Em 1982 eu ainda era um estudante de Direito que pouco estudava e me limitava a seguir uma tradição centenária da família. Eriksson chegara para mudar o futebol em Portugal. O seu Benfica jogava um futebol ofensivo e encantador, fosse contra quem fosse e em que campo fosse. Fui uma manhã ao Estádio da Luz. Nesse tempo havia uma porta de ferro que dava para os balneários dos treinadores. Entrava-se na Luz como se num moinho. Bati. Apareceu-me alguém, pedi para falar com Sven só porque queria saber o segredo do seu sucesso e do que conduziu a que uma geração de jogadores portugueses que parecia perdida voltasse a ter uma segunda oportunidade. E ele apareceu, sorridente, sem vaidades, disponível para aturar um garoto, e explicou-me, com aquela simplicidade das coisas realmente simples: «A qualidade dos jogadores portugueses é enorme. Mas, às vezes, parece que não acreditam em si próprios, que têm medo do fracasso. Precisam de saber correr riscos e perceber que são suficientemente bons para ultrapassarem os momentos maus e transformá-los em sucessos». C’um catano!, diria o povinho – passaram-se 42 anos!!! Agora, Sven morreu. Todos estávamos à espera da notícia. Desde essa conversa inicial tivemos tantas outras. Muitas nos tempos em que estava a traduzir a sua biografia para português. Ficarei para sempre com a imagem da sua tranquilidade e da sua incomparável polidez. Ninguém diga que o futebol não é lugar para cavalheiros quando teve espaço para o príncipe da Suécia.
Já não me faltava muito para ser jornalista. E, com o advento na minha vida desta profissão fascinante, infelizmente agora tão mal tratada, os contactos com Sven-Göran Eriksson, ao qual os seus jogadores do Benfica deram a alcunha de Periquito, tornaram-se mais firmes, mais frequentes. Confirmei a ideia inicial: tratava-se de um homem especial, diferente. Nada nele foi banal ou comum. Até no momento em que soube que a morte estava ali, ao rondar da esquina, sinistra como sempre, na forma de um brutal cancro no pâncreas. Liguei-lhe. Dispôs-se a falar sem equívocos. De certa forma despedimo-nos no momento em que publiquei, nestas páginas, uma pequena entrevista na qual ele agradecia a todos os portugueses a simpatia que lhe dedicaram e o facto de nunca se terem esquecido dele. Ainda entrei em contacto com Sven um mês mais tarde. E aí sim, soube que era a última vez que falaríamos. Não nos despedimos. Não era necessário. Limitámo-nos à sua tranquila polidez na hora de desligar o telefone.
A carreira de Eriksson como treinador começou no Degerfors, depois de ter sido um defesa-direito medíocre no Torsby, no Sifhälla e no Karlskoga, mas foi no Gotemburgo que se apresentou à Europa vencendo a Taça UEFA de 1981-82 (com a final ainda a duas mãos) e batendo o Hamburgo fora por 3-0. Fernando Martins apostou nele. E eis que, à frente do Benfica, voltou à final da mesma prova no ano seguinte, desta vez perdendo para o Anderlecht. Uns anos mais tarde, o meu querido António Oliveira, Conde de Mogofores, o Toni, que foi certamente uma das pessoas que mais privou com Sven, contou-me: «Na primeira eliminatória da Taça UEFA, na Luz, tinha ele acabado de chegar ao Benfica, jogámos com o Bétis e ganhámos por 2-1. Resultado mau que nos deixou um bocado frustrados. Entrei no escritório no fim do jogo e o Eriksson estava a ler um fax da France-Presse com os resultados todos do dia. Depois virou-se para mim e disse com toda a calma do mundo: ‘Estive aqui a ver as equipas que participam na prova e acho que temos uma boa chance de a ganharmos’. Pensei que ele era maluco. Isto é bem revelador da forma como encarava as dificuldades. Na segunda mão, em Sevilha, estávamos a perder por 0-1 ao intervalo. Virou-se para os jogadores e disse simplesmente: ‘Se somos muito melhor equipa do que eles, se vocês são muito melhores jogadores do que os deles, por que não ganhamos este jogo?’ O Carlos Manuel e o Nené marcaram e vencemos por 2-1. Depois fomos por aí fora até à final». Foi esse o segredo de Eriksson. O da mentalidade. Abandonar a ideia de pobrezinhos aos quais, como diria o outro, faltavam trinta metros para poderem medir-se com os melhores. Nos anos imediatos à chegada do jovem sueco de Sunne, o Benfica esteve presente nessa final da UEFA, o FC Porto chegou à final da Taça das Taças, e a Seleção Nacional esteve nas fases finais do Euro-84 e do Mundial-86 quando, até aí, 1966 fora o ano da única presença numa grande competição. Há coisas indiscutíveis porque entram pelos olhos dentro até de um amblíope. E o futebol português tem uma dívida de gratidão para com Sven-Göran Eriksson. Uma dívida que nunca poderá pagar. Nem precisa. Apesar deSven, depois de ter sido um homem muito, muito rico, ter desbaratado a fortuna que juntou muito por causa das mulheres e também pelos homens que colocou à frente da nau dos seus negócios.
