George F. Keenan, adido na embaixada americana em Moscovo em finais da 2.ª Guerra Mundial, acreditava que a insegurança soviética – que provocara as purgas de Estaline e as políticas que conduziram à Guerra Fria – não estava relacionada com o comunismo. A doutrina marxista servia, isso sim, para satisfazer os desejos instintivos dos russos, justificar a hostilidade face ao mundo exterior (existente desde o século XVIII) e conservar a ditadura em linha com a herança dos czares. A atual tensão com o Ocidente também não resulta de ideologias. O que Moscovo mais teme é a influência ocidental numa sociedade russa fragilizada pelos insucessos económicos e as desigualdades sociais. Este medo alimenta o nacionalismo que Putin encarna e a partir do qual se confundem argumentos defensivos com pulsões ofensivas. Ainda há trinta anos, a Rússia fazia fronteira com vários Estados-tampão. Destes, só lhe resta a frágil Bielorrússia. Por isso, Putin insurge-se há mais de uma década contra a expansão da NATO em direção às suas fronteiras. Entretanto, a Aliança Atlântica estacionou mísseis da Polónia à Roménia, o que a Rússia vê como uma provocação e uma ameaça. Ambas servem a narrativa de Putin e congregam os russos, que ainda não recuperaram do trauma do colapso soviético e da perda do império. No início do século, a posição de Putin era diferente. Em 2000, durante uma visita a Londres, admitiu que a Rússia poderia vir a aderir à NATO. Isto porque, argumentou, o país fazia parte da cultura europeia e não devia continuar isolado. Esse era o tempo em que Putin se empenhava em forjar uma cooperação com o Ocidente para combater o ‘inimigo comum’: o terrorismo islâmico. Quando a NATO invocou, pela única vez na sua história, o artigo 5.º para apoiar a intervenção no Afeganistão, a Rússia tomou uma posição solidária e facilitou o estabelecimento de bases americanas no Uzbequistão e Quirguistão, antigas repúblicas da URSS. Depois, os russos sentiram-se traídos quando os americanos utilizaram a islamização para tentar afastar essas repúblicas independentes da esfera de Moscovo. As divergências acentuaram-se com a Primavera Árabe, em que Moscovo procurou, por contraste com os países ocidentais, garantir a sobrevivência dos regimes nacionalistas. A posição russa fez ruir o consenso à volta do ‘inimigo comum’, o Islão radical. Mas o momento de rutura seria, na verdade, a Revolução Laranja na Ucrânia, país que tem, para Moscovo, uma influência simbólica e estratégica que transcende a existência e os interesses da minoria russa. Moscovo receava a tenaz dos países vizinhos que, ao aderirem à União Europeia, ganharam competitividade em confronto com a anémica economia russa. Neste sentido, a Rússia nunca poderia aceitar pacificamente que a Ucrânia fizesse parte da NATO. Quando invadiu o país vizinho, Putin não queria apenas ganhar território. Pretendia, sobretudo, que a Ucrânia voltasse a ter um regime antidemocrático, russófilo, submisso e fora da esfera ocidental. Mais cedo ou mais tarde, haverá que negociar uma solução para a guerra. A recente incursão ucraniana em Kursk pode ter algum resultado estratégico, ao minar a confiança russa, mas não irá resolver o conflito. E uma vez encontrada a paz, a reconstrução da Ucrânia exigirá um esforço económico gigantesco, envolvendo toda a comunidade internacional. Por tudo isto é mais importante, para a Europa, garantir a adesão de Kiev ao projeto comunitário do que insistir na sua integração na NATO. Esta solução pode, porém, não interessar a Washington. Mas se o futuro presidente americano não compreender o sentimento russo, talvez alguém lhe recorde como Kennedy reagiu durante a crise dos mísseis de Cuba… l
Escrito no destino
George F. Keenan, adido na embaixada americana em Moscovo em finais da 2.ª Guerra Mundial, acreditava que a insegurança soviética – que provocara as purgas de Estaline e as políticas que conduziram à Guerra Fria – não estava relacionada com o comunismo. A doutrina marxista servia, isso sim, para satisfazer os desejos instintivos dos russos,…