Do paraíso ao inferno

O PCP ainda se sente com direito de pernada sobre os portugueses.

Óscar Figuera, secretário-geral do Partido Comunista Venezuelano (PCV) há quase trinta anos, insurgiu-se quando soube que o PCP se apressara a saudar a batota de Nicolás Maduro. O PCV já havia, aliás, alertado a opinião pública internacional para o embuste. Em reação aos resultados eleitorais, o partido afirmou que «o governo de Maduro privou o povo venezuelano dos seus direitos sociais e económicos» e «hoje pretende privá-lo dos seus direitos democráticos».

Figuera conhece bem o PT brasileiro, que sempre apoiou qualquer ditadorzeco sul-americano desde que fosse de esquerda. Mas manifestamente não sabe o que é o PCP. E não admira, pois a verdadeira natureza do PCP é ora ignorada ora tolerada pelos média e pelo establishment portugueses. O branqueamento do PCP é uma história velha, feita de cumplicidades, subserviência e profundo desconhecimento.

O PCP tem pouco de português, pois o seu ‘internacionalismo’ pro-cleptocrata é incompatível com os interesses do país. Tem também pouco de comunista, dado que se converteu ao corporativismo sectário herdado do Estado Novo. E tem ainda pouco de partido político, porque o PCP é, sobretudo, uma organização burocrática liderada por funcionários. Uma organização que sobrevive à custa quer da ‘dízima’ dos camaradas que ocupam lugares de topo nas instituições políticas e nos sindicatos do Estado, quer dos ativos imobiliários de que o PCP se apropriou no PREC, quer das receitas de um festival religioso de verão que não paga impostos, graças à ‘Concordata’ que os partidos outorgaram entre si há cinquenta anos.

O PCP ainda se sente com direito de pernada sobre os portugueses, respaldado na Constituição que temos desde 1976 e que foi imposta sob chantagem à Assembleia Constituinte por militares que o partido atraíra para a sua órbita. Os herdeiros dessa aliança são os oficiais generais que desfilam hoje nas televisões, fazendo propaganda a favor da Rússia a propósito da invasão da Ucrânia.

Não, o PCP não é um partido, nem é comunista ou sequer português. E também não é um fóssil, ou um grupo inofensivo e em extinção. O PCP apoia regimes sinistros, como a Coreia do Norte ou a Síria, e legitima qualquer ditador que combata a democracia ‘burguesa’. É militantemente contrário a tudo o que tenha a ver com o bloco ocidental, desde a NATO à própria União Europeia. E fala de direitos humanos e de liberdades individuais apenas e só quando lhe convém.

Com a queda do Muro de Berlim e a derrocada da URSS, o PCP transformou-se numa seita cujos crentes não conseguem reconhecer que os seus paraísos semeiam sempre infernos. Ainda assim, o PCP continua, desde Cunhal, a exercer um estranho fascínio em muitos democratas, levando-os a esquecer que, para o partido, «as eleições não têm nada a ver com a dinâmica revolucionária».

O PCP usa a democracia representativa porque esta lhe interessa enquanto espaço para a divulgação e promoção do evangelho segundo São Estaline. O partido reconhece o voto popular se este lhe for favorável; tolera as liberdades individuais e a autodeterminação dos povos se, onde e quando lhe for conveniente; apoia os direitos dos trabalhadores porque não tem o poder de construir um monopólio de Estado que proíba as greves. É esta a sua génese e a essência do seu maniqueísmo.

O apoio a Putin e a Maduro não são um erro de cálculo. A perda de votos que estas posições impopulares acarretam é irrelevante para o PCP, porque o poder que lhe interessa não resulta da dinâmica democrática.

Como escreveu Jean-François Revel, «se o fascismo e o comunismo só tivessem seduzidos os imbecis, teria sido mais fácil livrarmo-nos deles». Os socialistas democráticos que admitem o frentismo de esquerda deveriam ler este filósofo francês. Se não tiverem paciência para ler tudo, recomendo A Grande Parada, um ensaio sobre a sobrevivência da utopia socialista à implosão da URSS.