Ernesto Sampaio. Um cantar de sentinela

Poesia reúne os dois brevíssimos títulos publicados com um intervalo de 10 anos pela figura que entre nós exprimiu de forma mais sensível e inspirada, através de uma magnífica obra crítica e ensaística, o grau de impiedosa clareza que faz do poeta um ser tão odiado pelos farsantes que a cada momento dominam a cultura.

A vida parece quase apagada. Diariamente sacrificada a esse embrutecimento a que chamamos “bem-estar”. Essa religião do conformismo pela qual os homens passam os dias a negociar as condições da sua rendição a um estado de coisas de tal modo desencantado que a sua natureza desafiadora se dissolve, perdendo o vínculo com aquela espécie insaciável, que reclamava o desconhecido como o seu grande anseio. Hoje este deixou de ser provocado, ficando removido entre essas zonas inexploradas, ao ponto de nós sermos apenas o receio daquilo que antes nos espicaçava a imaginação.

“Os cartógrafos chamam ‘belas adormecidas’ aos espaços vazios num mapa”, nota Annie Dillard. A verdadeira lenda humana era essa promessa que nos fazíamos de produzir um conhecimento e um gozo na relação com o inexplorado, mais do que ver reconhecida uma propriedade, e passar o resto dos dias a defendê-la.

Abrimos mão desse reflexo expansivo entre nós e as coisas, cortámos “o fio condutor entre os mundos separados da vigília e do sono, das realidades exterior e interior, da razão e da loucura, do conhecimento e do amor, da vida pela vida e da revolução” (Breton). Hoje o homem é uma vítima das suas crenças, dessa compulsão de sentido único que vai definhando e nos arrasta com ele. Abraçou a paralisia, a inversão de si mesmo, dominado pelo medo, pela ansiedade, incapaz de restabelecer o significado inquietante do mundo na exuberância das suas variações.

O sentido da posse faz de nós seres em constante perda. E o pior é que perdemos o elemento da aventura, quando o que nos lançava era a impossibilidade de deter fosse o que fosse. Ser humano é o grau de maior incerteza, é a experiência radical de uma fragilidade que adquire o gosto de si, uma disciplina, quase uma força, mas interior, uma aderência à graciosidade dos ciclos, ao enlevo da transmutação, da impermanência. Somos os seres que assistem a partir de um intervalo a essa “falha do presente, a cisão entre o que a memória guardou e o sentir que a excede aí onde o desejo se desencadeia”, como assinala Silvina Rodrigues Lopes num prefácio quase sussurrado e em que se encadeiam noções essenciais sobre este respiro ameaçado a partir do qual nos comovíamos diante do mundo e em relação a nós próprios.

“A escrita poética nasce da precariedade da condição humana, do seu antidestino, que mantém a expectativa de um entendimento assente na recusa da dominação”. A poesia, no fundo, opera nessa actualização do sentido, essa instabilidade que recria a vida a cada instante. E, sendo a linguagem a base da experiência, o poeta é aquele que se oferece a um exame implacável de si mesmo e do mundo que vai sendo capaz de compor e percepcionar a cada momento, e que, através dessa “consciência dolorosa”, se dá conta de como cada realidade não passa de uma hipótese.

“Para Novalis, o universo inteiro era uma escrita cifrada. Para Freud, o inconsciente só através da linguagem se pode explorar. Para ambos, a linguagem remete para um além de si própria e o seu conteúdo imediato”, lembra Sampaio. Regressar à origem passa por esse despertar em que um nome estabelece entre nós e qualquer coisa no mundo uma relação, um eco que se distancia para se recrear e florescer, de forma a sentirmos a evolução de um perfume: como este persiste na memória e evolui, expandindo o imaginário. O poema é o registo que permanece dessas aventuras mais ou menos incertas, mais ou menos singulares. “A escrita, que esquece para poder trazer um tempo fora dos eixos, reúne o muito perto e o muito longe, concretiza aquilo que é sentido num corpo e numa alma”, diz-nos Silvina.

