Raquel Henriques da Silva. ‘Interesso-me imenso por artistas que ninguém conhece’

Catedrática de História da Arte, foi diretora do Museu do Chiado e do Instituto Português de Museus. Em Variações – arte portuguesa séculos XIX e XX reúne 20 anos de artigos. E já tem em vista uma história da arte portuguesa do século XIX. ‘Hoje ninguém se atreve a ter visões globais. Por isso é…

Deu a sua última lição – dedicada ao tema da velhice dos pintores – um dia depois de fazer 70 anos. Mas não parou de trabalhar. E já tem em mente o projeto de uma história da arte portuguesa do século XIX. Doutorada em História da Arte, Raquel Henriques da Silva foi professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, diretora do Museu do Chiado, diretora do Instituto Português de Museus e, mais recentemente, diretora do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.

No ano passado, desafiada pelos alunos que lhe perguntavam onde podiam encontrar os seus escritos, reuniu num grosso volume uma seleção de artigos dos últimos 20 anos. Variações – arte portuguesa séculos XIX-XX (ed. Documenta), que abrange um vasto espectro temporal, da reconstrução pombalina a Joana Vasconcelos, serviu-nos de ponto de partida para uma conversa em sua casa, onde vive rodeada de pinturas de amigos.

Quantos anos de trabalho estão neste livro?

São vinte anos de artigos. O livro devia ter saído em 2022, quando fiz 70 anos. Porque eu fui diretora do Museu do Chiado e depois diretora do Instituto de Museus, e saí exatamente em 2002. De 2002 até à reforma estive sempre na Faculdade [de Ciências Sociais e Humanas]. Portanto é esse período que está aqui. Mas é uma grande seleção, talvez um terço de tudo o que publiquei. Este ano vai sair na Imprensa Nacional um pequeno texto que me deu muito gozo, sobre os retratos de Camões no século XIX. Vai chamar-se ‘Retrato, vós não sois meu’, que é um verso dele. E espero a partir de setembro começar a retrabalhar a minha última lição. Ninguém é obrigado a fazer a última lição, mas eu gosto de rituais. Quando era nova não gostava, mas agora adoro rituais.

E qual foi o tema?

A velhice dos pintores. Este quadro que está aqui a seguir ao do Cruz Filipe é do Nikias [Skapinakis]. Fui muito amiga do Nikias, e quando foi essa minha última lição ele tinha morrido há menos de um ano. Ele esteve bem, só nos últimos meses é que não esteve e não disse nada a ninguém, foi muito rápido. Nem a filha sabia. Eu gostava muito dele, mas era insuportável… E o Nikias sempre foi um homem da cor, trabalhava intensamente a cor.

Os quadros dele têm sempre cores muito garridas.

Exatamente. É uma certa marca pop – ele não gostava que se dissesse isso, mas é verdade. A primeira exposição que ele fez desta série foi nos Artistas Unidos, já devia estar doente. Telefonou-me, dávamo-nos muito bem, embora cerimoniosamente, e disse: ‘Raquel, gostava muito que viesse à inauguração, vão ter todos uma grande surpresa’. E ria-se. Lá fui e era tudo a preto e branco.

Parece uma piada, quase.

Ele diz que aconteceu assim. Já depois de ele morrer, fizeram uma exposição na SNBA também só com as pinturas negras. Eu não pude ir à inauguração, mas fui a seguir. E a filha, uma mulher extraordinária – ele nunca ma tinha apresentado, o que é imperdoável -, a Helena, liga-me e diz: ‘Raquel, já foi, viu bem? Viu o quadro que estava à direita quando se entra?’. E eu: ‘Acho que sim…’. ‘Raquel, volte lá, de certeza que não viu bem’. Lá fui eu ver o quadro à direita, estive a olhar para ele, e ia-me embora a encolher os ombros – ‘Não percebo o que ela queria’. E só aí é que vejo. O quadro tem colado o pincel. Ele pôs a data – é o último quadro dele datado – e colou o pincel. É típico do Nikias, tinha um humor muito fininho. Não disse nada a ninguém. A Helena diz que também só a certa altura viu. E escreveu um texto fortíssimo. Eu nessa altura estava a preparar a última lição e telefonei à Helena, foi um gesto súbito: ‘Se me deres autorização termino a lição a ler o teu texto’. Só tinha medo de não conseguir, de me emocionar, mas consegui.