Em fevereiro de 2004, no Estádio do Algarve, houve um Portugal-Inglaterra amigável (1-1). Cumpria, ao tempo, a minha função de assessor de imprensa da seleção nacional com a qual vivi as aventuras inesquecíveis do Euro-2004 e do Mundial-2006, momentos em que Portugal o fez sofrer como nunca, eliminando a sua Inglaterra – Sven-Göran Eriksson tinha sido escolhido para selecionador inglês em outubro de 2000 (substituindo Kevin Keegan e assinando um início avassalador – venceu, inclusive, a Alemanha em Munique por 5-1 no apuramento para o Mundial de 2002) – nas grandes penalidades, em Lisboa e em Gelsenkirchen. Fui ter com ele à cabina inglesa quase como tinha acontecido em 1983. Ficou surpreso. «Nunca pensei que deixasse de escrever em jornais», referiu. Nem eu, meu querido amigo, nem eu. Volto a Gelsenkirchen: dia 1 de julho de 2006. Nunca, em tantos anos, o vira tão profundamente frustrado. Depois quebrou o silêncio: «Afonso, esta é talvez a derrota mais dolorosa da minha vida». E eu, que estava naturalmente feliz, sem saber o que dizer-lhe, sem saber como confortá-lo. Demos um shake-hands vigoroso, trocámos uma palmada no ombro, e seguimos o caminho do regresso para a vida que nos esperava. Eu para Munique e para a meia-final contra a França, ele para a Grande Ilha para lá da Mancha para finalizar a sua carreira como selecionador inglês. Rodeado por uma turba de jornalistas sedentos de sangue após a sua terceira eliminação consecutiva nos quartos-de-final de uma grande competição – três vezes frente a Luiz Felipe Scolari, curiosamente –, limitou-se a ser o gentil-homem que sempre foi: «Queria ser julgado como um homem sério que fez o seu melhor». Em cinco anos e meio no comando da equipa dos Três Leões perdeu três jogos oficiais. «A margem entre o sucesso e o fracasso é fina como uma lâmina», disse-me uma vez. A vida deu-lhe razão.
Sven foi sempre um vencedor: no Degerfors (campeão da IIIDivisão sueca); noGotemburgo (campeão e vencedor da Taça daSuécia; Taça UEFA); no Benfica (três títulos de campeão, uma Taça de Portugal, finalista da Taça UEFA e da Taça dosCampeões, o último a consegui-lo); na Roma (Taça de Itália); na Sampdoria (Taça de Itália); na Lazio (campeão, duas Taças de Itália, finalista da TaçaUEFA e vencedor da Taça dasTaças)… Fugiu-lhe sempre a Taça dos Campeões. Viveu os tempos iniciais e confusos doManchester City, esteve no Leicester, depois na China, no Guangzhou R&F, no Shanghai SIPG e no Shenzhen, passou pela seleção doMéxico, treinou a Costa do Marfim no Mundial da África do Sul, perdeu-se nas Filipinas numa tentativa desesperada de simples sobrevivência.
