Conta a história que Johann Sebastian Bach (1685-1750) compôs uma ária instrumental, sobre a qual escreveu trinta variações, para o jovem Johann Gottlieb Goldberg tocar ao Conde Hermann Karl von Keyserling nas noites de insónia. A obra teria sido tocada por Goldberg num cravo de dois teclados e ficou conhecida pelo nome de Variações Goldberg. A ária tem um carácter vocal e está repleta de ornamentos que embelezam a melodia e lhe conferem a expressividade da voz humana. Em vinte e oito variações, Bach indicou o número de teclados do cravo que deveria ser utilizado na interpretação, de forma a valorizar a escrita, distribuindo as variações que realçavam uma escrita polifónica (imitações ou contraponto) para a execução num único teclado e as variações com uma escrita homofónica (melodia acompanhada) para a execução nos dois teclados do instrumento. A genialidade de Bach reside no facto de construir, a partir de uma simples ária dividida em duas partes, um conjunto de trinta variações (também ele dividido em duas partes) que reúne a arte do contraponto e a da melodia acompanhada.
No passado dia 28 de julho, esta obra foi interpretada ao piano por Pedro Burmester, na Igreja de Santa Clara de Vila do Conde no âmbito do ciclo de concertos e visitas guiadas Spatia Resonantia. Esta igreja é um dos “espaços ressonantes” escolhidos para a realização dos concertos da edição de 2024, que decorre até 30 de agosto em Vila do Conde.
Construída no século XIV, a Igreja de Santa Clara pertenceu ao mosteiro de clarissas que esteve ativo em Vila do Conde até 1893, ano em que faleceu a última religiosa e o mosteiro encerrou as suas portas. Apesar do órgão ser o instrumento-rei nos espaços religiosos e desta igreja ter possuído três órgãos, nos princípios do século XIX, as religiosas do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde estiveram sempre a par das inovações instrumentais do seu tempo, adquirindo um cravo em 1773 e um pianoforte no triénio 1804-07, alturas estas em que a construção nacional destes instrumentos já estava consolidada.
O primeiro pianoforte havia sido construído por volta de 1700, por Bartolomeu Cristofori, e as primeiras obras escritas para este instrumento – Sonate da Cimbalo di piano e forte detto volgarmente di martelletti da autoria de Ludovico Giustini di Pistóia – tinham sido impressas em 1732 e dedicadas ao Infante português D. António de Bragança, irmão de D. João V. Trata-se de um conjunto de 12 sonatas que já não se destinava ao cravo de penas (designação histórica do cravo atual, no qual a corda era pinçada por uma pena), mas ao cravo de martelos, que conseguia produzir sons com maior ou menor intensidade, dependendo da força exercida sobre a tecla, precisamente porque as cordas eram percutidas por um martelo.
O novo instrumento construído em Itália tomou o nome de pianoforte, fruto da junção de termos que remetiam para a capacidade do instrumento em produzir sons suaves e fortes na mesma tecla sem necessidade de recorrer à alternância de teclados, como se sucedia no cravo de penas. O piano atual resulta da transformação do pianoforte, através da incorporação de materiais metálicos que produzem um som mais forte, generalizado, e permitem uma maior resistência do instrumento às alterações climáticas.
Num piano moderno, Pedro Burmester presenteou o público com uma interpretação sublime, especialmente nas variações nos 13 e 25, cujo andamento lento permitia apreciar os pormenores da articulação dos motivos e o extenso leque de dinâmicas que o pianista explorou. O recital foi acolhido por um público caloroso que encheu a Igreja de Santa Clara, hoje monumento nacional, e que recebeu como encore o Prelúdio da 1a suite para violoncelo de J. S. Bach. Esta peça sobejamente conhecida permitiu saborear a implícita polifonia de Bach, ao contrário dos andamentos rápidos das Variações Goldberg, nos quais a interpretação virtuosa não conseguiu se sobrepor à perceção musical devido à reverberação imposta pelas condições sonoras do espaço.
O recital de Burmester trouxe à Igreja de Santa Clara sons dos tempos em que a música ecoava nessas paredes e a sua interpretação transmitiu uma excelente visão global da obra.