Sabemos que a coligação Aliança Democrática foi excluída das eleições legislativas de outubro por «não reunir os requisitos legais estatuídos para a apresentação de candidaturas», como se pode ler no comunicado da Comissão Nacional de Eleições. O que aconteceu?
Existem várias etapas do processo eleitoral. Há uma que é a etapa da inscrição dos partidos e é extremamente importante. É apresentado um conjunto de documentos que comprovam que a situação legal do partido está em conformidade ou não, cuja referência é a deliberação 59-CNE-2024, de 9 de maio. E essa deliberação foi posteriormente publicada em Boletim da República. Passada essa etapa, vem outra que é a da apresentação de candidaturas, isto é, candidaturas para concorrer à Assembleia da República e às Assembleias Provinciais. Então, nesta etapa da apresentação das candidaturas foi onde começou o problema, porque a Comissão Nacional de Eleições solicitou documentos que têm que ver com a etapa anterior da inscrição. Um dos documentos que a Comissão Nacional de Eleições solicitou é o chamado averbamento da coligação. Portanto, o averbamento da coligação, em termos simples, é uma atualização da situação legal da coligação. Nessa altura, nós tínhamos um averbamento que era de 2018 e eles queriam um averbamento atualizado. Mas eles colocam isso como uma irregularidade suprível, como acontece em qualquer processo. Esse averbamento é solicitado a nível do Ministério da Justiça, e o Ministério da Justiça emitiu-nos o averbamento, nós apanhámos o averbamento e entregámos à Comissão Nacional de Eleições. A Comissão Nacional de Eleições alegou que o averbamento foi entregue tardiamente e que nós o deveríamos ter entregado na etapa da inscrição. Assim, a Comissão Nacional de eleições rejeita a CAD na etapa das candidaturas e isso é algo que não tem base legal. Porquê? Porque para se rejeitar uma candidatura, ou as questões de nulidade de uma candidatura, é preciso haver falta de um averbamento. Não existe. A lei eleitoral define outro tipo de critérios para uma candidatura ser nula.
E já apresentaram o recurso, certo?
Exatamente. Nós apresentámos o recurso, mas o recurso foi chumbado no dia 1 de agosto pelo Conselho Constitucional. Então esta é a novidade, não é? Então, o Conselho Constitucional chumbou o recurso, mas o Conselho Constitucional chumba este recurso com base em argumentos que até posso considerar vergonhosos. É a última instância de recurso do país.
Ou seja, estão oficialmente impedidos de concorrer à legislativas. Que impacto pode ter esta decisão na sua candidatura presidencial?
Bom, é um impacto mais operacional porque significa que por essa via, por exemplo, eu já não posso indicar por via da CAD o pessoal para fiscalizar o processo, aquilo que nós chamamos de delegados de candidatura. Portanto, há cerca de 25 mil mesas de voto e tínhamos o direito de indicar 50 mil pessoas para fiscalizar o processo. Eu, por exemplo, se ganhar as eleições presidenciais, já não poderei ter uma bancada no Parlamento que me suporte. Logo, isso vai implicar ter de entrar em acordos com os partidos que tiverem sido eleitos para a Assembleia da República em caso de eleição. Mas eu acho que não é isso que deveria ser motivo para retrair, digamos, a nossa vontade de continuar com o processo, não é? É a manifestação da nossa participação política. Se puder acompanhar o meu percurso, eu tenho sempre participado em processos em que tenho deixado um legado político e jurídico histórico. Então há uma certa pedagogia também que é importante. Vou dar-lhe um exemplo: eu sou o único político moçambicano que já renunciou a dois mandatos na Assembleia da República e aí fica uma lição com todas as implicações que isso tem; segundo, sou o único político em Moçambique que já levou o seu próprio partido a tribunal e ganhou a causa. Isto nunca aconteceu na história de um moçambicano.
