Taghi Rahmani. ‘Aos olhos do regime iraniano, este livro é um crime, um atentado contra o Estado’

Casado com a ativista Narges Mohammadi, esteve preso por motivos políticos tanto no tempo do xá como no dos aiatolas. Em 2012 abandonou o país. Assistiu em direto ao anúncio da atribuição do Nobel da Paz a Narges, em outubro de 2023, enquanto ela continuava detida na cadeia de Evin, a 5.000 km de distância.

Nascido em 1959, foi durante anos uma presença assídua nas cadeias iranianas. A primeira detenção – «uma coisa muito caricata» – sucedeu quando tinha 15 anos, ainda no tempo do xá Mohammad Reza Pahlavi. «Começou aí a minha vida política», recorda. Taghi Rahmani tornou-se jornalista e celebrou a queda do xá em 1979. Mas iria rapidamente desiludir-se. Já no regime dos aiatolas esteve preso intermitentemente entre 1982 e 2012.

Em 2001 casou-se com Narges Mohammadi, uma das mais destemidas e determinadas críticas do regime iraniano, cuja luta pelos direitos das mulheres e pela abolição da pena de morte lhe valeu várias penas de prisão, a mais recente das quais em 2021. Valeu-lhe também o reconhecimento internacional, tendo sido distinguida com o Prémio Andrei Sakharov em 2018 e com o Nobel da Paz em 2023. Estando, então como agora, encarcerada na prisão de Evin, Narges conseguiu fazer passar o discurso de aceitação para o exterior, o que levou ao agravamento da pena.

Taghi não vê a mulher desde 2012, altura em que ele saiu do país – atualmente reside em Paris. Mas continuam a trabalhar ambos pela causa dos direitos humanos. A propósito da publicação de Tortura Branca (ed. Casa das Letras), uma compilação de testemunhos de prisioneiras políticas iranianas feita por Narges, o ativista esteve em Lisboa para falar sobre a sua experiência e dar voz às denúncias e reivindicações da sua mulher. Como Taghi Rahmani não fala outra língua que farsi (ou persa), a conversa foi mediada pelo intérprete Ashkan Seifi, iraniano residente em Lisboa há cerca de 40 anos, que também interveio aqui e ali.

Quando foi a última vez que viu Narges em carne e osso?

A 12 de fevereiro de 2012. Era cerca de meia-noite quando nos despedimos. Estava uma grande tempestade de neve, 21 graus negativos. Os nossos filhos, que na altura tinham três anos, já estavam a dormir. Dei um beijo a cada um deles e fui ter com Narges. Despedi-me dela, continuei pela rua fora, e depois disso nunca mais a vi.

Costumam falar por telefone?

Dois meses depois de eu sair do Irão Narges foi detida. A maior parte da nossa vida foi passada entre a casa e a prisão. Eu próprio estive preso, ao todo, durante mais de 14 anos.

Mas falam por telefone? Comunicam de alguma forma?

Não. Desde que ela ganhou o Prémio Nobel nem tão-pouco tem autorização para falar com os familiares – irmão, irmã, marido, filhos… Nem sequer a autorizaram a assistir ao funeral do pai. Não existe comunicação direta.

Então comunicam por interposta pessoa?

Existem contactos indiretos com Narges. Mas ela sofre as consequências. De cada vez que escreve alguma coisa e isso é divulgado cá fora leva com um aumento da pena.

Deixar o Irão e separarem-se deve ter sido uma decisão muito difícil. Foi tomada em conjunto pelos dois?

Eu nunca quis que nos separássemos, a separação foi-nos imposta. Por mim teria continuado com os meus filhos. Os filhos precisam dos pais. A minha filha costumava dizer: ‘Sempre que há pai não há mãe; e quando há mãe não há pai’. Desde sempre eles tiveram de se habituar a, ora a mãe, ora eu, sermos condenados e presos. Isso provocou danos, eu tenho tentado que os possamos ultrapassar da melhor forma. Qualquer pessoa devia ter direito a uma vida normal mas o regime tirou-nos esse direito. Eu luto para que todos possamos vir a ter uma vida normal no Irão. Para isso, direitos humanos, liberdade, democracia são valores fundamentais.

Onde estão agora os vossos filhos? Já são adultos?

Há nove anos que estão comigo. Ou seja, há nove anos que não veem a mãe.

Deve ter sido muito difícil criá-los assim. Umas vezes só o pai, outras vezes só a mãe. Tiveram o apoio de algum familiar?

A minha mãe esteve comigo para me apoiar. Sacrificou sempre a vida por mim e ajudou muito os netos. Mesmo assim as crianças cresceram num ambiente complicado. E com um sentimento de não terem família – sem tias, sem tios… Foi difícil, mas cresceram. Falei com eles, disse-lhes: ‘Esta é a nossa condição, a nossa realidade. Não vale a pena chorarem muito. Vamos olhar para o futuro e tentar criar oportunidades’.

E no caso de Narges, como lidou com isso?