Começamos pelos sentidos, mas logo estes se precipitam nessa vertigem de combinação e aprofundamento. O homem reconhece-se através do seu ânimo criador, alcançando a “aliança do circunstancial e do maravilhoso”. A nossa insuficiência é o ângulo pelo qual nos lançamos num certo esplendor, e nunca nos saciamos. “O pensamento de cada homem tem a faculdade de reconhecer em si, de súbito, uma possibilidade vertiginosa que jamais explora”, diz-nos Ernesto Sampaio.

Um incansável escrutador da “música de lobos”, desses uivos que intimam as luas em bando a caírem inteiras e a pegar fogo aos campos de trigo onde se se entreviu as imagens mais aliciantes, mais alucinantes, ele vinca que a poesia nos chama “para um espaço sem tempo, para uma luz que nos arranca à engrenagem histórica dos acontecimentos e dos homens da vida, esses tristes abortos da moral e do gosto, fantasmas de uma sociedade que, sendo a ficção de si própria, nem por isso é menos terrivelmente eficaz quando perturba o nosso pensamento e lhe falseia os mecanismos reais”. Mas paga-se um preço em dizer esse não tantas vezes antes que ele frutifique num sim luminoso. “A poesia isola os poetas, reserva-lhes um destino de separação e negação, e é esse o preço a pagar para manter o contacto interdito aos cérebros mortos. Não pagá-lo equivale a aceitar que a poesia se repercuta num plano que não é o seu, o da difusão fácil, da comunicação discursiva, dos prémios literários e da seriedade pomposa, da cultura.”

Ernesto Sampaio era daquela outra raça, reclamava-se de uma outra herança, a que se movimenta exterior como interiormente segundo esse princípio do desafio de toda a lei, evoluindo no sentido de descobrir os segredos de uma linguagem que por si só faz com que a realidade estremeça. A ele interessava-lhe o sentido oculto, aquilo que apenas se mostra na presença de um ser dotado de uma disponibilidade extraordinária, esses seres que, respondendo a uma febre interior e particular, desafiam a mediocridade e a estreiteza do nosso universo, que resultam da fraqueza do nosso poder de enunciação.

Falar é já em si um modo de criar mundos. A sua obra dirige-se antes de mais a libertar o homem dos equívocos que levaram à desagregação da confiança nessa intimidade fabulosa com o mundo, aquilo que lhe diz que este está sempre incompleto, sempre apto a ser revisto ou expandido seja em que direcção for pelos espíritos com uma sensibilidade capaz de se ir experimentando na substância das coisas.

Sampaio foi o mais veemente e apaixonado dos discípulos de André Breton. Mais até do que o seu mestre, é na sua obra que se manifesta uma clareza de juízo e de apreciação que permitiram a este surrealista, que, pelas suas circunstâncias biográficas, surge removido do eixo daquele movimento que acabou por embrulhar-se em contradições insanáveis, beneficiar dessa distância libertadora.

Na recente edição dos dois títulos onde Sampaio recolheu as suas derivas em verso, Silvina Rodrigues Lopes lembra-nos uma frase decisiva de Victor Hugo nesse momento em que a literatura vem a ser fundada: “Tudo diz no infinito alguma coisa a alguém.” Talvez a nenhum outro leitor tenham dito tanto as aberturas e as provocações de Breton como a Sampaio, que, não só soube organizar de uma forma ainda mais vigorosa as suas lições, como soube separar aqueles desaires ditados pelo confronto e o desacerto dos elementos vitalistas numa tão exemplar quanto caótica relação combativa com as estruturas envolventes. Como assinalava Éluard, aquele foi o momento em que a poesia se reclamou como a tradição de todos aqueles que se recusam a ser explorados, sendo esta a força que “habita todo aquele que não se conforma com esta moral, a qual, para manter a sua ordem e o seu prestígio, só sabe construir bancos, quartéis, cárceres, igrejas e bordéis”.

