Há uma semana escrevi aqui, a propósito do livro África – Uma biografia do continente, de John Reader, sobre dois tesouros africanos muito diferentes – diamantes com três mil milhões de anos e as mais antigas pegadas de bípedes que nos chegaram. Hoje falarei sobre uma catástrofe pouco conhecida.
Estima-se que em 1900 a população total daquele continente rondasse os 129 milhões de habitantes. Um valor bastante modesto, quase insignificante, quando comparado com o de hoje – mais de 1500 milhões. Ainda assim, resultava de um período de 25 anos (entre 1870 e 1895, mais ou menos coincidente com as expedições dos exploradores portugueses) de condições climáticas favoráveis, com chuvas acima da média, que proporcionaram melhores colheitas e permitiram a fixação de comunidades em zonas que antes eram demasiado áridas para suportar a vida. Só para se ter uma ideia do fenómeno, o caudal do Nilo aumentou 35% nesse período.
Mas a partir daí as chuvas abrandaram e os anos de seca sucederam-se. Depois da bonança, a tempestade. O anterior aumento da população só agravou as coisas, pois havia mais bocas para alimentar.
Além da seca, houve pragas de varíola, de gafanhotos e de peste bovina. Esta última tinha aparecido na atual Somália em 1889, ano de nascimentos gloriosos e infames (Chaplin, Hitler, Wittgenstein, Heidegger, Salazar e D. Manuel II, o último rei de Portugal, para não falar da Torre Eiffel).
John Reader descreve-a assim: «A peste bovina é uma doença viral, altamente contagiosa, que se manifesta em febre, inquietação, perda de apetite, diarreia com sangue e corrimento nasal. Alguns animais tornam-se maníacos; a grande maioria enfraquece rapidamente e morre. A doença tem uma longa história. Era conhecida nos tempos clássicos e parece ter-se mantido um reservatório de infeção nas estepes russas, onde periodicamente irrompiam epidemias que devastaram o Médio Oriente e a Europa».
A peste bovina chegara à Somália pela mão dos italianos. Em finais de 1897 tinha-se alastrado a todos os recantos do continente. «O gado vacum não foi o único afetado. Os ovinos e caprinos também morreram, e a doença praticamente eliminou as populações de búfalos, girafas e elandes em que tocou, bem como a maioria dos pequenos antílopes, javalis, porcos selvagens e porcos da floresta».
Na África do Sul, foi instalada uma vedação de arame farpado de 1600 quilómetros para travar o contágio entre os animais. De nada serviu. Segundo Reader, «dois milhões e meio de cabeças de gado morreram a sul da vedação; 5,5 milhões a sul do Zambeze; e até 95 por cento do gado nas regiões pastoris em geral».
Além da fome inevitável, houve consequências terríveis para a população humana. O gado não era apenas sinónimo de comida. Era-o também de prestígio e riqueza. Privados dos seus animais, muitos fulani no Norte da Nigéria suicidaram-se, outros perderam o juízo. Tribos outrora temíveis e orgulhosas ficaram reduzidas a bandos de pedintes. Houve quem estimasse que dois terços dos Masai tenham perecido.
Qual a maior catástrofe da história de África? O flagelo da escravatura transatlântica? A colonização brutal do Congo? O genocídio bárbaro dos hutus no Ruanda? Aceitam-se apostas neste ranking funesto. Mas a peste bovina de finais do século XIX parece merecer pelo menos o estatuto da grande calamidade esquecida do continente africano.