Se o tempo da Justiça deve ser respeitado e o princípio da separação de poderes aconselha a que não se misture o que possa fazer coalhar o caldo da democracia e do Estado de direito, a verdade é que vamos assistindo cada vez mais a coincidências que nos obrigam a, pelo menos, questionarmos as suas razões. Com efeito, a Inspeção Geral das Finanças tornou público apenas nesta semana o seu relatório sobre a privatização da TAP pelo Governo-relâmpago e minoritário de Passos Coelho em 2015 e a respetiva remessa ao Ministério Público por considerar existirem indícios da prática de ilícitos criminais.
Ou seja, nove-anos-nove depois do despacho assinado por Miguel Pinto Luz, então secretário de Estado da tutela, com o agreement do ministro da pasta, Pires de Lima, da ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, e ainda, e obviamente, do primeiro-ministro, Passos Coelho.
E na semana seguinte a Albuquerque ter sido confirmada como nome proposto pelo Governo português para futura comissária europeia e apenas horas depois de o agora ministro Miguel Pinto Luz ter recebido, juntamente com o ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, o administrador da Lufthansa que veio a Lisboa formalizar o interesse da companhia aérea alemã na compra de uma posição minoritária, mas significativa do capital social da transportadora aérea nacional.
Na mais crédula das interpretações, dir-se-á que o tempo escolhido (???) pela Inspeção Geral das Finanças (IGF) terá sido pura coincidência.
Acreditemos que sim.
Mas lá que não é fácil… não é.
Sobretudo porque já se passaram nove-anos-nove e as conclusões da IGF são as mesmíssimas que já vieram a público há anos (o Nascer do SOL fez várias notícias de capa e levou à estampa inúmeros artigos sobre o assunto, com destaque para os assinados pelo especialista na matéria Sérgio Palma Brito) e que inclusivamente constam de outros relatórios na posse do Ministério Público desde há pelo menos dois anos, como veio, e bem, lembrar agora Luís Montenegro.
Sejamos objetivos, se o atual ministro das Infraestruturas teve algum papel no processo de privatização da TAP em 2015, quando exerceu as funções de secretário de Estado da tutela, foi o de apor a sua assinatura num despacho que já vinha no caderno de encargos da aceitação do cargo. Não é em 28 dias – tempo total desse Governo-relâmpago – que se negoceia o que quer que seja de um dossiê tão complexo.
E a TAP estava num estado agonizante.
Por isso, quando a Oposição – sobretudo o PS e o BE – vêm agora pôr em causa a idoneidade de Miguel Pinto Luz para negociar a reprivatização da TAP, não têm razão alguma. O atual ministro das Infraestruturas limitou-se a assinar o que já estava decidido e feito e tinha apenas de ser executado.
Por isso, o alvo dos ataques da Oposição só pode ser quem acompanhou todo o processo: do coordenador Sérgio Monteiro ao primeiro-ministro de então, Pedro Passos Coelho.
Ora, estando ambos fora da arena política ativa, e sendo que a ministra das Finanças da altura – que tinha palavra decisiva no processo – era Maria Luís Albuquerque, e tendo esta acabado de ser nomeada pelo Governo como candidata ao cargo de comissária europeia, só ela pode ser prejudicada pelo timing da divulgação deste relatório, por coincidir no tempo com as audiências a que terá de sujeitar-se antes de o seu nome ser submetido a votação no Parlamento Europeu.
Objetivamente, trata-se de uma fragilização ou tentativa de fragilização da candidata portuguesa ao gabinete de comissários de Ursula von der Leyen.
O que, se pode considerar-se ‘normal’ num partido radical e de extrema-esquerda como o Bloco de Mariana Mortágua, não pode ser bem compreendido nem aceite num partido europeísta e moderado como o PS de Pedro Nuno Santos.
Por todas as razões e mais uma adicional, se não mesmo principal: é que o processo de reversão da privatização da TAP foi feito pelo Governo da ‘geringonça’ (e muito por pressão do BE), e teve o atual líder socialista como protagonista principal, num Governo liderado precisamente pelo agora já empossado presidente do Conselho Europeu. E as indemnizações pagas pelo Estado aos privados visados no relatório da IGF são totalmente da responsabilidade do Governo que decidiu pela renacionalização da companhia, tal como, aliás, os milhares de milhões injetados pelos contribuintes.
Ora, se o processo de privatização estava inquinado como estava, como foi possível o Estado ter pago o que pagou aos então acionistas privados da TAP, como o senhor Neeleman? E as indemnizações milionárias a todos quantos foram por eles lá colocados?
O que será mais criminoso? E mais lesivo dos interesses da companhia e, sobretudo, do Estado e dos contribuintes?
Nesta matéria, a Oposição devia era meter a viola no saco e deixar-se de histerias.
Não vão os arremessos de agora acabar por acertar nos próprios, qual boomerang aborígene.
Em tempo de reprivatização da TAP, mesmo que apenas de uma posição minoritária, os únicos beneficiários destes foguetórios são os eventuais interessados e potenciais compradores.
Nem a companhia, nem o Estado ganham rigorosamente nada com o assunto.
Antes pelo contrário. E quem paga a fatura, uma vez mais, é o mexilhão do contribuinte.