Ernesto Sampaio sobreviveu pouco mais de um ano à morte da mulher que amava, a actriz Fernanda Alves. Deu-se apenas o tempo de a amar revoltantemente, destroçado, sentindo todo o absurdo da sua ausência. E recebeu a morte em casa, a 5 de Dezembro de 2001. Foi o grande poeta por extenso num momento tão conturbado e decisivo, e os seus ensaios são o que temos de mais admirável no que toca a essa “perseguição do indestrutível que acompanha a perseguição de si enquanto reescrita sem fim” (Silvina).

“Não contassem com ele para narrar as gestas ou recolher as opiniões dos demoníacos idiotas mentirosos e alcoólicos promovidos a ‘gente’ e ‘notícia’ nestes jornais que até um gorila, se não fosse analfabeto, teria vergonha de ler”… Isto nos diz ele no texto que fecha o volume agora dado à estampa pelo amigo que com ele manteve sempre um laço de uma cumplicidade quase enternecida. Vasco Santos soube ser aquele editor-admirador que qualquer grande poeta merece. E se hoje tardam em afirmar-se os verdadeiros poetas talvez seja por falta desta paixão desinteressada, deste cuidado e estima inelutáveis, dessas figuras que se mantêm numa defesa da transmissão dos valores capazes de integrar tudo o que diz respeito à vida, salvando-a desses outros mecanismos do tráfico e da promoção, sendo o poeta um ser que revela a todo o momento uma inaptidão total para estar no mundo, rejeitando todo o poder, todas as formas de triunfo ou comércio de favores. E é porque o poeta inspira sempre ódio e inveja, é por haver tantos que se sentem ameaçados pela possibilidade de se verem denunciados por comparação, sempre manobrando e levando por diante os seus enredos para se garantirem e evidenciarem, que o verdadeiro editor, mais até do que esse esforço de entregar ao infinito os seus livros, deve protegê-lo daqueles que procuram matar o poeta por temor à sua própria cobardia. Vasco Santos soube fazer isso por Ernesto Sampaio. Soube valorizá-lo acima desse bando de cretinos, e reconhecer nesse homem, que chegava a parecer um fantasma no meio dos viventes, um desses que lhe exigiam um compromisso inabalável, por ser um dos poucos capazes de interrogar a sua noite: “Nessa interrogação solitária, que resume a sua vida, dá aos outros a possibilidade de ver, mas ver verdadeiramente. Não lho perdoam.”

Prova disto mesmo é como tivemos entre nós um dos maiores construtores do sentido e do alcance da poesia no século passado, e como, mais do que esquecido, permanece escondido dos leitores. Ernesto Sampaio forma com Mário Cesariny e Herberto Helder a tríade dos que souberam dar as mais largas voltas e sublimar a sua existência num país que há muito persiste como uma mera infecção, “com o presente negado e o futuro deserto”. Um país que desde logo se impõe como um obstáculo, pois, tendo a fama de “país dos poetas”, isto quer apenas dizer que só lhe sobrevivem aqueles que aprendem desde cedo que o país é precisamente aquilo de que é urgente salvarmo-nos, como lembrava Jorge de Sena. Portugal faz poetas do mesmo modo como uma prisão, apesar dos inúmeros seres que conduz à inanição, faz a lenda dos seus evadidos.

“Pedia tudo ao reino nocturno e a luz do dia vingava-se, queimando-lhe as pupilas como o álcool. Frequentava a noite porque de dia só havia guerras fúteis, correrias sem sentido, desejos doentios de ser empresário, jornalista, cantor, engenheiro, ‘gangster’”, escreve Sampaio. Esta dimensão de um quotidiano asfixiante devido às intrigas de uma vizinhança nojenta é precisamente aquilo que anima o ímpeto da recusa. Diante do enredo que há muito entretém quase todos e os industria no sentido de viverem os seus dias alimentando esse “fétido vazadouro moral”, os que escapam a isto estão comprometidos com uma outra conversa, com um mundo de relações imprevisíveis, fora dos gonzos de toda a lógica.

