Seis mitos sobre a hierarquia do Ministério Público

Não se deve confundir os poderes legalmente consagrados, com a forma como os mesmos são efectivamente exercidos

O grande foco dos subscritores da reforma da Justiça centra-se na área penal e no Ministério Público. Segundo os mesmos, é preciso repor uma hierarquia forte nesta magistratura, uma vez que os procuradores não obedecem a ninguém e andam em roda livre, desde a entrada do novo estatuto que entrou em vigor em Janeiro de 2020. Este argumento não deixa de ser curioso, pois, já no início deste século, durante o processo Casa Pia, a narrativa era precisamente a mesma. Com o mesmo estatuto do Ministério Público, o Procurador-Geral da República Pinto Monteiro disse que tinha os poderes da Rainha de Inglaterra e a Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal foi considerada, no ano de 2018, como a pessoa mais poderosa do País! Na minha óptica, não se deve confundir os poderes legalmente consagrados, com a forma como os mesmos são efectivamente exercidos. Há muitas personalidades que preconizam uma alteração do Estatuto do Ministério Público, sem nunca ter lido o mesmo. Os mitos sobre a hierarquia do Ministério Público abundam, mas, muitas vezes, com base em percepções falsas, tomam-se medidas políticas assentes em pressupostos que não correspondem à realidade.

Mito nº 1- Desde a entrada em vigor do novo estatuto do Ministério Público, os Procuradores não obedecem à sua hierarquia  

Os Magistrados do Ministério Público têm de obedecer às Directivas, Instruções e Ordens  emanadas da sua hierarquia. Caso não o façam, incorrem em responsabilidade disciplinar, sendo tal acto considerado como infracção disciplinar grave, cfr. artigo 215º, nº1, alínea a) do Estatuto do Ministério Público.

Mito nº 2- Os superiores hierárquicos não têm qualquer poder para influenciar o curso das investigações criminais

              O superior hierárquico do titular do inquérito tem competência para tomar várias medidas que podem influenciar o rumo da investigação. Em primeiro lugar, o mesmo pode avocar o inquérito e passar a tramitá-lo. Aliás, o Estatuto do Ministério Público, no seu artigo 83, nº 3, alínea a), dispõe que compete aos procuradores da República que dirigem secções dos DIAP assumir a direção de inquéritos e exercer a ação penal quando a complexidade do processo ou a especial relevância do interesse a sustentar o justifique. Em segundo lugar, o Magistrado do Ministério Público Coordenador de Comarca pode propor ao Procurador-Geral Regional que o inquérito deixe de estar distribuído a um procurador e seja atribuído a outro, sempre que razões ponderosas de especialização, complexidade processual ou repercussão social o justifiquem, cfr. artigo 75º, nº1, alínea m) do Estatuto do Ministério Público. Em terceiro lugar, o superior hierárquico também pode determinar que quem deduziu a acusação assuma a representação do Ministério Público na fase de instrução ou julgamento, cfr. artigo 92º, nº3 do Estatuto do Ministério Público. Em quarto lugar, caso o inquérito seja arquivado, o superior hierárquico também pode determinar a reabertura do inquérito,  quais as diligências a efectuar e respectivo prazo para a conclusão do inquérito. Por último, o Procurador-Geral da República, caso verifique a ultrapassagem de um prazo legal de inquérito poderá determinar as medidas disciplinares, de gestão, de organização ou de métodos que a situação justificar, cfr. artigos 108º e 109º do Código de Processo Penal.

Mito nº 3- O Procurador-Geral da República tem hoje menos poderes do que antes de 2020

Com a reforma do Estatuto do Ministério Público que entrou em vigor no ano de 2020, o Procurador-Geral da República viu os seus poderes reforçados, uma vez que passou a ter o poder exclusivo de propor alguns magistrados para o exercício de cargos muito relevantes no Ministério Público, como, por exemplo, os Procuradores-Gerais Regionais. Antes desta alteração, o Conselho Superior do Ministério Público podia apresentar candidatos. em alternativa, àqueles que o PGR indicava. Em algumas ocasiões, foram escolhidas personalidades indicadas pelo CSMP, em detrimento de candidatos apresentados pelo PGR, o que hoje já não é possível de acontecer. O facto de o PGR indicar os Procuradores-Gerais Regionais faz com que tenha maior poder dentro da instituição, uma vez que os mesmos têm assento no Conselho Superior do Ministério Público, onde se tomam as principais decisões referentes à magistratura do Ministério Público. Acresce que os Procuradores-Gerais Regionais também têm o poder de indicar a sua estrutura, ou seja, por via directa ou indirecta, o PGR passou a ter uma influência muito maior na escolha da estrutura hierárquica situada nos patamares superiores da organização.

