Em primeiro lugar, gostaria que me falasse um bocadinho de si e do seu percurso nesta área. O que o levou a ser treinador de cães?
Sou treinador por amor aos cães. Desde que me lembro de existir, que os cães fazem parte da minha vida. A oportunidade surgiu quando entrei para a Força Aérea Portuguesa, onde fiz o Curso de Treinador e Tratador de Cães, no início dos anos 90. Embora, a seguir, tenha trabalhado noutras áreas, estive sempre ligado ao treino de cães e criei a ‘Carlos Cordeiro – Escola de Cães’ em 2005, com um método de treino único à época e ainda hoje inovador: focar o treino nas pessoas, nos donos. Porque o treino é um processo contínuo, que dura a vida toda do animal e serão os donos que irão acompanhar o cão ao longo de todo o percurso. Por isso têm de ser eles a saber como agir em quaisquer circunstâncias.
Qual o papel do treinador?
Identificar as causas dos problemas e dar aos donos os conhecimentos necessários para os antecipar e corrigir. Daí a importância das aulas em casa e nos locais frequentados pelos cães. Corrigir os problemas onde eles acontecem, sempre na presença dos donos e com a colaboração destes e assim também reforçar a ligação entre dono e cão.
O que é que estes animais têm de tão especial?
Os cães foram a primeira espécie a ser domesticada. O laço entre humanos e cães é o laço mais antigo entre espécies. São mais de 15 mil anos de convivência. Só por isso, os cães são especiais. Além disto, o seu papel nas nossas vidas tem vindo a mudar e a tornar-se cada vez mais alargado: são os nossos companheiros e amigos, dão-nos ânimo e tantas vezes assistência, ajudam-nos em vários aspetos: na prevenção e na terapia de doenças, dão-nos apoio emocional e prático, defendem-nos, cuidam de nós. Ao longo de milhares de anos desenvolveram uma forma de comunicação única connosco e uma compreensão que vai além daquilo que a Ciência já comprovou. Vejo isso todos os dias no meu trabalho.
Os nossos animais de estimação são um espelho nosso? Ou seja, o problema não está muitas vezes nos cães mas sim nos donos?
Sem dúvida. Pela sua proximidade a nós… Os animais de estimação convivem em intimidade com o núcleo familiar, os cães absorvem os nossos estados de espírito. Sentem o nosso medo e ansiedade e refletem-no sempre à sua maneira. O nosso comportamento influencia o deles mais do que pensamos. Daí dizer que treino donos e não cães. Regra geral, sem querer, acabamos por ser os causadores dos comportamentos desajustados dos nossos cães. Perceber isso, é resolver metade do problema.
Quais são os principais entraves no treino de um cão?
Se os donos não colaborarem ou se, algures durante o processo, se afastarem do que aprenderam, os problemas irão voltar, por vezes, ainda com mais intensidade. Não basta deixar o animal entregue a uma escola ou treinador. O treino é um processo contínuo e evolutivo. É preciso estar presente e ter a humildade para perceber que, mesmo sem querer, podemos estar a prejudicar os nossos cães. Ao querer fazer bem, podemos estar a fazer o contrário. Por isso, não basta ter boa intenção. É preciso ter o conhecimento sobre o que causa determinados comportamentos nos nossos cães.
Quais os problemas mais comuns quando as pessoas o procuram?
Desde o treino de obediência básica para cachorros e mesmo para cães adultos (porque não é verdade que os cães mais velhos não aprendem), até à adaptação a uma nova realidade de cães que vieram de associações e canis… Muitos vêm com traumas derivados aos maus tratos ou da própria vida num canil, que é muito diferente de viver numa casa, com uma família, até à ansiedade de separação por estarem muitas horas por dia sozinhos… Todos os comportamentos que podem ser desencadeados a partir daqui… O aprender a andar à trela sem puxar; a não reagir a outros cães e pessoas; a conviver entre si (quando há mais cães em casa); a conviver com gatos e outros animais domésticos; a adaptação a mudanças de casa e alterações do meio familiar; quando nasce um bebé ou quando a dinâmica da família muda… Enfim, são tantas as situações com que as pessoas se deparam no dia a dia e nas quais o treino pode ser fundamental.
Quais os maiores erros que os donos cometem com os seus patudos?
Na grande maioria dos casos – e convém frisar isto muito bem – as pessoas não erram de propósito. Querem fazer o melhor pelo seu cão e acreditam estar a fazê-lo. Mas, por vezes, acabamos por cometer erros que podem sair-nos caros. A nós e aos nossos cães. É preciso ter consciência de que um cão é e será sempre um animal. Apesar da sua inegável inteligência e capacidade de aprendizagem, os cães não têm a capacidade de racionalizar como nós e agem por instinto. Conhecer o nosso cão, ter tempo e disponibilidade para lhe dar atenção e desenvolver laços, perceber como se comporta naturalmente, o que gosta de fazer, onde gosta de passear, é essencial. Por vezes, na azáfama do dia a dia não é fácil ter esta disponibilidade, mas é importante.
Isso significa que muitas pessoas cometem o erro de pensar nos seus cães como seres humanos?
Sim, a humanização dos cães acontece frequentemente e é um erro. Tem muito a ver com o facto de os cães viverem sobretudo em meio urbano, cada vez mais próximos de nós. Partilham o mesmo espaço, por vezes dormem connosco no quarto ou na nossa cama e são cada vez mais vistos como membros integrantes da família. E não há nada de errado nisso, pelo contrário. Mas é preciso não esquecer que os cães não são seres humanos, têm a sua própria natureza e comportamentos distintos. É preciso ter bem a noção de que tratar bem um animal começa por saber respeitar e honrar a natureza deste.
