O Matuto e as Olimpíadas Caninas

Só mestres e doutores de muitas letras chegam a esta conclu-cão.

O Matuto gosta de animais de estimação… na vida dos outros. Recentemente, o Matuto cruzou-se com o seu colega, Sr. Rocha, ex engenheiro mecânico tornado especialista nas coisas anglófonos que levava pela trela a Cacau. A Cacau é uma simpática cadelinha (cachorrinha, no Brasil, por favor) de raça Shihtzu. O Matuto notou sagazmente que a Cacau tinha umas vestimentas desportivas. Um boné, à basebol, entre as orelhas, uma mochila escolar às costas e uns calções na parte posterior do seu corpinho ágil todo empinocado. Que gracinha! Perguntando a razão de tão faustosa toilette, o Matuto ouviu, circunspecto, a explicação do Sr. Rocha: ‘Vamos para as Olímpiadas Caninas’. O Matuto ficou deveras assarapantado. “E isso existe!?” Claro que sim – confirmou o Sr. Rocha. O Matuto está em condições de assegurar que a cidade do interior do Estado de São Paulo que tão generosamente o acolheu no seu seio, hospedou mesmo umas Olimpíadas Caninas. “E a mochila?” – inquiriu o Matuto. “São biscoitinhos para o lanche” – veio lesta a resposta. Nos entre tantos, o Sr. Rocha ia explicando que ele e a Cacau iam “torcer”, pela Sophia, de raça Lhasa apso e outro elemento desta admirável família. Pelo entusiasmo do Sr. Rocha, o Matuto ficou ciente que a Sophia iria participar dos 100 metros planos, categoria 10kg.  

Quando o Matuto chegou à Av. Brasil, topou com um formidável aparato desportivo. Cartazes anunciando os patrocinadores oficiais Pedrigee por todo o lado. A segurança estava a cargo duma Brigada Móvel Felina – uns gatarrões de porte austero e valentão. Dos dois lados da Av. Brasil havia bancadas cheias de cães de origens diferentes. Grande diversidade. Jogos multiculturais. Todas as raças representadas. Todos balançando o rabo, entusiasmados. Havia barraquinhas vendendo brinquedos que todo o cão adora… bonequinhos, chocolates em forma de osso, mordedores de sabor a bacon e molho barbecue, mordedores em forma de halteres, de dardo, de chupeta, de bola, de garrafa. Havia mordedores recheados (tipo Kinder Ovo) e mordedores simples variando na cor e na textura. A população de quatro patas tinha muito por onde escolher. A variante de duas pernas tinha à sua disposição barracas de cachorros-quentes – hot-dogs. Naturalmente. Cartazes, pendurados das árvores, anunciavam “os primeiros Jogos Caninos totalmente inclusivos”. Nos altifalantes, a dupla sertaneja Simone e Simaria, cantavam: “Dessa casa só vou levar nosso cachorro”. No centro da Av. Brasil o rio era uma atracção especial pois aí decorriam os eventos de natação. O Sr. Rocha, elucidou o Matuto, de que alguns cães nadadores tinham sido infectados por parasitas da água provocando otites que desencadeavam coceiras infernais nos atletas caninos. O Matuto matutou que vida de atleta olímpico não é fácil. O Sr. Rocha, sapiente destas andanças, informou o Matuto que a cerimónia de inauguração das Olimpíadas Caninas tinha sido polémica. Parece que houve uma encenação imitando uma célebre ceia. A coisa deu para o torto. A cachorrada esqueceu-se que eram apenas figurantes, e começou a comer a sério as frutas e as carnes em cima da mesa. Foi um fartar vilanagem. Mas, o pior foi a focinhada no vinho. Os latidos etílicos foram muitos. Ladrava-se descontroladamente e entre soluços que denunciavam bebedeiras de caixão à cova, as cachorrinhas davam risinhos patéticos. Bagunça! Baderna! Balbúrdia! Foi um pandemónio. Dobermans com saias à la travesti a rolar pelo chão e patas no ar… Bulldogs de colares, brincos, e tiaras a bambolear o corpo musculado… Labradores a desfilar de peito desnudado e olhar lascivo, erguendo com as patas dianteiras um osso enorme com as cores do arco-íris…