 Mito nº 4- O Procurador-Geral da República é uma espécie de Rainha de Inglaterra

              O Procurador-Geral da República tem amplos poderes no nosso sistema, como facilmente se alcança do artigo 19º do Estatuto do Ministério Público. No âmbito dos seus vastos poderes, o mesmo tem o poder de emitir directivas e instruções. As directivas estabelecem regras de actuação, de cariz obrigatório, para todos os magistrados do Ministério Público e, em alguns casos, aquelas assemelham-se a uma espécie de manual de procedimentos, em razão da matéria a tratar. Por exemplo, a directiva referente à violência doméstica, detalha todos os passos que o titular do inquérito deverá seguir, consoante a situação que se apresente. O PGR pode estabelecer regras para intervenções padronizadas em determinados domínios, designadamente no que diz respeito a áreas como a criminalidade económico-financeira ou violenta, mas também relativamente a alguns procedimentos em concreto. Entre outras, há directivas da PGR que disciplinam a forma como os magistrados devem actuar no âmbito das suspensões provisórias do processo ou relativamente aos processos sumaríssimos, bem como no que diz respeito a buscas em estabelecimentos prisionais ou os comportamentos que os magistrados devem adoptar no relacionamento com os outros órgãos de soberania.  A definição da mesma forma de actuação do Ministério Público, em todo o território nacional, é da responsabilidade do Procurador-Geral da República.

Mito nº 5 – O PGR e o Director do DCIAP não têm qualquer controlo sobre os inquéritos tramitados neste departamento

              O DCIAP é um departamento da Procuradoria-Geral da República. O provimento do lugar de director do DCIAP efectua-se de entre procuradores-gerais-adjuntos, sob proposta fundamentada do Procurador-Geral da República, pelo Conselho Superior do Ministério Público, que não pode vetar mais de dois nomes, ou seja, este cargo é exercido por alguém de confiança do PGR, com quem o mesmo deve ter uma estreita ligação e manter um contacto regular, de modo a inteirar-se do decurso das investigações mais sensíveis que correm no departamento. Entre outras competências, o Director do DCIAP deve  estabelecer orientações genéricas que assegurem métodos de direcção do inquérito idóneos à realização da sua finalidade, em prazo razoável; proceder à distribuição de serviço nos termos previstos no regulamento do departamento; intervir hierarquicamente nos inquéritos, nos termos previstos no Código de Processo Penal; acompanhar o movimento processual do departamento, identificando, designadamente, os processos que estão pendentes por tempo considerado excessivo ou que não são resolvidos em prazo considerado razoável;

criar equipas de investigação e unidades de missão destinadas ao exercício da actividade do departamento e propor ao Procurador-Geral da República directivas, instruções e ordens de serviço para uniformização, simplificação, racionalidade e eficácia da intervenção do Ministério Público. Em suma, o director do DCIAP pode regular a actividade genérica de distribuição de inquéritos no departamento, mas também pode criar equipas específicas para investigar determinadas realidades. Para além disso, pode definir linhas orientadoras que devem ser seguidas nas investigações ou, caso julgue necessário, poderá propor directivas ou instruções ao PGR que terão repercussão na actividade do Departamento e a nível nacional.  

Mito nº 6 – O regime hierárquico constante do Estatuto do Ministério Público foi inteiramente proposto pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

              O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público não concordou com várias soluções constantes do estatuto, designadamente um aumento do número de cargos hierárquicos baseados na escolha e confiança pessoal. Para além disso, foi proposta uma alteração legislativa no sentido de o Ministério Público ter sempre legitimidade para recorrer, independentemente da posição assumida por um procurador num determinado processo. Por exemplo, se num julgamento um procurador pedir a absolvição, nem o superior hierárquico, nem o PGR poderão recorrer de tal decisão, tendo em conta um acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre essa matéria. Este é o ponto que mais belisca a hierarquia do Ministério Público, mas não vemos nenhuma figura pública falar sobre este assunto ou solicitar a sua alteração. O motivo é facilmente perceptível, a questão só se coloca quando o magistrado que representa o Ministério Público no julgamento pede a absolvição de algum arguido. Ora, parece que nenhum dos subscritores do Manifesto que pretende a reforma da Justiça, quererá que o superior hierárquico possa reverter uma decisão absolutória, pela via de recurso. No entanto, para os mesmos faz todo o sentido a mesma pessoa dar ordens para não se efectuar uma detenção ou uma busca domiciliária, ou seja, percebe-se perfeitamente qual o sentido da mudança que se pretende concretizar…