No reino da fantasia

Se a minha avó ouvisse a expressão «pessoas que menstruam» ficaria estupefacta e perguntaria na sua ingenuidade: «Mas por que não dizem simplesmente ’mulheres’?».

A minha avó materna contava a seguinte história que nunca percebi se era real ou uma anedota. Um dia o Rei D. Carlos foi visitar Rilhafoles, um hospital psiquiátrico antecessor do Júlio de Matos, e manteve conversas com vários doentes, alguns deles internados compulsivamente. Um destes contou ao Rei uma longa história que o impressionou. Garantiu que não era louco e estava ali por vingança de alguém. A conversa do homem era tão escorreita, e os seus argumentos tão convincentes, que no fim da visita o Rei lhe disse: «Acredito no que me contou e vou dar ordem ao diretor do hospital para o soltarem».

Ao ouvir isto, o homem começou aos gritos: «Co-co-ro-có! Co-co-ro-co-có!». E aqui o Rei comentou: «Cantaste a tempo!». E naturalmente não o mandou soltar.

Ao ouvir esta história em criança, eu não tinha dúvidas de que o homem era louco. Se se julgava um galo, tinha um problema mental grave.

Mas hoje isso não seria tão evidente. Já vimos adultos que se julgam bebés, outros que se julgam cães e, claro, homens que se julgam mulheres e vice-versa.

Se a minha avó ouvisse a expressão «pessoas que menstruam» ficaria estupefacta e perguntaria na sua ingenuidade: «Mas por que não dizem simplesmente ‘mulheres’?». E aí eu teria de lhe explicar que há homens – ou seja, pessoas com corpo de homem – que se sentem mulheres, e mulheres que se sentem homens.

Dito de outro modo, há indivíduos que afirmam ser mulheres e não podem menstruar, porque biologicamente são homens, e outros que se dizem homens e menstruam, porque biologicamente são mulheres.

Julgo que, perante esta explicação, a minha avó acharia que os malucos outrora internados em Rilhafoles tinham tomado conta do país.

E na sua candura perguntaria: «E por que é que essa gente não se trata? Se dizem ser mulheres e têm corpo de homem, é porque sofrem de qualquer problema – e deveriam tratar-se».

Confesso que aí eu ficaria sem resposta – porque há muito tempo que penso o mesmo.

A resposta ‘científica’ que hoje se dá a esses problemas é tentar transformar os corpos de homens em corpos de mulheres e o contrário, para se adequarem ao que essas pessoas pensam de si próprias. Só que isto é um embuste. Estas intervenções deveriam ser pura e simplesmente proibidas, porque constituem uma fraude: por mais cirurgias e tratamentos que se façam, a medicina não consegue transformar uma mulher num homem e um homem numa mulher.

Podem fazer-se excisões e reconstituições de órgãos genitais, ablações de seios e implantes mamários, choques violentos de hormonas, que a transformação nunca se dará.

O caminho terá de ser outro que não a violência brutal que representa uma operação de mudança de sexo: terá de ser um tratamento psiquiátrico tentando adaptar a mente do paciente ao corpo que tem.

Até porque se suscita uma questão que nunca é abordada. Fala-se de pessoas insatisfeitas com o sexo com que nasceram. De mulheres que gostariam de ter nascido homens, e vice-versa. Mas, nestes casos, não estaremos muitas vezes perante pessoas apenas de mal com a vida? A insatisfação com o sexo não esconderá outro problema? Se mudarem de sexo passarão a ser felizes?

Aliás, abundam os casos de pessoas que se submeteram a bárbaras cirurgias de troca de sexo e depois se arrependeram, porque perceberam que o problema não estava aí.

A ‘ideologia de género’ assenta numa ideia perigosíssima: o que interessa é a subjetividade. Um indivíduo ser biologicamente homem ou mulher pouco importa: o que importa é a forma como ‘se sente’. Se ‘se sente’ homem, é homem. Daqui decorre que a realidade não existe e que tudo é subjetivo. Que aquilo que todos vemos pode não ser o que parece. Estamos a ver um corpo com um pénis, ombros largos, ancas estreitas e pernas musculadas mas pode não ser de um homem: pode ser de uma mulher, porque o seu proprietário ‘se sente’ mulher. Já não sabemos o que vemos, nem onde está a verdade e a mentira, o autêntico e o falso.

Curiosamente, Vladimir Putin, que combate o wokismo e estes devaneios ocidentais, acaba por fazer a mesma mascarada ao dizer sem se rir que a entrada de tropas russas na Ucrânia não foi uma ‘invasão’ mas uma «operação militar especial». E quer salvar os ucranianos de um regime «nazi», mesmo que a maioria não queira ser salva.

Enfim, a Leste e a Oeste a mesma tentativa de sobrepor a subjetividade à objetividade, de substituir a realidade pela ideologia, a verdade pela pós-verdade.

Há uns 30 anos, surpreendi-me ao ouvir António Guterres começar um discurso dizendo: «Portuguesas e portugueses!». Eu pensava que a palavra ‘portugueses’ englobava tudo: homens e mulheres, novos e velhos, ricos e pobres. Mas mesmo uma pessoa politicamente correta como Guterres já está hoje desatualizada, pois não existem só dois ‘géneros’ – homens e mulheres – mas uma multidão deles. Ser ‘homem’ ou ‘mulher’ já não quer dizer nada.

O que nos vale é que, tal como outras ideologias passaram de moda, esta terá o mesmo destino, até porque a realidade acaba sempre por se impor. Mas até desaparecer fará muitos estragos.