Há um certo paralelismo entre a última lição de um professor e as últimas obras de um artista.

A designação do ‘last style’, ou ‘últimos trabalhos’, usa-se desde o século XVI por causa de um caso muito curioso, que é o Ticiano. Pensava-se que ele tinha chegado quase aos cem anos, na verdade morre por volta dos 90, o que no século XVI é raríssimo. E trabalhou quase até ao final. O Ticiano era muito apreciado, tinha muitos discípulos, era uma sumidade no seu tempo. E as últimas obras dele eram discutidas em Veneza. Havia quem dissesse: ‘Nunca fez nada tão bom’. E havia quem dissesse…

‘Já perdeu qualidades’. É típico.

A designação de ‘last style’ vem daí. Depois tem sido abordada por várias pessoas. Escolhi o Picasso, o Goya, a Vieira da Silva, o Pomar e o Nikias. São todos artistas que pintaram até aos últimos anos e com qualidade. Por exemplo, a história da Vieira da Silva é incrível. Mas é real. Ela era mais nova do que o Árpád [Szenes], mas já não era nenhuma criança. Estava a caminho dos 80 quando ele morreu. E os amigos achavam que ia ser muito difícil.

De superar.

Foi a única vez na vida que ela deixou de pintar. E há uma carta que escreve ao Alberto de Lacerda, o amigo dela poeta, que estava baseado em Londres, em que diz: ‘Hoje levantei-me e entrei no ateliê do Árpád’ – porque eles estavam na mesma casa, mas tinham ateliês separados. ‘Entrei no ateliê do Arpad. E comecei a pintar um quadro dele. E agora só pinto Árpád’.

É quase como se ele lhe tivesse passado o testemunho.

Nas últimas obras é uma pintura muito mais luminosa, muito mais tímbrica… Muita gente me dizia: ‘Que tema tétrico tu foste buscar’. Não acho. A morte é a coisa mais natural, e quando é morte de velhice é mesmo o mais natural que há… Portanto, não é por nenhum dramatismo, é por achar interessante.

O Renoir tem aquele final muito impressionante em que tem de prender os pincéis aos dedos…

Por causa daquelas artroses todas.

E o Monet faz os nenúfares.

Quase cego! A sala da Orangerie é dos sítios mais extraordinários que há. Aquilo é o que chamamos ‘a pura pintura’. A pura pintura é tintas que geram luz, cores. Ele está quase cego e faz manchas, manchas, manchas. É dos casos mais interessantes.

Quando olho para este título – Variações – arte portuguesa séculos XIX-XX – é um bocado inevitável lembrar-me dos livros do José-Augusto França sobre a arte em Portugal nos século XIX e XX, quase como se fossem o cânone sobre esta época, e a Prof. Raquel vem depois e faz estas ‘variações’, encontra nuances… O França foi importante para si?

Foi muito importante. A Arte em Portugal no século XIX foi editada em 1969, em dois volumes, e a história da arte do século XX foi editada em 74. São obras antigas, mas ainda de referência. Depois disso houve histórias da arte gerais muito importantes, do Círculo de Leitores, da Alfa, mas a do Prof. França, até pela minúcia, pela exaustividade e também por ser obra de um homem só – as outras são muilti-autorais – ainda não foi ultrapassada. Eu não quero ultrapassar o Prof. França, mas se tiver saúde – determinação acho que tenho, vai ser um bocado estucha mas acho que vou conseguir – vou escrever uma história da arte em Portugal no século XIX. Do século XX duvido, mas do século XIX vou fazer.

Deve ser uma empreitada monumental.

Sim… pela decisão de a fazer sozinha. Obviamente foi uma área que lecionei durante mais de 30 anos e que continuo a trabalhar agora, portanto não preciso de ir estudar. A dificuldade é como a vou organizar. E penso lançar-me a esse projeto em 2025. É mesmo para ser uma nova obra de referência. Com a função um bocado de compêndio, como as obras do França têm. Ando com uma dúvida: se não me liberto do estatuto académico e tiro as notas. As notas são uma coisa…

Uma chatice.

