenções em flagrante delito. Sem esta capacidade, na prática o que ocorre é que perante a necessidade de efetivar uma detenção em flagrante delito, tenham que convergir para um mesmo local as duas Polícias – a PSP e a PML. Esta duplicação de meios é absolutamente desnecessária».
Assumindo que sabe o que se passa na cidade, até porque a percorre e fala com os seus habitantes, o autarca assume que «a maior preocupação da população é que Lisboa perca o sentimento de segurança que sempre existiu na nossa Capital e que faz de Lisboa uma cidade super atrativa do ponto de vista familiar. Há também algumas questões sociais mais sensíveis em várias zonas e eixos centrais da cidade e que a CML tudo tem feito para reforçar apoios para uma resposta social importante. Temos aumentado a fiscalização dentro dos poucos recursos que temos em relação a furtos a desordens que levam a intranquilidade associadas. Isto tem acontecido em muitas zonas da nossa cidade onde existiam esquadras e que acabaram por ser encerradas agravando as condições de vida desses locais. Voltamos sempre ao mesmo. São necessários mais polícias e mais meios nas ruas diariamente. É preciso o Governo agir e encontrar soluções urgentes».
Moedas diz ainda que está próximo dos líderes das comunidades imigrantes a quem transmite a sua importância para o desenvolvimento da cidade e do país. «Defendo que a imigração deve ser mais bem regulada e controlada desde logo pelo respeito da condição e dignidade humanas dos povos imigrantes».
Quanto ao desencontro com a posição da direção nacional da PSP, que diz que a criminalidade não aumentou, o autarca é muito claro: «Reafirmo o que já transmiti aos anteriores diretores nacionais e ao governo anterior: precisamos de mais polícias. Eu ando na rua. Eu vejo o que se passa e o que não se passa. Eu ouço as pessoas, e o que elas me transmitem é que não há polícia e que a situação na rua e nos seus bairros se está a agravar. Mas também analisei os últimos dados do Relatório Anual de Segurança Interna e os dados são muito claros em relação a Lisboa».
Como facilmente se perceberá, as opiniões não são convergentes. Para Pedro Clemente, antigo inspetor-geral da PSP e professor universitário, «todos têm razão e ninguém tem. As polícias e as autarquias estão a usar duas formas de análise diferentes. A Polícia tem razão do ponto de vista estatístico da denúncia, não há o crime que se diz que há. Agora, as pessoas não querem saber das estatísticas, porque não comem estatísticas. Do que estão as pessoas a falar? É a perceção delas, é o que elas sentem». O superintendente chefe vai mais longe: «Não se pode só estar a insistir na forma de mais polícias. A solução é juntar a componente tecnológica, videovigilância generalizada, à semelhança de outras cidades europeias, conjugada com um policiamento inteligente – ação da polícia dirigida pelas informações. A Polícia deve atuar de acordo com o problema. Ação policial dirigida para os receios da comunidade ou para os pontos quentes de crime». Para Clemente, «é óbvio que é essencial a visibilidade da polícia, e para isso é preciso mudar as competências das policias municipais de Lisboa e Porto. Os modelos de esquadras e de policiamento das duas principais cidades têm 150 anos. É altura de modernizarem-se. A grande Madrid tem metade das esquadras de Lisboa e tem quase 11 milhões de habitantes. Chegou a altura de se olhar para o que se passa em Madrid».