Encontra-se exposto até 9 de setembro próximo no Museu Gulbenkian, como obra convidada, um magnífico retrato régio pintado por Velázquez (1599-1660). Era o seu modelo Filipe IV de Espanha e III de Portugal. Este texto é uma exortação a que o leitor não perca a oportunidade de admirar o chamado Filipe de Fraga [tomando o nome da localidade onde foi pintado], antes que o quadro atravesse o Atlântico e regresse a Nova Iorque, à The Frick Collection a que pertence.
Executada em 1644, entrada já a segunda metade da carreira do grande pintor espanhol (ativo de c. 1618 a 1660), a obra impressiona pela serena mestria e pelo aristocrático bom gosto, nunca alardeado. Velázquez, que estava então na posse de meios técnicos talvez nunca atingidos por outrem na difícil arte da pintura, retratou o seu soberano no decurso de uma campanha militar no Aragão, num casebre rústico, improvisado em estúdio e onde necessário foi rasgar uma janela de iluminação. O régio modelo, que posou em três sessões, terá facilitado a tarefa ao seu pintor, pois segundo a memória do viajante francês François Bertaut, em 1659: “Acompanha-se [Filipe IV] de tanta gravidade que se porta e caminha como uma estátua animada. Os que se lhe aproximaram afirmam que, quando lhes falou, nunca o viram mudar de semblante nem de postura; que os recebia, escutava e lhes respondia com inalterável impassibilidade, sem outro movimento que o dos lábios e da língua”.
Poucos anos depois, em 1650, pintaria Velázquez o retrato do Papa Inocêncio X, a melhor pintura que se podia admirar em Roma exatamente um século mais tarde, segundo o grande retratista inglês Joshua Reynolds – o que não é dizer pouco e por quem tinha autoridade na matéria. De volta a Madrid – após uma estadia romana que se prolongara demasiado, segundo a índole plácida do pintor, e para a impaciência um pouco agastada do seu patrono régio – fluiriam fleumaticamente do pincel de Velázquez obras de transcendente mestria, destiladas no recato do palácio real e na intimidade de Filipe IV. Com efeito, Filipe visitava amiúde o ateliê do pintor, onde desfrutava um privilégio verdadeiramente régio: testemunhar a facilidade e a graça únicas daquele génio em ação. Essa cumplicidade ficou bem fixada em As Meninas (1656), um dos pontos altos da pintura ocidental. Velázquez auto-retratou-se empunhando pincel e paleta, na penumbra discreta de uma câmara do Alcázar, onde se pressente a presença do casal régio, cuja fugaz imagem se adivinha – emoldurada ou refletida? – em último plano.
Reporta-se um episódio, saboroso para os Portugueses, ocorrido no início de dezembro de 1640, três anos e poucos meses antes de ter sido retratado o rei em Fraga, e em que intervém o conde-duque de Olivares, o todo-poderoso valido de Filipe IV, que Velázquez retrataria mais de uma vez. Acabara o valido de ter conhecimento certo da rebelião ocorrida em Lisboa no primeiro dia daquele mês. O rei assistia a uma tourada madrilena com dignitários estrangeiros e Olivares, de semblante carregado, não ousou interpelá-lo durante as horas pelas quais o espetáculo se prolongou. Finalmente, já no palácio real, ganhando coragem, o conde-duque ensaiou uma espantosa pirueta de interpretação (um belo exemplo de spin, no dizer dos anglo-saxões): de semblante risonho, Olivares congratulou o seu monarca pois acabara este de ganhar o direito às ricas e vastas possessões do duque de Bragança, D. João, que escassos dias antes se rebelara em Portugal. Não se iludindo com a mal afivelada alegria do seu valido, Filipe, aparentando impassibilidade, ter-lhe-á ordenado uma solução célere para o problema recém-criado em Lisboa.
O conde-duque pertencia à grande família andaluza dos Guzmán – era primo de D. Luísa de Gusmão. A admissão de Velázquez na corte madrilena, em 1623, se facilitada pela rede de contactos sevilhanos do pintor, deveu-se em boa medida ao patrocínio de Olivares, que dois anos antes, quando da subida de Filipe ao trono, ascendera à todo-poderosa posição de valido.
O magnífico retrato equestre de Olivares, que Velázquez pintou cerca de 1634, acorda-se na perfeição com o subtítulo que Gregorio Marañón deu em 1936 à sua biografia do conde-duque: “La pasión de mandar”. Empinado e apresentando a sua garupa, o cavalo de Olivares mais parece carregar um monarca. A impressiva composição tem o dom de sugerir num relance a soberba e a correspondente obsessão na defesa da “reputación”, que tanto marcaram, quase patologicamente, a mente espanhola no seu “Siglo de Oro” e que acabariam por arrastar a Coroa dos Áustrias para uma espetacular ruína.
É um lugar comum cumular o talento de um bom retratista com o dom suposto de conseguir ele sondar e expressar a psicologia do retratado. Duvida-se da existência de tal dom, pois na pincelada mais conseguida, quando muito, poderá o pintor captar uma expressão do seu modelo. E as expressões são os espelhos dos fugazes estados da alma. É a frequência destes últimos, dentro da sua multiplicidade, que compõe a psicologia individual, sempre tão complexa e, logo, impossível de plasmar num único retrato. Recorde-se Olivares na obrigação de dar ao seu soberano a má notícia da sublevação em Lisboa: semblante carregado durante a tourada e já alegre no Alcázar.
No entanto, o rosto humano tem uma marca de individualidade a que o nosso cérebro é superiormente sensível. Aí, Velázquez reina supremo, ou não exclamou Inocêncio X “troppo vero!”, entre o admirativo e o agastado, perante o estonteante “tour de force” que o seu retrato de 1650 constituía?
