A minha geração, que chegou à idade adulta com o 25 de Abril, acreditou que seria possível construir uma sociedade mais justa. Uma sociedade que atenuaria as desigualdades por intermédio do Estado social e que redistribuiria a riqueza, corrigindo assimetrias entre cidadãos e territórios.
Aqueles que podiam, pagavam impostos. E o Estado trataria de gerir os proveitos daí resultantes, de modo a garantir a todos o acesso a serviços básicos. Saúde e educação, justiça e segurança, habitação e transportes, cultura e bem-estar seriam fornecidos pelo Estado. Ora, este vasto conjunto de responsabilidades implicava que a máquina estatal tivesse capacidade para desempenhar as suas funções de forma eficaz e escrutinada.
Num país com uma longa história de corporativismo e baixa qualificação humana, cumprir com a empreitada de prestar, cabalmente, uma larga gama de serviços públicos a toda a população era um desafio enorme. Tornava-se essencial que a eficiência do Estado pudesse ser avaliada e escrutinada com transparência, por entidades reguladoras independentes. O processo de alocação de recursos públicos teria de ser isento e baseado em critérios de competência.
Acontece que as entidades reguladoras nunca conseguiram desempenhar a sua missão, sendo o fracasso do Banco de Portugal a face mais visível dessa incapacidade. A escolha das cúpulas da Administração Pública foi, de resto, condicionada pelo amiguismo e pela partidarização do Estado, que acabaria a redistribuir menos riqueza e a consumir mais recursos com tarefas administrativas.
O debate à volta dos serviços públicos raramente abordou a racionalização dos mesmos ou admitiu a promoção do mérito. Focou-se, sim, em tentar resolver a insatisfação e insuficiência do funcionalismo público. Sucessivos governos procuraram resolver o problema com mais dinheiro, endividando o país, aumentando a carga fiscal, vendendo ativos estratégicos. Finalmente, reduzindo os serviços públicos e degradando a sua qualidade.
Assim chegámos ao atual racionamento do Estado, que ninguém admite e que é mais grave para quem não pode aceder a alternativas privadas. Os contribuintes que têm posses recorrem a essas alternativas pagando, para além dos impostos, os colégios para os seus filhos e os seguros de saúde. Em breve, terão de recorrer a segurança privada para colmatar a falta de polícias.
A incompetência do Estado na proteção social mede-se pela proliferação da oferta privada, enquanto no público há crianças sem professores, há listas de espera na saúde, não há investimento na habitação nem celeridade na justiça. E, claro, não há polícia nas ruas. O racionamento do Estado é, repito, mais sério para os mais vulneráveis, que não têm recursos para procurar alternativas.
O problema é que, para reformar a Administração Pública, as coisas terão de piorar antes de poderem melhorar. Isto porque, se aqueles que hoje recorrem ao privado voltassem ao público, o sistema entraria em colapso. Ora, os partidos políticos vivem de ciclos eleitorais curtos, pelo que não podem correr o risco de fazer reformas cujo impacto só seria visível no longo prazo.
Acresce que o discurso dominante se concentra no garantismo da oferta, recusando modelos de complementaridade privada. Modelos que apenas seduzem a parte da população que sente na pele a fadiga fiscal sem contrapartidas, mas que nunca poderá alterar o status quo. É que os portugueses que trabalham para o Estado e as suas famílias são uma parcela muito relevante do eleitorado, tendo por isso grande capacidade de reivindicação.
A anunciada redução na carga fiscal dará alguma folga aos contribuintes que pagam o que resta do Estado social e que dele não usufruem, por recorrerem a soluções privadas. Aos mais desfavorecidos, infelizmente, restará um Estado exíguo.