Uma senhora grávida de 31 anos dirige-se a uma unidade de saúde pública. Tinha sofrido um aborto espontâneo e trazia o feto num saco. Imaginar a cena é transpor para a vida real algo digno de um filme de terror de qualidade duvidosa. Independentemente da razão, por sua inoperância (quando é informada que aquela unidade de saúde está encerrada), ou por atendimento deficiente de um servidor público, o quadro serviu para expor o estado a que chegamos.
Às vezes precisamos de ser confrontados com a realidade para tomarmos consciência da fragilidade com que convivemos. O que este episódio retrata é o Estado na sua fragilidade máxima: a incapacidade mínima de cuidar da saúde dos seus cidadãos.
Em 2019, a então ministra da saúde, Marta Temido, dizia que o Estado não tinha ginecologistas e obstetras porque não os havia em número suficiente para contratar. Rapidamente foi desmentida pelos factos: grosso modo, Portugal tinha, naquele ano, mais médicos daquela especialidade do que países congéneres da OCDE/UE como o Luxemburgo, Finlândia, Suécia, Bélgica, Polónia, Espanha, França, Países Baixos, Dinamarca e Irlanda.
Entre aquela declaração de Marta Temido (22 de junho de 2019) e hoje, passaram 5 anos, meia década, mais de 1850 dias. Entre aquela declaração e a grávida não atendida com um feto no saco, nada mudou. Aliás, mudou: o peso da saúde no orçamento de Estado cresceu, muito por consequência da pandemia, ao passo que também cresceram as despesas das famílias portuguesas com a saúde – já estamos no top 3 da OCDE nessa matéria.
Cruzando estes dados com o facto de termos médicos em abundância e enfermeiros em escassez (ainda se lembram quando os ‘mandámos’ emigrar?), leva à consciência da dimensão do nosso problema de gestão na área da saúde. Basta vermos quantos ’planos especiais’ para as listas de espera nas cirurgias tivemos nas últimas décadas. Desde o início do século que não há organização, estamos sempre em estado de urgência ou emergência.
O resultado desta desorganização no Estado tem sido o crescimento do peso das despesas em saúde nos orçamentos familiares: não podendo confiar nos cuidados do SNS, os cidadãos recorrem aos seguros para se precaverem e, em caso de necessidade, aos hospitais privados para evitarem as esperas nas urgências ou as listas de espera na cirurgia.
O problema é de base: a saúde é um direito fundamental. Ainda alguém se lembra disto? Quando passou a ser também um negócio, o direito foi obliterado pelo peso do dinheiro. Quem tem ganho com a degradação do SNS? Os prestadores de cuidados privados. Quem vir nesta afirmação um perigo socialista desengane-se: há lugar para os privados no setor da saúde, mas em complementaridade e para quem os queira e possa pagar – não pode ser o geral, num país com 42% de pobres. O sucesso dos grupos privados de saúde não pode decorrer do medo dos cidadãos por falta de cuidados de saúde, nem da vontade dos grupos financeiros de venderem seguros. Infelizmente é isso que tem acontecido.
Quem tem perdido é o País: estamos a desviar recursos para um sistema financeiro e grupos de saúde que não são portugueses, retirando-os da poupança ou da economia real. Perdemos sempre!
Como sempre, mais dúvidas do que certezas: será que o que nos têm governado pensam nisto?