Marquei o número: o telefone tocou longamente mas não obtive resposta. Não era de admirar. Sven-Göran Eriksson tinha vivido no centro de um furacão macabro desde que, no circunspecto inglês The Times, anunciou que talvez não tivesse mais do que um ano de vida. Enviei-lhe uma mensagem escrita e fiquei à espera de um sinal do lado de lá. Não tardou muito. Número privado e uma voz bem conhecida muito mais positiva e animada do que poderia esperar: «Hey, my friend! Still working in newspappers? But not in A Bola anymore, do you?». Não, Sven, claro que não! Esse é um sítio que se apagou de vez da minha vida para nunca mais ter regresso. A 21 de Janeiro deste ano, o Nascer do SOL publicava palavras que não escondiam o adeus: «Os adeptos do Benfica sempre demonstraram, e bem, carinho por mim. E o mesmo se passa comigo. Tenho um grande carinho pelos adeptos do Benfica, sempre maravilhosos, por isso desejo-lhes as maiores alegrias». Vou na esteira de outra conversa que tive com ele, noutro Campeonato do Mundo, o de 2010, na África do Sul, onde Sven esteve expressamente para a fase final. Estávamos em Port Elizabeth. Scolari já se fora, a maldição partira com o Felipão, se calhar. Carlos Queiroz era o selecionador português, o jogo foi típico de um primeiro jogo de uma fase de grupos e acabou com um maçador empate a zero. Rui Costa, que Eriksson lançou como titular no Benfica e a quem deu o número 10, estava a caminhar firmemente como diretor desportivo e com a ambição que sempre teve de ser presidente do clube pelo qual vive apaixonado. Sven perguntou-me por ele. E depois acrescentou: «Gosto muito do Rui como pessoa. Foi um jogador grandíssimo e sei que está a fazer um bom trabalho como dirigente. Tem tudo para ser um grande dirigente porque sabe tudo de futebol. Desejo-lhe a melhor sorte do mundo». Depois, mais um shake-hands entre nós dois.
Às vezes ligava-lhe no dia dos anos, 5 de fevereiro, só para uma palavra de indiscutível consideração. A última que me lembro estava ele no Leicester e a caminho da China procurando recuperar alguma da sua fortuna que um tal de Samir Khan geriu de forma a levá-lo à falência, roubando-lhe tudo o que pôde. Escrevo sobre alguém de quem gosto muito: nascido a 5 de fevereiro de 1948, numa cidadezinha chamada Sunne, em Värmland, no centro da Suécia, entalada entre dois lagos, o Övre Fryken (Lago do Norte) e o Mellan-Fryken (Lago do Meio). Na sua biografia, Sven-Göran Eriksson – A Minha História, escrita a duas mãos com um prestigiado jornalista sueco, Stefan Lövgren, uma frase marca muito do que foi a vida de Sven: «Como é que um polido e discreto sueco, nascido na pacata província de Värmland, conseguiu chegar ao topo num meio dominado pelo dinheiro e por egocêntricos?». Descobri a resposta a essa pergunta e a muitas outras que se encadearam nela: afinal fui eu quem traduziu o livro para português. É um livro triste. Eriksson, que foi um jovem cometa que encantou a Europa com uma equipa do Gotemburgo que venceu a Taça UEFA e que por um triz não voltou a ganhar a mesma prova no ano seguinte com o Benfica, acabou por se desiludir com a vida e consigo mesmo.
Sven nunca resistiu ao chamamento da beleza feminina. A sua primeira mulher, Anna, da qual teve os seus dois filhos, Johan e Lina, era uma senhora lindíssima. Mas era um sedutor incontrolável. A ponto de, já em Itália, ter começado um romance mediático com outra capa de revista chamada Grazziella. Nessa altura a sua carreira de treinador perdera o brilho. Chamavam-lhe Il Perdente Sucesso (O Perdedor de Sucesso). O grande desastre em forma de mulher que teve de encarar foi Nancy del’Oglio, uma advogada e figura da alta sociedade romana. Apesar disso, de um dia para o outro, a sorte mudou de lado: foi campeão de Itália com a Lazio, venceu a última Taça das Taças, foi o primeiro estrangeiro a ocupar o cargo de selecionador de Inglaterra.
Quando regressou a Portugal, em 1989, desiludiu-se com o futebol de cá. «Mais sujo. Mais corrupto. Só se falava de arbitragem». Mas conseguiu esconder a mágoa na hora do adeus definitivo: «Obrigado a vocês, portugueses. Sempre simpáticos! Portugal faz parte da minha vida! Trabalhei no Benfica anos maravilhosos com vitórias e títulos e finais europeias. E um público sempre fantástico. Vou ser sempre benfiquista. Cá dentro! Serei sempre!». Até sempre Sven, o cavalheiro sueco. Um príncipe que um dia chegou do frio num Verão escaldante de Lisboa.