A notícia de que a Volkswagen (VW) está a considerar fechar algumas fábricas na Alemanha caiu que nem uma bomba junto do setor. A explicação é simples: a VW tem 10 fábricas de montagem e de peças na Alemanha, onde estão 120 mil dos seus 684 mil trabalhadores em todo o mundo. Trata-se do maior grupo automóvel europeu e o 2.º maior do mundo. O objetivo é reduzir os custos de produção para ganhar competitividade na ordem dos 10 mil milhões de euros até 2026 e a ideia passa por controlar os investimentos nos veículos elétricos. O grupo prevê para este ano vender menos 500 mil do que vendia antes da pandemia, o que equivale à produção de duas fábricas.
Se este encerramento acontecer, será a primeira vez em 87 anos de história que a marca fecha uma fábrica na Alemanha.
E, ao mesmo tempo, prepara-se também para rescindir o acordo atual, que inclui um compromisso de proteção dos postos de trabalho até 2029. Uma decisão que poderá indiciar que iremos assistir a nova era nas relações com os sindicatos, já que até aqui era conhecida a “boa” relação do grupo com as estruturas sindicais e que se estendeu a outras unidades fora da Alemanha.
Um desses casos é a Autoeuropa. Aliás, a notícia de um possível encerramento de fábricas na Alemanha criou alguma tensão no mercado nacional, já que a fábrica de Palmela continua a ser considerada o maior investimento estrangeiro. Da sua linha de montagem saem cerca de 934 carros por dia com destino essencialmente ao mercado europeu. Com cerca de 4851 colaboradores, continua a ter um grande impacto económico no país, tendo contribuído, em 2023, com 1,3% para o PIB. A empresa tem em curso um dos maiores planos de investimento da sua história – que ascende a 600 milhões –, cujos principais focos serão o novo modelo e a descarbonização do processo de produção em mais de 80%.
Para já, a Comissão de Trabalhadores (CT) da Autoeuropa não prevê que a crise na Volkswagen tenha qualquer impacto na fábrica de Palmela, uma vez que é uma das mais rentáveis do grupo alemão. Uma ideia que vai ao encontro do que diz Hélder Pedro, secretário-geral da ACAP, que, em entrevista ao i (ver páginas 20/21), admite que “é normal que alguns grupos de construtores automóveis mudem de estratégia”, uma vez que a “indústria automóvel é uma indústria global que está a passar por um processo de disrupção com a questão da descarbonização que temos na União Europeia com metas muito objetivas e concretas”.
No entanto, a CT da fábrica de Palmela avisa que o setor automóvel está muito instável.
Risco antigo
É certo que, nos últimos anos, os fabricantes europeus têm estado a braços com uma crise sem precedentes. A, culpa, em parte, é da concorrência dos fabricantes de automóveis chineses (ver páginas 12/13), assim como das exigências de Bruxelas, que ditam um prazo apertado para carros com zero de emissões, obrigando as indústrias a fazer investimentos avultados para a apostarem na oferta de elétricos.
E, apesar de muitos fabricantes já terem feito fortes investimentos na eletrificação das suas frotas, para alguns a meta de 2025 pode ser difícil de atingir, especialmente para aqueles que dependem fortemente de veículos a combustão interna.
Em causa estão multas relacionadas com o incumprimento das metas de redução de emissões de dióxido de carbono (CO₂) impostas pela União Europeia (UE), que se prepara para baixar o limite para apenas 94g/km em 2025, o que representa um corte de 19%.
Em março, o CEO do grupo Renault, numa “Carta à Europa”, alertou para “sintomas de um enfraquecimento” da indústria automóvel europeia, que arrisca ser “preocupante” se nada for feito, perante a “concorrência desequilibrada” face à China e aos Estados Unidos, defendendo ser “essencial” avançar com iniciativas de cooperação entre o setor público e o privado – à semelhança do que foi feito para a aviação, com a Airbus.
“Com a Airbus, já vimos o que a Europa pode fazer. Ao intensificar as iniciativas de cooperação, vamos colocar a nossa indústria na via do relançamento”, afirmou Luca de Meo, considerando que a indústria automóvel na Europa “enfrenta hoje uma concorrência desequilibrada”, já que, enquanto “os americanos estimulam” e “os chineses planeiam”, “os europeus regulam”.
E o responsável dá números: o setor a nível europeu emprega 13 milhões de pessoas, representa 8% do Produto Nacional Bruto e gera um excedente comercial entre a Europa e o resto do mundo de 102 mil milhões de euros, além de constituir “uma importante fonte de receitas para os Governos – 392 mil milhões de euros, isto é, mais de 20% das receitas fiscais da União Europeia.
Também no início do ano, o CEO da Stellantis – que detém marcas como a Peugeot e a Citröen – defendeu que é preciso uma maior consolidação entre as construtoras automóveis na Europa. No entanto, Carlos Tavares tem afirmado que é necessário que os reguladores europeus mudem a sua postura para permitir a criação de empresas de maior dimensão na região, sem colocarem entraves à criação de grandes grupos.
Outros problemas
A somar aos problemas que a indústria automóvel enfrenta há que contar ainda com a vulnerabilidade crescente das cadeias globais de abastecimento. Um desses exemplos foi a crise que se registou no Mar Vermelho e no Canal do Suez, que causou graves prejuízos aos fabricantes do setor. “Uma cadeia de abastecimento resiliente é fundamental”, chegou a dizer Adão Ferreira, secretário-geral da AFIA.
Os últimos dados divulgados pela Crédito y Caución para o setor não são animadores: a produção automóvel mundial vai abrandar o seu crescimento para 0,8% em 2024 devido à moderação da procura. “Após o forte dinamismo de 2023, as altas taxas de juros pesam sobre a produção e as vendas de veículos. As interrupções no abastecimento resultantes de ataques a navios no Mar Vermelho continuam a ser um risco para o setor”, diz o relatório.
O documento refere ainda que, na Europa, onde a produção automóvel vai crescer 1,6% em 2024, a seguradora de crédito alerta para o aumento das insolvências e incumprimentos entre os pequenos e médios fornecedores, recordando que o abandono dos motores de combustão interna começou a remodelar a indústria e a sua estrutura competitiva na Europa. A consultora acrescenta que “muitos prestadores de serviços de níveis dois e três podem não dispor dos meios tecnológicos ou financeiros necessários para se manterem na cadeia de valor”.
E acrescenta:_“Em muitos mercados avançados, as condições de crédito permanecem apertadas e os consumidores estão em contenção de gastos, apesar da normalização da inflação e de uma recuperação gradual dos salários reais”. E a seguradora acrescenta que, “a mais longo prazo, os mercados emergentes asiáticos liderarão o crescimento da produção mundial”.
As principais ameaças ao desempenho automóvel estão ligadas aos riscos geopolíticos e demográficos, acrescentando, por um lado, que o setor depende de uma rede global de fornecedores e é vulnerável ao protecionismo, tarifas e interrupções no fornecimento. Já o envelhecimento da população implica uma diminuição da procura futura.