O nosso inefável André Ventura parece, há uns tempos recentes, desnorteado: sem discurso, sem plano, sem alvo. Só assim posso compreender que tenha tido a estapafúrdia ideia de propor uma acção contra o Presidente da República, que seria acusado de traição à Pátria. Pasma-me que nem ele nem a sua entourage se tenham dado conta do sumo ridículo da coisa. A coisa, é claro, não pegou e o assunto, creio eu, morreu.
Mas Ventura não tardou a tirar outra da cartola: levar a questão da imigração a referendo, um referendo com nada menos do que duas perguntas muito complexas e que não podem ser respondidas com um simples «sim» ou «não». Começa por que a esmagadora maioria das pessoas não está intelectualmente habilitada para dirimir um problema, como o da imigração, tão vasto e tão prenhe de graves consequências para o País. Depois, elegemos os deputados para precisamente resolverem por nós todos todo o tipo de questões, e não para que peçam socorro aos eleitores quando se trata de algo mais intrincado.
Sou, por princípio, absolutamente contra referendos – que constituem uma intrusão da democracia directa num sistema de democracia representativa. Bem sei que já houve pelo menos dois referendos em Portugal – o da regionalização e o do aborto. Verguei-me à realidade e participei em ambos, dizendo «não» à regionalização e «sim» ao aborto. ‘Ganhei’ em ambos os casos, mas isso não fez de mim uma adepta da democracia directa. Bem pelo contrário: desafio quem for capaz de desencantar um problema sério e complicado que possa ser respondido, muito simplesmente, por um «sim» ou por um «não». Veja-se o que aconteceu com o Brexit: a maioria dos ingleses lamenta hoje em dia o passo dado pela Grã-Bretanha ao decidir por referendo abandonar a União Europeia. Nunca uma questão desta complexidade e grandeza deveria ter sido referendada.
A história de França gerou em mim uma aversão visceral contra a democracia directa. Não acredito na bondade indisputável do povo, ao contrário do que pregou Rousseau, que tanto influenciou o que se seguiu à Revolução Francesa de 1789, cujo slogan, que vem até hoje, era ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’. Note-se que Liberdade vem em primeiro lugar, e Igualdade em segundo. Mas, volvidos dois anos de uma Assembleia Legislativa muito ruidosa e convulsa; volvidos dois anos de radicalização extrema, em Julho de 1792 o Clube dos Cordeliers elabora uma moção pedindo que se convoque uma Assembleia Constituinte apelidada de ‘Convenção’. Este desejo foi satisfeito um mês depois, em Agosto, na sequência da insurreição das Tulherias (que praticamente prendeu o rei e sua família), tendo-se por essa altura não só suspendido a monarquia como decidido a eleição de uma ‘Convenção’, isto é, de uma Assembleia Constituinte.
Muito revelador foi a actuação da Comuna de Paris: oficialmente, estava-se então no Ano Quatro da Liberdade (1792). Pois a Comuna decidiu alterar o calendário e decretar que a contagem do tempo histórico tinha mudado: estava-se, em Agosto de 1792, no Ano Um da Igualdade ! Os resultados da Igualdade, que a «Convenção» apadrinhava, não tardaram a fazer-se ver: em Setembro do Ano Um da Igualdade iniciaram-se os massacres de Setembro: a populaça, exaltada pela igualdade com que fora bafejada, desatou a executar sumariamente todos os detidos nas prisões parisienses. A ‘democracia directa’ culminou com a execução do próprio Luis XVI, guilhotinado na Praça da Revolução em 22 de Janeiro de 1793.
O que pretendo dizer com esta incursão pela Grande Revolução Francesa de 1789, é que o fanatismo da Igualdade e a entrega do povo aos seus impulsos mais básicos podem desaguar numa catástrofe de dimensões inimagináveis. Poderia também, por exemplo, citar a Revolução Cultural Chinesa, em que durante dez anos o Estado abdicou do monopólio da força legítima e a entregou a milhões de “guardas vermelhos” que prenderam, espancaram e mataram a torto e a direito. Com o referendo, revive a ideia da Igualdade e da democracia directa, dois conceitos indesligáveis.
Por tudo isto, e também porque acho que o eleitorado não está habilitado para se pronunciar a respeito das perguntas engendradas por Ventura, o meu repúdio pelos referendos é total.