Livros a um euro! Grandes ou pequenos, um euro», apregoava uma senhora daquela etnia cujo nome não deve ser pronunciado. «É para as férias! Ó minha senhora leve que ler faz bem. Aproveite que foi tudo roubado ontem à noite». Comecei a vasculhar o amontoado anárquico de livros espalhados pelo chão e a encontrar ‘peças’ interessantes, mas desgarradas: volumes soltos, outros danificados… Por um euro também não se pode exigir muito.
Lá me decidi a pôr três ou quatro debaixo do braço, até porque entretanto chegou concorrência – uma senhora que escolhia a eito, de acordo com parâmetros, digamos assim, eminentemente decorativos. Pouco lhe importava se os livros eram em português, em inglês, em alemão ou em servo-croata, desde que tivessem encadernações antigas. Para a ajudar na sua demanda, a dona da banca ia-lhe pondo de parte tudo o que lhe parecesse cumprir os critérios. Se eu ainda queria aproveitar as pechinchas, tinha de dar corda aos sapatos.
Acabei por reunir uma pilha considerável. E vendo o meu interesse por uma certa coleção, a vendedora convidou-me a ir à velha carrinha, onde tinham ficado uns restos. Lá fomos os três ao estacionamento: eu, a patroa e a minha concorrente. Mais uns quantos livros maltratados na bagageira, dos quais aproveitei dois ou três.
De regresso à tenda, enquanto fazíamos as contas, apercebi-me de que havia ali ao lado um segundo monte, ainda mais desafortunado do que o primeiro, onde os livros apanhavam com o sol impiedoso de chapa. Era um mar de páginas e capas rasgadas que metia dó. Onde é que já se viu respeitáveis anciãos, alguns dos quais centenários, receberem um tratamento destes?
«De manhã tinha muita coisa, agora já está mais escolhido», desculpava-se a dona da banca. A avaliar pela amostra, devia ter sido um verdadeiro fartote. Mas vendo as coisas com frieza, se mesmo assim voltei para casa com três sacos cheios, se calhar ainda bem que não cheguei mais cedo ao festim.
À noite, abrindo a biografia de África que espero terminar por estes dias, deparei-me com o capítulo ‘Spoils of War’. «Despojos de guerra», pensei, «é mesmo isso». De facto, aquele amontoado de livros estropiados da feira fazia lembrar um campo de batalha ou mesmo uma vala comum.
A operação de resgate saldou-se num total de 30 salvamentos, entre os quais de obras de Camilo, Herculano, Garrett, Oliveira Martins e uma ou outra curiosidade, como um grande formato que escapou às garras da minha concorrente: Le Tour du Monde, nouveau journal des voyages, publicado em Paris pela Hachette em 1860 e ilustrado «par nos plus célèbres artistes». Um familiar que chegou depois de mim também encontrou algo à sua medida.
Parecia que tinha havido ali uma guerra, é verdade. Dura, selvática, encarniçada. Mas, como a minha avó materna costumava dizer:«Entre mortos e feridos, alguém há de escapar».