O tema da agressividade nos cães gera muita controvérsia. Um cão pode realmente ter essa tendência para ser agressivo ou é antes um reflexo do ambiente que existe em seu redor?
Geralmente, o comportamento agressivo ocorre como reação a algo. A um trauma, a maus-tratos, a uma doença, etc. Pode acontecer também como reação a qualquer estímulo ao redor, algo que incomoda o animal ou que este percebe como um potencial fator de perigo. É verdade que existem raças de cães com características genéticas que podem propiciar um comportamento mais agressivo, mas a verdade é que o meio em que vivem e a forma como são tratados determina em larga medida o seu comportamento.
Qual diferença entre treinar esses e outros?
Existem raças classificadas como perigosas ou potencialmente perigosas. A Lei é clara neste aspeto. Mas também refere que qualquer cão que tenha atacado uma pessoa ou outro animal pode ser referenciado assim, independentemente da raça. Ou seja, o que determina a perigosidade é sobretudo o comportamento. O porte, a força da mordida e características genéticas que também influenciam o caráter e o comportamento do cão devem ser tidos em conta, mas, na minha opinião, não são determinantes neste aspeto.
O treino de cães perigosos ou potencialmente perigosos, em Portugal, é efetuado pela GNR e pela PSP. Há um curso específico ministrado por estas autoridades que forma os treinadores que se candidatam para este tipo de treino. Mas é possível e desejável, antes e acima de tudo, usar o treino como forma de prevenir a ocorrência de comportamentos agressivos. Até porque, na minha opinião, a forma como o animal é criado e tratado, o ambiente onde vive, determina muito mais o seu comportamento do que quaisquer características genéticas. É evidente que um animal com uma mordida potente como um pitbul, se for estimulado para ter um comportamento agressivo, irá provocar danos maiores do que um cão de outra raça ou porte. Mas não é por ser um pitbul que é naturalmente agressivo.
E quais os mais inteligentes?
Todos. É simples. Todos os cães podem ser treinados e reabilitados. E todos nos podem dar tanto! Claro que existem características específicas próprias de cada raça, mas, como costumo dizer, se as pessoas soubessem a quantidade de cães extraordinários que existem, por exemplo, nos canis e que, com o treino adequado, podem ser excelentes cães de família, de terapia e até de assistência, não ficariam tão presas à ideia de uma raça em particular.
Há uma grande diferença entre disciplina e punição…
Diferença total. Uma nada tem a ver com a outra. Antes de mais, há algo que necessita ser entendido: os cães são animais de matilha e cada matilha tem um líder, um “Alfa”. A função deste líder é, sobretudo, proteger a matilha. A matilha confia no líder, segue-o e apoia-o. É o instinto de sobrevivência.
Em casa, connosco, o núcleo familiar é a matilha. Se o dono não assumir uma postura assertiva, se não liderar a “matilha”, o cão vai sentir que terá de ser ele a fazer esse papel. Isto pode levar a comportamentos desajustados que, muitas vezes, são confundidos com agressividade. Infelizmente, muitos ataques de que ouvimos falar acontecem por este motivo. O cão está a tentar proteger a família de algo que percebe como sendo um perigo e ao fazê-lo, acaba por magoar. A disciplina não significa que não possamos premiar os nossos cães com festas ou biscoitos. Apenas que temos de ser assertivos quando damos um comando e assumir uma postura disciplinadora quando o animal não obedece. Para o seu próprio bem. Isto transmite segurança aos cães, não medo, ao contrário da punição. Punir um animal condiciona o seu comportamento através do trauma. E o resultado acaba por ser desastroso. Ter um animal medroso e nervoso é indesejável a todos os níveis.
Qual a situação mais complicada que já teve em mãos?
Tive um caso há anos, um cão – que não pertencia a nenhuma das raças classificadas como perigosas ou potencialmente perigosas – que atacou uma das donas com gravidade, mordendo-a na face. A senhora precisou de várias cirurgias para recuperar. O animal foi considerado um caso perdido por dois treinadores, que recomendaram o abate.
Só que as donas não se conformaram com isto e contactaram-me. Posso dizer com muita satisfação que o animal ainda está vivo e continua a viver com as mesmas donas. Não houve mais ataques, vivem tranquilamente. Aprenderam a ser donas daquele animal. Compreenderam os motivos que levaram ao comportamento que provocou o ataque e não desistiram do seu cão. Isto é muito importante. Ao ajudar o seu cão, ajudaram-se também a si próprias, porque ultrapassaram o medo e o trauma.
Em Portugal não existe a profissão de treinador de cães. Mas existem vários treinadores e escolas, com métodos de trabalho muito diferentes. Há alguns perigos nisso?
Muitos. Para as pessoas, que não têm quaisquer garantias sobre quem estão a contratar, embora possam – e devam – pedir evidências da formação e todos os esclarecimentos sobre o método de trabalho daquele profissional. Para os animais, que acabam, muitas vezes, por sofrer nas mãos de pessoas pouco habilitadas.
O método de trabalho que desenvolvi e que defendo, faz com que o animal nunca se afaste do dono para que o laço entre ambos não só não seja quebrado, mas saia fortalecido. Também nunca usei métodos de contenção violentos ou punição, além de um tom de voz mais alto e uma postura assertiva. Da mesma forma, também não utilizo biscoitos ou outras recompensas durante o treino. Isto por um motivo muito simples: o animal tem de se focar no dono, não na recompensa. E o dono tem de conseguir, a todo o momento, fazer com que o cão o siga e obedeça sem precisar de biscoitos ou sem ter de castigar seja de que forma for.