Peculiar arte da pintura, onde Diego da Silva Velázquez evoluiu com singular graça! Talvez a ela estivesse predestinado pois, no feliz juízo de Paul Jamot: “[…] maneira verdadeiramente incomparável que é a própria perfeição da pintura. Ela tem este privilégio único de satisfazer ao mesmo tempo os ignorantes e os conhecedores. Uma tela de Velázquez, particularmente uma cabeça por ele pintada, pois ele é antes de tudo um retratista, é imediatamente acessível ao espetador menos versado nos segredos do mester: este espetador nela admira sem esforço a verdade, a vida e o que lhe aparece como um efeito simples e marcante. No entanto, o iniciado, que sabe das dificuldades da arte de pintar, deleita-se com a ciência maravilhosa, com a subtileza e os refinamentos que permitem a um artista que foi cumulado de todos os dons pelas fadas de realizar uma criação tão semelhante ou antes tão equivalente à obra da natureza.”
Note-se que talento de primeira ordem não faltou à pintura europeia nos primeiros dois terços do século XVII, tanto em terras católicas como em terras protestantes. Nascidos uma geração antes de Velázquez: Rubens, de estonteante atividade polimorfa, que lhe granjearia a receção devida a um verdadeiro “grand seigneur” junto de várias cortes europeias; Franz Hals, artesão de uma sólida carreira de retratista da burguesia de Haarlem.
Nascido tal como Velázquez em 1599, mas falecido precocemente em 1641, van Dyck, que retrataria com a maior desenvoltura a oligarquia genovesa e a aristocracia inglesa, esta à beira do precipício da guerra civil dos anos de 1640.
Rembrandt, cuja morte, em 1669, anuncia já o ocaso do século de oiro da pintura holandesa; em Amesterdão, os triunfos e os contratempos deste génio transcendente elevaram a arte holandesa acima de qualquer limitação burguesa, atraindo, absorvendo e transportando os contemporâneos retratados para um universo pictórico incomparável, um dos pontos altos da arte do Ocidente. No entanto, distintamente de Velázquez, o dom fulgurante de captar a individualidade do rosto não lhe fora concedido. Confirme-se tal facto através da visita à galeria, nem por isso menos gloriosa, das dezenas de auto-retratos de Rembrandt; transpiraram também queixas de clientes, que não se reconheciam nos seus retratos.
Vermeer, a esfinge de Delft, que alcandorou a “peinture de genre” a um nível insuspeitado, na sua relativamente curta carreira, terminada em 1675.
Seria injusto omitir dois grandes nomes da pintura francesa seiscentista: Poussin, talento de pendor classicista, que tanta influência viria a ter na escola francesa; Champaigne, ao serviço do cardeal Richelieu, de quem nos deixou memoráveis retratos.
Pintores de primeira água preservaram assim os rostos de Richelieu e de Olivares, precisamente quando estes dois grandes rivais estavam envolvidos no duelo mortal pela hegemonia europeia.
As décadas de vida de Velázquez são as seis décadas finais do século do barroco (1559-1660), de uma época classificada de Idade Dourada da Europa por Hugh Trevor-Roper. Hipérbole? Talvez não, se nos lembrarmos dos seguintes nomes de contemporâneos: Shakespeare, Cervantes, Galileu,
Kepler, Descartes, Espinosa, Bacon, Rembrandt e Velázquez, para só citar astros de primeira grandeza. A Europa fervilha de talento e de convulsões, também. É em 1633, com a Guerra dos Trinta Anos em pleno curso, que Jacques Callot publica a impressiva série de gravuras “As grandes misérias da guerra”. As terras alemãs sofriam então uma devastação só comparável com a catástrofe de 1943-45.
Como potência hegemónica, mesmo que em declínio acelerado, Espanha viu-se envolvida em todos estes conflitos: Países Baixos, Alemanha, Itália, possessões ultramarinas, nelas se incluindo as portuguesas e, após 1635, França, foram palcos onde o poderio espanhol se foi estiolando irremediavelmente, sendo a década de 1640 marcante pelo acelerar do processo. Dois grandes momentos selaram este colapso: em 1648, cedência da pretensão espanhola sobre a Holanda; em 1659, tratado de paz com a França, que assumiu então a posição hegemónica que fora antes da Espanha.
No Alcázar madrileno e na intimidade da família real, foi certamente dado a Velázquez testemunhar este continuado declínio político. Mas, foi ator mais direto, também: em 1660 coube-lhe o papel, no seu cargo de Aposentador Mayor de Palacio, de preparar e decorar o local de entrega da princesa Maria Teresa a seu noivo Luís XIV, na Ilha dos Faisões, sobre o rio Bidasoa. Morreria o pintor poucas semanas mais tarde, já em Madrid.
Reforça-se o apelo ao leitor para que se desloque ao Museu Gulbenkian, dentro dos poucos dias que restam para aí poder sentir a presença de um Velázquez de primeira água. No Filipe de Fraga admirará o retrato de um rei de Portugal, o terceiro desse nome, cujo reinado lusitano se iniciou em 1621 e terminou, de facto, no dia primeiro de dezembro de 1640. No dia 17 de setembro de 1665, morreu Filipe, cingindo ainda a coroa portuguesa, no seu entendimento. Certamente, não ignoraria aquele monarca que a batalha de Montes Claros, essa segunda Aljubarrota, ocorrida exatamente três meses antes, augurava a separação definitiva dos dois reinos ibéricos. O reconhecimento, de jure, de tal facto ocorreria em 1668, escassos três anos após a morte de Filipe, aquele a quem os seus súbditos chamaram “rei planeta”.