O Matuto percebeu que os 400 metros barreiras tinham terminado. Um Dálmata, de pernas esguias e cabeça fina, recebia orgulhoso o aplauso – latidos e bater de patas – das fãs. Recebeu duma bela cadelinha Poodle um osso banhado a ouro e deu um pequeno discurso para a plateia: “Abaixo os donos irresponsáveis. Abaixo os donos que não limpam o nosso N° 2 e nos deixam corar de vergonha na rua. Abaixo os donos que nem sequer nos levam a passear”. “Apoiado, apoiado” – ladraram as fãs raivosas (embora vacinadas). No meio da comoção o Matuto topou com umas graciosas cadelinhas Husky que levantavam uma bandeira da Palestina. Uma delas rosnava: “Libertem a Palestina”. São cadelinhas activistas – ponderou o Matuto – politicamente engajadas. Pelo rabo do olho o Matuto atinou com um personagem famoso. Era o secretário da OCU – Organização dos Caninos Unidos – Bregónio Bruterres que sorrateiramente reclamava: “É genocídio! Estou muito preocupado” O ‘picareta falante’ por aqui – abismava-se o Matuto. Perto dali, numa arena imponente decorria o boxe. O vencedor aclamado e ovacionado era um cão Boxeur de aspecto intimidante. O Matuto surpreendeu-se com uma barafunda que logo se gerou. Pelos vistos o Boxeur não era de raça pura. Era um cruzamento com um Bulldog. Tinha havido um up-grade rácico. O Boxeur era trans! O Matuto percebeu que eram os Basset Hounds, cães de orelhas compridas e meditabundas, oriundos das melhores universidades, os responsáveis por esta rebeli-cão e confu-cão. Só mestres e doutores de muitas letras chegam a esta conclu-cão.

O Matuto foi atraído pelo lançamento do osso. O Matuto observou a técnica exemplar dum meigo Dachhund (vulgo salsicha): patas traseiras rodopiando velozmente, corpo longo esticado na vertical, dentes segurando o osso, e a velocidade centrífuga fazendo o osso voar, voar, voar… Um Pastor Alemão, ensaiava o triplo salto, aterrando numa área demarcada cheia de ossinhos… Nas corridas de revezamento, umas cadelinhas Border Collie, disciplinadas e certamente de boas famílias, encantavam, passando o bastão em forma de osso (obviamente) de boca em boca… E, eis o evento acarinhado pelo Matuto e pelo Sr. Rocha: os 100 metros planos, categoria 10kg. A Sophia estava na linha de partida. Olhos focados. Língua pendurada e firme. A concorrência era de peso: Chihuahuas, Pinschers, Pugs, Spitz Alemães, Yorkshires… A Sophia cortou a meta em primeiro lugar e o Sr. Rocha pulava de alegria: “That’s my girl! Wonderful!” A sua menina recebeu uma catita coleira banhada a ouro. O Matuto ponderou que era bonito ver esta demonstração de afeição paternal. A Sophia aproveitou o seu momento de fama para apelar a uma vida canina mais digna: “Todos os cães são iguais e todos merecem vacinação grátis, visitas periódicas ao veterinário, chips de identificação, banhos de talco anti-carrapatos e uma alimentação equilibrada. Não aos enlatados!” A cachorrada abanou freneticamente o rabo e bateu patas. A Sophia tinha futuro na política – declarou o Matuto.

De repente, no meio da alegria geral, uma explosão. A barraca de cachorros-quentes girando no ar e aterrando desmantelada. A cachorrada de rabo entre as pernas, foge uivando desalmadamente. Rapidamente a Brigada Móvel Felina imobiliza, com as garras afiadas, um cão rafeiro (vira-latas) de pelo ralo e olhar faminto que ladrava: “Não comemos carne! Não queremos ovos! Abaixo os ingredientes animais! Só queremos vegetais! Viva a fruta!” Era um cão vegano. Nos altifalantes Carmen Miranda cantava o samba-chorinho, Cachorro Vira-latas: “Eu gosto muito de cachorro vagabundo, que anda sozinho no mundo sem coleira e sem patrão…” Um cão vegano e rafeiro! Que admirável mundo novo – considerava, boquiaberto, o Matuto.