Por que S. Pedro tanto chorou

Terá sido por acaso que a bandeira olímpica foi hasteada de pernas para o ar? Ou sinal de que nestes Jogos Olímpicos, como no mundo, está tudo virado do avesso? Choveu copiosamente durante toda a cerimónia de abertura. Abençoada? Absolutamente pelo contrário. O céu caiu-lhes em cima.

Nas célebres aventuras de Albert Uderzo e René Goscinny em que uma pequena aldeia resistia ao império romano em declínio, os destemidos gauleses liderados por Astérix e Obélix só tinham medo de uma coisa: que o céu lhes caísse em cima da cabeça.

No dia da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, os céus não deram tréguas e choveu copiosamente durante as quatro horas que demorou o espetáculo televisivo na cidade das luzes.

Ora, aí está. Nem S. Pedro perdoou a heresia da recriação da Última Ceia, com um trans rodeado por doze drag queens numa evidente alusão, no mínimo de muito mau gosto e provocatória, à última refeição de Cristo com seus apóstolos pintada por Da Vinci.

Ao fim de uns dias, a organização lá emitiu um comunicado pedindo desculpa aos cristãos que se sentiram ofendidos pela rábula – que, porém, começou por negar ter qualquer relação com o derradeiro encontro de Cristo com os doze apóstolos antes da crucificação, tentando remeter para o Banquete dos Deuses, de van Bijlert.

Convenhamos, mesmo que o fosse, bastava prestar-se à confusão para que a tentativa de desdita fosse tão ignominiosa como a traição de Judas.

Se houve momentos de extraordinária beleza e encanto na megalómana cerimónia de abertura dos Jogos de Paris 2024? Houve, com certeza e como não pode deixar de reconhecer-se, a começar pelo final e pela interpretação magnífica de Céline Dion projetada a partir da renovada Torre Eiffel, ainda que muitos dos fãs da cantora canadiana tenham ficado mais magoados do que incrédulos com o facto de a sua diva afinal ainda conseguir cantar assim, apesar do estado avançado da doença (síndrome da pessoa rígida) com que faz tempo justificou o seu afastamento dos palcos.

Mas a originalidade e a chauvinista necessidade de afirmação da diferença elevada ao absurdo acabou por distorcer o espírito olímpico e a verdadeira natureza dos Jogos da era moderna tal como Pierre de Coubertin idealizou a sua recuperação no final do século XIX.

A bem dizer, o facto de a cerimónia de abertura, pela primeira vez na história das Olimpíadas, não ter ficado confinada ao estádio olímpico, espalhando-se por toda a capital francesa, com o cortejo no Sena dos atletas de todos os países representados, mais os refugiados, virou quase uma obsessão na quebra da tradição e das barreiras.

Para elevar valores (ou melhor, causas) que nada têm a ver com as Olimpíadas.

Os Jogos Olímpicos nunca buscaram a igualdade nem premiaram as incapacidades ou as fraquezas da condição humana.
Desde a Antiga Grécia, glorificaram, sim, a superação do homem na tentativa de ir mais longe (mais rápido) ou mais alto e de ser o mais forte – daí o lema consagrado pelos romanos ‘citius, altius, fortius’.

Como também é uma herança da Antiguidade (Juvenal) a afirmação da mente sã em corpo são (mens sana in corpore sano) como receita para a felicidade humana.

Deixemo-nos de coisas, os Jogos Olímpicos são uma competição, sim. Em todo o seu esplendor.

Sem lugar para amadores nem tretas de que o importante é participar e blá, blá, blás…

O negócio é gigantesco e só mesmo para profissionais.

É o contrário do que se pretende apregoar para consumo dos papalvos.

Só há lugar para os melhores.

Daí que só lá cheguem os que cumprem os chamados mínimos olímpicos, cada vez mais seletivos.

E daí também o enorme risco desta tentativa de transformar os Jogos numa festa tipo Festival Eurovisão da Canção, mais alegre, mais festiva, mas que não tem nada a ver com a elevação do Desporto ao seu expoente máximo.

A radicalização das mensagens e o acirramento de causas fraturantes, de forma ostensiva e provocatória, não contribuem em nada para combater os extremismos e  divisionismos numa sociedade cada vez mais polarizada.
Sobretudo numa  altura em que a guerra voltou em força à Europa e ao Mundo. E em que a França vive um momento de futuro tão incerto.
Os Jogos Olímpicos da era moderna, idealizados por Coubertin, buscam a paz entre os Povos e as Nações – como simbolizam os cinco anéis interligados na bandeira olímpica, representando os cinco continentes.

Curiosamente, a bandeira foi hasteada ao contrário nesta cerimónia feita à medida de um mundo virado do avesso e de pernas para o ar.

Também por isso, estes Jogos de Paris incluíram  uma representação de refugiados, com o aplauso generalizado de quem continua sem perceber que a discriminação positiva pretensamente virtuosa acaba por traduzir-se na valorização do que é totalmente indesejável em defesa e respeito da condição humana, como a plena integração social e a ausência de rótulos.

E que não tem nada a ver com os Jogos Olímpicos.

Nem com a França, cuja maioria manifestamente não se reviu em toda aquela tão despropositada quão dispendiosa encenação.

Por todos, sentenciou a filósofa Bénérice Levet (cujo último livro se intitula A Coragem da Dissidência) no Le Figaro de segunda-feira: «A cerimónia não exaltou o espírito francês, mas sim a França que os seus organizadores gostariam de ver acontecer».

Quase apetece dizer que Emmanuel Macron, que decretou a abertura oficial dos Jogos de Paris 2024, devia fazer a Thomas Jolly (o ideólogo da coisa) o que Astérix e Obélix faziam ao bardo nos festins da Gália resistente aos invasores. Talvez assim evitasse que sejam cada vez mais os franceses a indignar-se e a fazer crescer a única alternativa que se lhes apresenta.

E que é quem mais sorri perante espetáculos como este, causadores de copioso pranto até a S. Pedro.

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