O CAM deixou de ser um intruso na paisagem

O Centro de Arte Moderna vai abrir ao público depois de uma longa hibernação de quatro anos. O diretor promete manter-se fiel à missão original. O presidente da fundação exige que o equipamento esteja à altura das condições que lhe foram dadas.

Vista do interior do renovado Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a icónica pala que se projeta da fachada lembra-nos a mais famosa obra de arte do Japão: A Grande Onda de Kanagawa, uma das 36 vistas do Monte Fuji, do mestre pintor e gravador Katsushika Hokusai. Afinal, se a emblemática gravura de Hokusai influenciou pintores como Van Gogh e Monet, um compositor como Debussy e um poeta como Rilke, não é de excluir que possa ter influenciado também o arquiteto japonês que assina o projeto.

A estrutura, cujo nome técnico é engawa – já iremos ao seu significado –, empresta uma nova leveza ao sólido e compacto projeto original de Leslie Martin, e constitui talvez a característica mais saliente da intervenção de Kengo Kuma (Yokohama, 1954), iniciada há quatro anos e agora concluída. A_abertura ao público está agendada para 21 de setembro e inclui dois dias de festa.

Outra mudança de monta são as janelas rasgadas, que trazem ao átrio uma luz e uma transparência acrescidas, e a nova entrada virada a sul. Atravessando esse limiar em direção ao exterior, o visitante vê-se perante um espaço de transição, já ao ar livre mas ainda coberto, o equivalente japonês do alpendre, que na cultura nipónica representa um lugar de encontro e de socialização. Acima, ergue-se a tal curva de madeira da engawa que nos dá a sensação de estarmos debaixo da grande onda. Felizmente, esta, como a de Hokusai, está parada no espaço, fixada num instante, e não corre o risco de desabar com estrondo.

Para lá, afastando-nos do edifício, penetramos num novo recanto do Jardim Gulbenkian, que procura ser um prolongamento dos princípios propostos por Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles na década de 1960. Esta parcela de terreno havia sido adquirida em 2005 pela Gulbenkian a Maria Teresa Eugénio de Almeida, condessa de Vill’alva e viúva de Vasco Maria Eugénio de Almeida, mas só com o falecimento da condessa aos 95 anos, em 2017, a Gulbenkian tomou posse da propriedade. O concurso para o arranjo paisagístico foi lançado em março de 2019, tendo o projeto do montenegrino-libanês Vladimir Djurovic (autor dos espaços exteriores quer do MAAT quer da sede da EDP) convencido unanimemente o júri.

O que vai fazer? ‘Nada’

Na apresentação do novo CAM aos meios de comunicação social, o presidente da fundação lisboeta, António Feijó, explicitou as intenções que orientaram o projeto e recordou um pouco do processo. «É de uma absoluta parcimónia. Djurovic disse-nos mais do que uma vez que o que Ribeiro Telles e Viana Barreto tinham feito prefigurava tudo o que é prática hoje no paisagismo mais interessante. Quando lhe perguntei ‘Então, o que está a pensar fazer?’, respondeu ‘Nada’». Ou seja, os planos do paisagista passavam apenas por atualizar os princípios propostos por Ribeiro Telles e Viana Barreto na década de 60.

«A arquitetura de paisagem é trabalhar com um corpo vivo… Como no ballet – tem movimento, tem dinâmica, e portanto trata-se de compreender a dinâmica da vida, não de construir um cenário para bilhetes postais, nem um cenário para dizerem ‘vamos vender este edifício que tem uns arranjos exteriores tão à moda’», defendia Ribeiro Telles.

Com este acrescento, que comprova que o jardim está vivo, o recinto da Gulbenkian ganha 7,5 mil metros quadrados e reassume quase integralmente a área do Parque de Santa Gertrudes, concebido em 1865 pelo jardineiro suíço Jakob Weiss. «Do muro acastelado que existia aqui permanecem as pedras, diferentes tipos de calcário, que foram cortadas, no muro baixo», explicou a arquiteta paisagista Paula Côrte-Real. Além da flora – as árvores existentes foram mantidas, tendo-se plantado outras novas e incorporado também plantas silvestres –, há um elemento que assume especial importância:_a água. «Toda a água que é recolhida superficialmente no jardim é encaminhada até ao grande lago do jardim Gulbenkian, donde é feita a rega do jardim inteiro», continua Côrte-Real. «Neste momento, em que as obras terminaram e em que tudo acalma, já aqui podemos encontrar toutinegras, chapins, papa-moscas, libelinhas, abelhas e borboletas», conclui.

CAM:_um pouco de pré-história

No seu discurso, António Feijó recordou um pouco da história – ou pré-história – do CAM. «Quando Azeredo Perdigão, em 1979, no conselho de administração, propôs e votou uma deliberação para construir o Centro de Arte Moderna, que iria abrir em 1983, qual era o seu intuito? Por que entendeu Azeredo Perdigão que construir o CAM era importante? A razão era simples. O Museu Gulbenkian tem um acervo finito, é uma coleção finita, que não pode ser suplementada com aquisições adicionais, está restrita às cerca de seis mil peças que a constituem. E tinha um limite cronológico, não excedia a segunda metade do século XX. Azeredo Perdigão entendeu que, se a Fundação Calouste Gulbenkian queria ter uma intervenção na arte, teria que estar aberta à arte contemporânea. Como? De início pensou fazer aquisições de peças de artistas portugueses contemporâneos. Essas aquisições serviriam para exposições itinerantes pelo país e esse acervo podia ser, depois, dado a instituições portuguesas dispersas. Esta era a ideia inicial».