Ernesto Sampaio foi o grande anunciador desse “universo de possíveis marginais onde tudo engendra o seu contrário e se opera a todos os instantes a coincidência dos opostos”. A tarefa de cada poeta é autorizar os demais a confiarem em si mesmos no sentido de se libertarem das relações de exploração e expropriação da sua aventura pessoal, e deve, por isso, implicar-se o mais possível na multiplicação dos apelos à necessidade de uma iniciação neste “comportamento lírico”, sem o qual o maravilhoso nunca será alcançado.

É neste ponto que Sampaio respondeu como mais ninguém a esse desafio, corporizando da forma mais radical essa exigência e esse princípio de disponibilidade que Breton assinalou como sendo o valor fundamental da acção poética. “Não espero nada a não ser da minha própria disponibilidade, dessa sede de vaguear ao encontro de tudo, em comunicação com os demais seres disponíveis, como se de repente todos escutássemos um apelo a reunir-nos. Gostaria que da minha vida não restasse outro murmúrio senão o de um cantar de sentinela, canção para enganar a espera. Independentemente do que venha ou não venha a chegar, o que é magnífica é a espera.”

Isto descreve idealmente o fulgor com que Sampaio soube gerar entre nós, neste triste lugar dominado pela desolação, um balanço estupendo, fosse pela exaltação de uma série de espíritos insubmissos, construindo uma linhagem imensamente instigadora, fosse elaborando “alguns meios concretos para abordar o imenso e desconhecido território das potências activas subtraídas à consciência em virtude de diversos juízos censórios”.

Tudo o que fazia dizia respeito à poesia, não na forma de meras tentativas, mas desse valor insurrecional e inspirador traçando um fosso imenso entre os poetas e as gerais “cabeças monocórdicas” que fazem questão de se pavonear debaixo das graças que infamam este ofício. “Pequenas burguesas! Putéfias de pequenos vícios e pequenas maldades! Não há em vós um só átomo de virtude, nem aquela grandeza no mal própria das pessoas dignas de um inferno honrado e rigoroso!”

O motivo pelo qual a poesia se deixou confundir com uma mera arte verbal, esses gracejos por vezes até bastante sedutores, mas que nos conduzem invariavelmente à inércia da consciência, é por termos sido lançados nessa projecção de um pesadelo omnívoro e obcessional que domina qualquer presente contra qualquer futuro. Neste estado de coisas, a confusão e o barulho poderiam parecer preciosos, no sentido de abrir margem a alguma calamidade, já que, como nos lembra Sampaio, “os espanhóis venceram os aztecas com o barulho; vozearia, relinchos, estalinhos domaram a América quase como o estrondo dos tanques e dos aviões alemães domaram a Europa ainda há pouco tempo”. O problema é que o ruído se tornou o pano de ferro da paisagem, alimentando a bafienta congregação de fantasmas. E não é possível despertar alguém que vive imerso num transe que nos conduz invariavelmente à insensibilidade e à indiferença… “basta pensar na banalidade que uma infinidade de gente julga ser o mundo”.

A vida do desejo tornou-se de tal modo difícil que de ora em diante os poetas ou existem numa ruptura decisiva ou são de algum modo cúmplices com este quadro de dominação

Este volume tão discreto que agora acolhe os ensaios mais rarefeitos desta voz que reconheceu como “tudo existe na sombra”, justificam o tão singelo título “Poesia” que foi escolhido para recolher os versos e alguma prosa de ordem mais suspensiva, mas não pela exemplaridade destas composições, antes pela sua fragilidade, pela demonstração de como o barulho pode ser combatido não pela força, não por meios extenuantes, mas por uma voz de tal modo débil que obriga aquele que quer ouvir a aproximar-se de tal modo que tudo o que é dito, cada conversa, abala o pudor num meio onde todos gritam. Como um beijo no rosto ou um segredo a um ouvido, de algum modo Ernesto Sampaio parece indicar que a poesia deve agora prosseguir como uma conversa entre aqueles que, mal ou bem, vão vivendo as suas hipóteses e histórias, aqueles que não procuram dirigir-se para toda a terra, mas romper com essa ficção miserável.