Ou seja, se o percebi, vai concorrer mais pela imagem, pelo legado que tem, do que propriamente para ganhar, é isso?
Quer dizer, é lógico que concorro sempre para ganhar, mas não tenho nenhuma obsessão nesse sentido. É um contributo para a história democrática do país. Basicamente é isso. O resto ver-se-á nessa altura. Como sabe, os processos políticos têm muitas nuances, então nós não sabemos exatamente que configuração vamos ter no Parlamento, como é que esse processo vai decorrer, então não podemos, com medo do futuro, deixar de fazer o nosso papel no presente.
E acredita que, mesmo depois do que aconteceu nas eleições autárquicas do ano passado, estas eleições de 9 de outubro possam colocar um ponto final na hegemonia da FRELIMO ou isso é apenas uma miragem?
O fim da hegemonia da FRELIMO é um desejo que todos nós temos. Mas, entre um desejo e um facto às vezes não há uma correspondência linear. Agora temos de perceber que a FRELIMO, neste momento, tem o domínio das instituições de justiça e o domínio das forças de defesa e segurança, que é a arma mais forte que a FRELIMO usa para se manter no poder. Portanto, a FRELIMO já não consegue manter o seu poder pelo voto popular. E às vezes nós metemos na fórmula a questão da preferência, mas a FRELIMO não tem neste momento nenhum apoio nem qualquer base social para se manter no poder.
O que a FRELIMO tem são as forças de coerção tanto jurídicas como operativas. Estou a falar da polícia, do exército e também do Conselho Constitucional. Também os tribunais e a Procuradoria estão sob o domínio deles. Portanto, são essas forças que a FRELIMO utiliza. Então, por via meramente eleitoral não se pode dizer que se vai conseguir derrubar essas forças. O importante é que a hegemonia da FRELIMO podia cair a partir do momento em que as armas que usam para manutenção do seu poder por via da força pudessem ser atacadas.
E como sugere atacar essas armas?
Uma das formas de atacar essas armas é conseguir ter, digamos assim, alianças nessas classes profissionais dos juízes, dos procuradores, dos militares e dos polícias, o que neste momento está um pouco difícil. Nós tivemos um caso, penso que foi no Malawi, em que o conselho constitucional, que não é propriamente um conselho constitucional, chamam-lhe Tribunal Constitucional, tomou uma decisão que não era da vontade do partido no poder, o povo manifestou-se e as forças de defesa e segurança marcharam com o povo.
Está a sugerir que essas ‘armas’ da FRELIMO deem a mão ao povo, derrubando a FRELIMO a partir de dentro…
Exatamente. Também era uma das nossas propostas, como é que nós vamos resolver isto? Nós até estamos a ser vítimas exatamente pelas propostas que tínhamos de reforma do Estado. Entende-se, não é? Então acabamos por sofrer um pouco porque estamos a trazer propostas muito ambiciosas que iam mudar o status quo. Uma delas, por exemplo, era a despartidarização do próprio Conselho Constitucional. Propomos também, por exemplo, o fim dos partidos na Comissão Nacional de Eleições, passando a ser constituída por pessoas da sociedade civil que não ficassem ancoradas aos partidos na sua composição. Então, estas duas propostas também assustam um pouco o regime. E quando eu digo regime, não estou a falar só da FRELIMO, é a FRELIMO, mas são também as lideranças de alguns partidos que estão acomodados em só ter alguns lugares no Parlamento, incluindo a própria RENAMO e o MDM. No fundo, estes é que acabam por suportar o próprio regime. É por isso que a anulação e o chumbo da CAD tiveram a contribuição do MDM e da RENAMO. Então, a proposta que nós tivemos da reforma da Comissão Nacional de Eleições, da reforma do Conselho Constitucional, da reforma do próprio Governo, de transparência nos negócios públicos e nas despesas do Estado, tudo isto é desfavorável a quem está acomodado e confortável com a situação atual.