Narges sabia que era doloroso para os filhos estarem afastados da mãe. A minha filha dizia: ‘Vocês, políticos, se são assim, então porque é que se casam?’ Eu respondia-lhe: ‘Também somos seres humanos e temos direito a casar’. E ela insistia: ‘As pessoas normais vivem com os filhos’. Narges escreveu há pouco tempo uma carta aos nossos filhos a dizer-lhes que para que milhões de crianças não passem pelo que eles passaram, aceitem este afastamento. E a pedir-lhes que lhe perdoem pelo caminho que escolheu.

Disse-me que passou 14 anos preso. O que fez para ir parar à prisão?

Comecei a minha luta política quando tinha 15 anos. Estive preso por duas vezes na época do xá, mas por pouco tempo. Depois estive preso de 1982 a 1985, de 1986 a 1994, de 2000 a 2002, de 2003 a 2005 e de 2011 a 2012. No meio disso tudo ia tendo sempre detenções de um dia ou dois, aqui ou acolá.

E eram piores as prisões no Irão do xá ou as do Irão dos aiatolas?

Nunca estive preso por períodos longos na altura do xá. Especialmente na década entre 1980 e 1990 as prisões eram muito más. Na altura da reforma melhoraram um bocadinho mas de uma forma geral ainda têm condições muito desumanas.

As pessoas têm curiosidade acerca de como é a comida, como são as casas de banho numa prisão. O que nos pode dizer da sua experiência?

De 82 a 90 foi extremamente difícil. Estive durante um ano inteiro, nessa altura, numa cela de 30 metros quadrados, cinco metros por seis metros, com 30 pessoas a viver lá dentro. Podíamos ir à casa de banho três vezes por dia e tínhamos uma hora para acesso ao ar livre. O resto era dentro dessa cela. Era muito difícil.

Essas pessoas eram também presos políticos ou ladrões e criminosos de delito comum?

Eram todos prisioneiros políticos. Desde 1982 o Irão tem uma população prisional três vezes superior à capacidade das prisões.

Ashkan Seifi: Uma coisa que achei muito estranha enquanto fazia uma pesquisa sobre a prisão de Evin, onde está detida Narges, é que o tribunal fica dentro da prisão. Essa prisão foi construída em 1972 para 320 pessoas. Atualmente estão lá 15 mil pessoas.

Isso é um barril de pólvora.

Taghi Rahmani: Quando a lotação é quatro vezes superior, a qualidade da prestação dos serviços vai diminuir necessariamente. Naquela época, a única forma de me derrubarem era privarem-me das minhas necessidades básicas. Neste momento estão a tentar fazer a mesma coisa com Narges. Há sete meses que não consegue comunicar com nenhum membro da família. Quando o pai faleceu, não a deixaram assistir ao funeral. O guarda prisional diz: ‘Eu só presto serviço a um prisioneiro quando ele obedecer às minhas ordens’.

Esteve preso em jovem por contestar o xá e mais tarde, como jornalista, por escrever notícias incómodas e criticar o regime?

Não. Essa primeira prisão foi uma coisa muito caricata. Os alunos da universidade de Teerão tinham escrito um artigo a explicar as razões por que estavam a fazer greve. E eu peguei nesse artigo e divulguei-o na escola secundária onde estudava. E as autoridades perguntaram: ‘Porque é que divulgaste isso que ameaça a segurança nacional?’ A minha vida política começou aí. Na altura do xá, bastava ter lido um livro, por mais ligeiro que fosse em termos de peso político, para ser detido. Todas as forças partidárias estavam limitadas e não havia forma de o povo se exprimir. A revolução [islâmica, em 1979] foi como uma tempestade, milhares de pessoas que se juntam e mexem com a política do país.

Estava em Teerão quando se deu a revolução?

Entre Teerão e Qazvin [cidade industrial 120 quilómetros a Norte de Teerão].

E viu essas multidões nas ruas?

Ashkan Seifi: Eu vi.

Taghi Rahmani: Eu era um dos jovens revolucionários. E isso era normal, porque toda a gente queria a revolução.

Tinham esperança num futuro melhor?

Cem por cento. Khomeini na altura mentiu ao povo iraniano, porque se o povo soubesse como ia ser ninguém aceitaria. Ele em Paris, antes de ir para Teerão, deu uma entrevista em que disse: ‘Vamos ter uma revolução como a Revolução Francesa. Não é uma teocracia em que toda a gente tem de ir à mesquita. Não temos nada que ver com a gestão do governo. Os comunistas são livres. Qualquer um se pode candidatar e ser eleito’. Mas quatro ou cinco meses depois da revolução avisou os escritores e jornalistas: ‘Essas canetas são todas para partir. Não há nada para escrever’. A revolução come os seus próprios filhos.

Portanto havia uma grande esperança. Mas a gente olha para Khomeini e vê-se logo que ele tem ar de uma pessoa dura, um homem muito sisudo. Não é uma figura que desperte simpatia.

Excelente pergunta. Imagine quão duro era no tempo do xá para o povo aceitar o Khomeini. Primeiro o povo quer derrubar aquele que está.