Os livros capazes ainda de sustentar alguma magia serão esses “vindos do outro lado do tempo”, quando havia ainda um certo pudor em relação à palavra, sendo evidente como esta procurava degradar o menos possível o silêncio. Livros “escritos no interior de um sonho”, como “sombras atrasadas” trocadas entre “corpos que ainda não existem”. Como se a literatura fosse uma erótica dos corpos que faltam, esses que se ligam uns aos outros sem possibilidade de dissolução, pois cada ser se reconhece como um “mistério vivo”.

Sampaio fala de uma relação entre dois seres como dois rios: “eu      tu/ com uma faca no meio”. Fala-nos nessa potência através da qual mesmo o nada ferve, e cada gesto sente “a porcelana juvenil do tempo”.

Não estamos aqui diante de uma dessas “obras completas” cheias da ganância de fazer da largueza da sua lombada nas estantes uma forma de imponência. Estamos, pelo contrário, diante de um opúsculo que homenageia em cada um dos seus detalhes esse sentido de vulnerabilidade, daquilo que por se sentir de tal modo exposto retira daí a sua força atenta, vigilante. É numa distância que se torna sensível “entre árvores sussurrantes” que se ouve “a eternidade         a dar à manivela/ a deslaçar de ervas aéreas/ a hélice divina”.

Os amantes até podem já nem se mexer. “Iniciados cedo/ nos mistérios da insónia/ deixámo-nos ficar na cama/ em viagem ao silêncio/ através da selva dos ruídos”. O fogo que se troca nestas páginas dá origem a um incêndio de tal modo contido que parece ter alcançado a maturidade daquilo que identificamos habitualmente como a poesia de feição surrealizante, quase sempre espavorida, um tanto demencial no seu ensejo de provar o talento absurdo libertado pela instintualidade onírica, fazendo passar a corrente entre realidades tão dissociadas entre si. Mas aqui, pelo contrário, o poeta surge atento à menor instabilidade na paisagem, sendo um ser educado por uma espera de tal modo severa, revela-se uma sentinela espantosa, notando como “em maiores lonjuras escutámos/ o deslizar de um comboio remoto/ a perfurar a noite/ e a seguir uma coisa/ indefinida/ que podia ser conversa/ de galos tão longínquos/ que pareciam telepáticos/ ou o rumor da terra/ a girar sobre o seu eixo/ finalmente o  silêncio puromedicinal/ que enchia os ouvidos/ e se tornava canto”.

Depois das exaltações estarrecedoras, dos movimentos de terras que descompunham tudo, virando a realidade do avesso, Ernesto Sampaio parece propor uma intervenção de ordem mais cirúrgica, recuperando aquela “infância perdida numa serra sonora”. Infância como esse lugar da memória ainda não devassado pelas palavras, que tudo empurram para a abstracção e os símbolos. Como se o mundo devesse ser recuperado na sua dimensão de uma linguagem concreta, “para sentir/ junto da apavorada carne/ algo de vivo/ próximo e amistoso”.

Noutro momento, o poeta lembra-nos que “para encontrar alguém/ é preciso partir”. E talvez a lição mais profunda seja como o conhecimento é o contrário da posse… “e os anos acumulam/ de um pó essencial/ antes de desaparecer/ para nunca mais”.

São dois os livros aqui reunidos, acrescentados de mais uns quantos dispersos. “A Procura do Silêncio” foi dado à estampa em 1989, e “Feriados Nacionais” dez anos depois. É um hiato que nos diz tanto sobre a dificuldade e a exigência deste ofício, o de lançar uma “sonda” no desconhecido: “A sombra dos sóis destruídos/ o buraco da fechadura branco/ das noites em que basta/ um fio de sangue/ para desfazer um mistério/ a longa estrada/ construída pelo hábito/ sobre os olhos/ os insectos esmagados/ contra o para-brisas/ a ave/ que canta melhor/ cega/ o sapo estilizado/ à sombra da figueira/ a porta em que se bate/ e ninguém responde// Lacunas fascinantes/ onde lançar a sonda”. Eis o sinal de um exercício que a cada palavra se interroga, se exige uma paciência letal, “mais forte que a noite/ e o seu eco de cascos/ de cavalos desaparecidos”.