São terríveis, cortam o ritmo do trabalho. Há uma alternativa radical: não haver notas. Eu ando a pensar nisso, porque me aliviava imenso. Voltando às Variações, há aqui algo em comum. Fui aluna do José-Augusto França, trabalhei sempre muito com ele e acompanhei-o até ao final da vida. Sou crítica, muito crítica, em relação a algumas coisas. Mas há outra coisa de semelhante. Não é muito frequente, nesta área de estudo, historiadores que tanto têm competência em urbanismo e arquitetura como nas ditas artes plásticas. E portanto isso dá um bocadinho o ar de família. Acrescentei uma área que o França não trata desenvolvidamente…

O colecionismo?

Os museus e as coleções, uma área que me ‘aconteceu’, desde final dos anos 80, quando fui diretora do Museu do Chiado. Continuo muito ligada a museus, e outro tema que gosto muito de trabalhar é o da exposição. Portanto, acrescentei isso. Tenho visões muito diferentes das do José-Augusto França em alguns campos, mas devo-lhe evidentemente muito. A grande diferença é que o França ainda foi um estrangeirado. O estrangeirado adquire fora a cultura que no país não pode adquirir-se. Tem uma formação mais atualizada, mais inovadora. Mas é também o homem do ‘entre’. Entre o sítio onde está e o sítio de referência. E a relação é sempre um bocadinho tensa.

Quem vai para fora tem outro olhar sobre o país…

Diminui o país.

Mas consegue ver coisas que quem está aqui ‘mergulhado’ não consegue ver.

É verdade. Mas, simplificando, diz-se que o grande problema do Eça de Queiroz era Lisboa não ser Paris. [risos] Uma colega minha, a Mariana Pinto dos Santos, escreveu um artigo muito citado, mas é um artigo assassino. Chama-se: ‘Estou atrasado! Estou atrasado! Sobre o atraso da arte portuguesa diagnosticado pela historiografia’. É na mouche.

Não podemos estar sempre a comparar-nos com o que acontece lá fora?

Essa já não é a nossa perspetiva. O França, que estudou os artistas portugueses e os valorizou como ninguém antes, diz que o século XIX só tem dois pintores: o Domingos António Sequeira, a começar, e o Columbano, a acabar. Isto não tem rigor nenhum. E depois estamos sempre atrasados, como a Mariana diz. Não foi só o França, esta era uma linha determinante – os centros e as periferias, e a ideia de que as periferias são sempre fracas em relação ao centro. O George Kubler – uma grande referência para mim – explica isso no The Shape of Time. Acho que só as pessoas muito extraordinárias é que dizem coisas tão simples: ‘Um tempo artístico é como um comboio em movimento. Se a primeira carruagem está cheia, eu tenho de ir para a segunda ou para a terceira. Mas chego ao mesmo tempo. Vou no mesmo comboio’. Hoje a nossa visão não privilegia tanto movimentos – se é romântico, se não é romântico, se é naturalista, se é expressionista…

Não compartimenta tanto.

Não compartimenta tanto. E também não é tão rígida em relação às cronologias. Outra coisa importante é dar lugar na história a artistas… Interesso-me e trabalho imenso sobre artistas que ninguém conhece. Para um historiador tudo isso faz parte. Quem é que está nos museus? São os melhores, mas também é o mercado, as dinâmicas que constroem isso. E depois há muitos artistas que vivem com uma dor de cotovelo enorme porque não são reconhecidos. Como toda a gente, os artistas dizem mal uns dos outros. ‘Aquele só trabalha para a carreira’. E eu: ‘Sim, e tu não trabalhas para a carreira porquê?’. ‘Não me interessa’. ‘Então não te queixes’.

Há escritores que vendem imenso e vivem amargurados por não terem o reconhecimento da crítica e há escritores que a crítica põe nos píncaros e vivem amargurados porque vendem pouco.

Ser artista é uma provação permanente. Eu costumava dizer aos meus alunos, de uma forma simples, que é isso que diferencia o campo das artes. Os cientistas querem formular leis que explicam a diversidade das coisas. Nós nas artes valorizamos a diferença. Não há regras para fazer um bom escritor. Claro que há cursos, e se calhar não fazem mal nenhum. Mas não há regras. Portanto é um território de uma diversidade incrível. A grande questão é como é que fazes a história disto. E por isso hoje evita-se um bocadinho fazer histórias gerais. Como em tudo, escrevem-se fragmentos, ninguém se atreve a ter visões globais das coisas. Por isso é que eu quero esse desafio.

A que tipo de público se destina essa história da arte que vai escrever?