Mas o que vem a seguir pode ser ainda pior…

Em 1979 os nossos políticos deviam ter tido uma atitude mais decidida para com Khomeini. Tinham que assinar acordos e tratados, não podia ter sido tudo à base da confiança. No início Khomeini era diferente, falava de uma forma correta e educada. Mas a partir do momento em que sentiu que podia governar em ditadura… Basta ver as entrevistas que ele deu em Paris, que foram mais de 400, para chegar a esta conclusão. A revolução teve um fundo popular. Mas atualmente o nosso povo é mais culto, mais consciente, e é pouco provável que volte a ser enganado.

Alguns dos grandes líderes, como Gandhi e Mandela, estiveram presos. Ter passado tanto tempo preso fez de si um homem mais sábio, mais ponderado?

Deu-me uma grande experiência. E o mesmo se pode dizer de estar exilado. A prisão dá-nos muita experiência. Mas também torna algumas pessoas meros sonhadores.

Podia ler quando estava na prisão? Tinha acesso a livros?

De 82 a 90 não tive acesso a quaisquer livros que não fossem os do próprio regime. Esse é o período mais negro da história iraniana. Execuções em série, exílios, porque ainda havia guerra, e com a desculpa da guerra Khomeini ‘limpava’ qualquer pessoa que estivesse no seu caminho e lhe fizesse oposição. Quando a guerra terminou passou a haver maior abertura, o que se manteve até 1998, quando chegaram os reformistas. A partir daí houve manifestações e lutas constantes pelos direitos das mulheres, e desde então foi uma viragem de página. Atualmente há cerca de 2,5 milhões de mulheres que sustentam a família em casa. Hoje há mais mulheres do que homens a estudar nas universidades, e tudo isso por pressão do povo.

Quando Narges foi detida pela última vez, em 2021, já estavam à espera ou foram apanhados de surpresa?

Antes de ser detida pela última vez, já a tinham detido duas ou três vezes por pouco tempo. Ela acredita que a rua é o sítio indicado para nos manifestarmos. E o regime iraniano não tolera quem vai para a rua protestar. Já estávamos à espera que fosse detida. Depois, quando foi libertada, pediu um passaporte para ir a Paris visitar os filhos. Mas o regime iraniano não lhe deu autorização para sair do país. Isto também foi um castigo.

Não sei onde foi publicado primeiro este livro, mas imagino que não tenha sido no Irão…

Na Suécia.

Um livro que reúne testemunhos de prisioneiras políticas não é uma provocação ao regime?

Este livro é proibido no Irão.

Alguém que anda a recolher estes testemunhos contra um regime como o iraniano…

Ashkan Seifi: Está a costurar a sua corda de execução.

Taghi Rahmani: Aos olhos do regime, este livro é um crime, um autêntico atentado contra o Estado. E dá direito a uma sentença de seis anos de prisão. Dizem que é uma farsa e que se se repetir tem mais oito anos de prisão. Narges já estava presa e quando saiu o livro apanhou mais dois anos de sentença.

Conheci pessoas que visitaram o Irão em diferentes alturas, uma delas esteve há uns trinta e tal anos e contou-me que à saída do hotel a obrigavam a pisar uma bandeira dos EUA.

Isso era uma coisa muito banal!

E conheci pessoas que estiveram há menos tempo, há uns dez anos ou assim, e disseram que era um país maravilhoso. O Irão mostra uma face mais amistosa aos turistas?

Sim, mas infelizmente o regime aproveita-se dessa situação. O povo iraniano só quer ter um relacionamento normal com a comunidade internacional.

Como recebeu a notícia da atribuição do Nobel a Narges?

A agência Reuters já tinha conhecimento de tudo. Contactaram-me e disseram: ‘No dia 6 de outubro vamos-te entrevistar’. Bateram-me à porta de casa às dez da manhã, quando era suposto chegarem à uma da tarde. ‘Porque é que vieram tão cedo?’, perguntei. E o jornalista diz-me: ‘Liga a televisão e vai ver as notícias sobre os Prémios Nobel’. E eu pensei: ‘Certamente houve um iraniano que ganhou o Prémio Nobel’. Quando a senhora [Berit Reiss-]Andersen começou com o slogan ‘Zan, Zendengi, Azadi’ – ‘mulher, vida, liberdade’ – acreditei que tinha sido a Narges a ganhar. E ao fim de dois minutos disseram o nome dela. Soube em direto. Para mim foi emocionante. Narges soube que tinha ganho o prémio através da televisão estatal iraniana.

Como o anunciaram?

O regime iraniano disse: ‘Os criminosos americanos ganharam o Prémio Nobel’. E o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano disse: ‘Este prémio é político e nós não o reconhecemos’.

Foi à cerimónia em Oslo?

Sim, fui, mas os nossos filhos é que foram receber o prémio. Para mim foi bonito serem eles a lerem a mensagem escrita pela Narges na prisão. Ela conseguiu passar a mensagem cá para fora e a posteriori por causa disso apanhou mais tempo de prisão.

Tenciona regressar ao Irão um dia?

Foi lá que eu cresci, tenho de me esforçar para poder regressar o mais rápido possível. Mas quero viver num Irão onde me sinta livre. Mais importante do que isso é lutar para alcançar a paz. Espero que assim seja.