Na época de Salazar, como em todas as ditaduras, havia muita burocracia. Achava-se que, no dia em que viesse a liberdade, todo o edifício burocrático ruiria – e os responsáveis por aquele odioso sistema seriam expulsos do Estado, como os vendilhões do templo.
Cinquenta anos passados, porém, constatamos que a burocracia é mais infernal do que nessa época. Muitíssimo mais. Porque invadiu todas as áreas e transformou em burocratas muita gente que o não era.
Quando eu exercia arquitetura, o investimento dos arquitetos era sobretudo na parte criativa. Hoje, os arquitetos são em boa medida burocratas, enleados em regulamentos e leis que os amarfanham e lhes tolhem a criatividade.
Dou dois exemplos de que tive conhecimento direto.
Um meu familiar comprou um lote de terreno colado àquele onde tinha a sua moradia, e quis fazer um muro limítrofe igual ao outro e no seu prolongamento. O muro até contribuiria para melhorar o aspeto da rua, bastante caótica.
Para instruir o processo de licenciamento, teve de mandar fazer um levantamento do terreno e de encomendar o projeto a um arquiteto. Isto já seria desnecessário, pois deveria bastar um pedido de prolongamento do muro existente. Mas enfim. Entrado o processo na Câmara, iniciou-se uma via sacra. Um dia era preciso mais um documento, depois mais uma declaração, a seguir um esclarecimento – e com isso passou-se um ano. Ora, ao fim deste tempo – e de muitas deslocações à Câmara, tempos de espera, pagamentos, etc. –, o pedido foi ‘indeferido’ pois o muro tinha de recuar 1,50m. Motivo? Previa-se um alargamento da rua. Havia que recomeçar todo o processo do início.
O meu familiar desistiu – e acabou por fazer uma vedação em rede. Acrescente-se que já lá vão cinco anos e a rua continua por alargar.
Outro exemplo.
Um amigo meu quis fazer uma ampliação da sua moradia num resort turístico onde muitas casas têm sido ampliadas. A alteração constava apenas de uma pequena sala de brincar para as crianças e uma casa de banho.
Era um projeto simplicíssimo.
Mas o martírio começou. Teve de mandar fazer o inevitável levantamento, embora o plano de urbanização existisse. Encomendou o projeto a um ateliê de arquitetura. Seguir-se-iam o projeto de engenharia e o projeto de canalizações e esgotos. Mas informaram-no de que agora também é necessário um ‘projeto de comunicações’ (ligação à internet, etc.), que deve abranger toda a casa. E um certificado ambiental, também envolvendo toda a construção. E um projeto de mobilidade. E – imagine-se – um projeto de ruído, relativo ao ruído exterior!
Como o resort fica no meio de uma quinta, só se for o ruído do piar dos pássaros…
Tudo isto, repito, para fazer o acrescento de uma pequena sala e uma casa de banho! É positivamente de doidos!
Claro que isto tem duas consequências óbvias: favorece a corrupção e incentiva as obras clandestinas. As pessoas, para não passarem por este inferno, pagam luvas a funcionários, ou então constroem sem licença. Há uma terceira hipótese: desistirem de fazer as obras.
Os arquitetos, de quem se espera uma atitude criativa, foram transformados em burocratas. A maior parte do seu tempo é hoje consumida a estudar as leis ao pormenor, a interpretá-las, a respeitar regras absurdas, a preencher formulários inúteis. Um pesadelo!
Mas este não é um exclusivo dos arquitetos.
Também transformaram os médicos em medíocres funcionários. O tempo que deveriam consumir na observação dos doentes, nas conversas com os doentes sobre as suas queixas ou dando-lhes apoio moral, é gasto a preencher fichas e formulários. Muitas vezes, escondidos atrás do ecrã do computador, os médicos nem sequer olham para os doentes! Fazem-lhes perguntas, cujas respostas registam mecanicamente nas fichas.
Quando os políticos falam em ‘simplex’ e quejandos palavrões, estão a mentir! A burocracia é cada vez maior, mais peçonhenta, mais tentacular, mais asfixiante. Quando os políticos falam em ‘desburocratizar’ o sistema, eu já tremo – porque sei que vêm aí mais normas, mais dificuldades, mais leis disparatadas.
De Salazar para cá, os burocratas cresceram em número, puseram-se em bicos de pés, ganharam poder. Tudo o que envolve o Estado, em vez de se simplificar, complicou-se. Mesmo os computadores, ao contrário de aliviarem a burocracia, potenciaram-na.
E nenhum governante vê isto, que está à vista de qualquer vulgar cidadão?
Não tenho dúvidas em dizer que a burocracia é uma praga pior do que a corrupção. Logo à partida, porque a fomenta. E depois porque tem consequências mais alargadas: estende-se a toda a sociedade, retira-lhe a energia e a criatividade, transforma os profissionais liberais em agentes do sistema, inferniza a vida de todas as pessoas.
Repito: nenhum governante vê isto?