Isto não é poesia para quem busca apenas algum mote no sentido de o torcer e glosar frivolamente, não é uma escrita que se ofereça à tagarelice própria desses que vêm para os versos coçar uma comichão que ainda nem sentem, mas querendo exibir as arranhadelas ou mesmo as cicatrizes dessa bulha consigo mesmo e com o mundo.

“A poesia é uma religião sem esperança”, como nos lembra Cocteau. “O poeta esgota-se, sabendo que a obra-prima não é, afinal, senão um número de circo de cão esperto em terreno pouco sólido.”

Ernesto Sampaio estava-se evidentemente nas tintas para esses ímpetos produtivos que animam os ladradores de ficções extenuantes, preferindo aquele passo dado nessa noite secular e que proporciona ao homem, tão limitado, um acrescento de infinito que o liberte. Era o efeito de libertação que ele buscava, mais até do que essas liberdades que muitas vezes conduzem mais depressa a fúteis demandas.

“Conquistar à intranquilidade o sentido do eterno, à amargura, o poder da revolta, à solidão, o direito ao diálogo”… Isto é uma espécie de ponto cardeal que fica a sul de nenhum norte, e liga-se com a ideia de que a poesia é uma moral autónoma, no sentido que lhe dá Cocteau. “Chamo moral a um comportamento secreto, a uma disciplina construída e conduzida de acordo com as aptidões de um homem que recusa o imperativo categórico, imperativo que distorce os mecanismos./ Esta moralidade específica pode até parecer uma imoralidade aos olhos daqueles que mentem a si mesmos ou que vivem sem regras, de modo que a mentira se torna numa verdade para eles e a nossa verdade numa mentira para eles.”

Ernesto Sampaio escreveu para ajudar não aqueles que pretendem começar, mas os que não desejam já exibir-se nem provar nada a ninguém, mas recolher-se no silêncio, alcançar a virtude daquele verbo que apenas abre a boca no sentido de assinalar essa necessidade de devorar o espanto.

“Cintila por vezes nestes quartos uma persistência do passado. A história possível da humanidade também tem a sua corte própria, uma virtualidade imperiosa, quase essencial, como se o irrealizado fosse a verdadeira alma do mundo”.

No fim, os grandes poetas calam-se, à medida que se sentem reconciliados com esse vigor da sua interioridade, que faz da realidade exterior um reflexo pálido, incapaz de acompanhar os movimentos interiores. “A memória do que existe e do que faz e prolonga esse existir, e a memória do que poderia existir e que ocultamente cresce e se renova, longe da teia de actos em que nos debatemos”.

Esta poesia não encherá as medidas a quase ninguém. Não está feita no sentido de abalar, submergir, ou sequer de agradar e seduzir. É um passo atrás, servindo-se “o menos possível” desses truques de prestidigitação ou dos grandes derrames e espasmos que deixam o idioma todo revirado. “Respirar/ o menos possível/ nestas cidades/ de uma tristeza/ sem idade/ abrindo o espaço/ com os gestos lentos de um náufrago/ a caminho/ do fundo// A noite sobe-me/ na voz/ como um lugar/ capaz de imaginar/ sozinho/ o seu cenário/ onde o azul/ dorme/ numa cave/ com os cães”.

Em vez de abrasar a língua, de escorchá-la viva, de simular o efeito dos cometas a caírem nas grandes massas de água, Sampaio propõe a atitude desse anjo relojoeiro que “recolhe em silêncio/ o astro de bolso”.

É uma disciplina que nos procura dar ânimo reconhecendo a tarefa tenebrosa que se coloca diante de nós face ao mundo como já nele somos lançados. O desafio assim passa por aprender a mover-se entre sombras, “sondar/ a linguagem das trevas/ dormir/ na neve dos limites/ atravessar flores distraídas// Decifrar/ numa pedra fria/ letras a arder/ entrar/ em comboios remotos (…) Ser/ um sinal/ lançado ao acaso na noite/ deixar/ noutra boca/ o gosto de uma ausência”.