A quem não sabe e quer saber o que foi a arte portuguesa do século XIX. É esse o repto, que é pesado, e um bocadinho chato para mim. Mas do século XIX acho que consigo fazer bem, de uma forma interessante. Vai ser um projeto para dois anos, se tiver saúde. Quero introduzir a fotografia, que o José-Augusto França não trata, e que é fundamental já no século XIX. E há outras coisas que quero abordar. O Brasil tem uma importância total na cultura portuguesa do século XIX. Os artistas iam vender ao Brasil, o mercado brasileiro era muito mais amplo do que o português, a questão camoniana é central no Brasil. Queria abordar um bocadinho isso. E queria valorizar algumas culturas, por exemplo a cultura dos engenheiros. A linha férrea do Douro mostra progressos tecnológicos absolutamente incríveis. E foi tudo fotografado! Há coisas que não estão em nenhuma história da arte e que nós hoje, numa visão mais integrada, temos que contemplar. Outro exemplo: uma rapariga de Évora, arquiteta, está a fazer uma tese sobre as casas dos santomenses. São Tomé, na transição para o século XX, era o núcleo do maior desenvolvimento tecnológico. As máquinas para tratar o café e o cacau iam para lá diretamente da Alemanha e dos Estados Unidos, nem sequer paravam em Lisboa. E há fortunas colossais que se fazem. A gente diz ‘isto é micro-história’, mas são realidades muito interessantes.

O seu texto sobre a reconstrução de Lisboa mostra que o estilo pombalino, com o tempo, evoluiu para uma coisa um bocadinho diferente.

É o que eu chamo o ‘segundo pombalino’. Alguns colegas não concordam, mas para mim é muito evidente.

Existe um primeiro pombalino mais normativo, mais estatizante, e um segundo pombalino mais ‘livre’, de iniciativa privada?

Na verdade, houve sempre uma grande resistência dos proprietários a construírem segundo aquela norma. O que ainda está muito na opinião pública é que a D. Maria [reina de 1777 a 1815] é uma desgraça porque desterra o Pombal, faz aquele julgamento horroroso, era uma beata, faz tudo ao contrário.

E isso não corresponde à realidade?

Não tem base de realidade nenhuma. É uma época de maior liberalidade. Aproveita-se o que Pombal tinha feito em clima de ditadura e o que se faz é uma abertura de campo, com um desenvolvimento muitíssimo maior. E a arquitetura manifesta isso, as pessoas querem alindar os prédios. Aquela arquitetura que foi ótima, que é a arquitetura quase militar de um modelo pombalino…

Austera.

As pessoas detestavam, achavam horrível. E portanto no Chiado, que é construído mais tarde, e em algumas zonas de Santa Catarina, há um segundo pombalino. Continua a ser matriz pombalina, mas como não ficou tudo construído, nem pouco mais ou menos, naquele período a partir da queda de Pombal, em 1777, e da subida de D. Maria ao trono há uma margem substancialmente diferente. A outra coisa que está pressuposta no que dizes é essa fronteira. Aí sigo completamente o José-Augusto França. Para mim, a primeira data a isolar, em que a gente diz ‘isto tem tudo que ver com o que vem a seguir e já nada que ver com o que está para trás’, é a reconstrução da cidade.

O primeiro grande corte.

Um urbanismo reticulado, com racionalidade, os esgotos, os passeios, a ortogonalidade – isso é tudo a cidade do século XIX. Custa dizer isto, porque morreu gente e perdemos muita coisa, mas graças ao terramoto há esta cunha de modernidade que é impossível não falarmos dela, porque ela tem tudo que ver com o futuro. A cidade não é reconstruída como tinha sido antes, em que caía e punhas de pé, como os japoneses continuam a fazer. Sem arrasares. Escrevi um artigo com o título ‘Do terramoto ao arrasamento da Baixa’. Porque foi tudo arrasado.

E podia não ter sido?

Um dia estava a olhar para gravuras que já tinha visto cinquenta vezes, e apercebo-me: ‘Estava tudo de pé’. O palácio real, tirando a torre da igreja que ruiu – também ardeu tudo por dentro, é verdade, e estava tudo molhado porque a onda chegou lá -, mas as paredes estavam todas de pé. Foi arrasado. Arrasado e aproveitado para regularizar e subir uma série de centímetros para proteger melhor o edificado do rio. Isto é tudo virado para a frente. l

(continua na próxima edição)