Derrubar o muro

À medida que esse acervo ia crescendo (a aquisição da coleção do antigo presidente do Benfica Jorge de Brito foi um marco importante), ganhava força a ideia de construir uma casa para o expor. Mas o CAM, na ideia de Azeredo, não ia ser uma mera montra, e muito menos um depósito de obras. A ideia, prossegue Feijó, «era também que o CAM pudesse ser o núcleo de um conjunto de iniciativas mais amplas, de apoio à criação artística contemporânea».

Sommer Ribeiro, então diretor do Serviço de Exposições e Museografia, foi encarregado de pensar o edifício e «começou a conceber um projeto no centro que fosse um conjunto de pavilhões modulares», revela Feijó. «No intervalo entre estes pavilhões modulares havia frestas e podia ver-se o jardim Vilalva do outro lado, o verde continuava».

Mas o projeto definitivo, assinado pelo britânico Leslie Martin, não previa nada disso. A frente configurava uma espécie de socalco, mas a traseira era formada por uma empena sem janelas. Uma espécie de muro de cimento com dez metros de altura (mais do dobro da altura do Muro de Berlim, que variava entre 3,5 e 4m) que cortava abruptamente o jardim. Gonçalo Ribeiro Telles foi um dos que se insurgiram contra este intruso na paisagem.

A intervenção de Kengo Kuma «resolve esse impasse», comentou o presidente da fundação. «Estamos justamente em posição de não ter o edifício como forma de bloqueio mas como alguma coisa que pontua um perímetro mais amplo e que vai até ao seu limite. Esperemos que agora o CAM esteja à altura das condições que tem e da sua história, que é uma história extraordinária», rematou Feijó. O custo da obra, como foi revelado por vários meios de comunicação social, ascendeu a 58 milhões de euros.

O_artista no centro

das preocupações

O que podemos esperar deste renovado polo da constelação Gulbenkian? «O CAM foi concebido no fim dos anos 70, para albergar a coleção de arte iniciada em 1958 mas também para apresentar novas de arte e artistas emergentes», afirmou Benjamin Weil, diretor da instituição. «O novo CAM mantém-se fiel a esta missão tentando no entanto responder a novas necessidades dos artistas. Queremos que o novo CAM seja artist-centered, centrado no artista. Mas também queremos ser um interface mais eficaz para um público cada vez mais diverso aproveitar o poder transformador da arte».

A nave principal inaugura com uma exposição de Leonor Antunes, artista residente em Berlim, a quem foi dada carta branca para ocupar o monumental espaço como bem lhe aprovesse. O_resultado é da desigualdade constante dos dias de leonor, uma instalação composta por esculturas suspensas do tecto, que, partindo do trabalho de Sadie Speight (arquiteta e designer que participou no projeto original do CAM, mas raramente é creditada por isso), propõe questionar «a invisibilidade das mulheres na história da arte moderna». O chão de cortiça com elementos geométricos desenhados é ele próprio uma peça, enquanto outras esculturas, formadas por cordas ou correntes, podem sugerir aos mais propensos ao misticismo a evocação de uma carta de tarot: Le Pendu, o enforcado.

No mezanino, Leonor Antunes apresenta uma seleção de obras de artistas mulheres da coleção do CAM. A única presença masculina adivinha-se na parede principal, que Leonor Antunes exigiu que ficasse sem acabamento, para deixar à vista as ‘costuras’ da obra e marcações dos operários.

«A ideia é ter o artista no centro das nossas preocupações», defendeu Benjamin Weil. A nave terá duas exposições por ano, uma das quais no formato de ‘carta branca’ a um artista.

Descendo um piso, a galeria que corre abaixo do mezanino, batizada ‘Espaço Engawa’ (não confundir com o terraço debaixo da nova pala de Kuma), acolhe a exposição O Calígrafo Ocidental. Com curadoria de Leonor Nazaré e Rosely Nakagawa, aborda «a relação de Fernando Lemos com o Japão nos anos 60 do século XX, quando o artista recebeu uma bolsa da Fundação Gulbenkian para estudar caligrafia japonesa».

No ventre do leviatã

É mais abaixo ainda, no piso –2, que encontramos outra novidade absoluta do novo projeto, a Galeria da Coleção, destinada a apresentar obras da coleção do CAM segundo uma lógica temática. A proposta inaugural, com curadoria de Ana Vasconcelos, Helena de Freitas e Leonor Nazaré, intitula-se Linha de Maré e, a pretexto dos 50 anos do 25 de Abril, tem como fio condutor a ideia de revolução.

Este novo espaço, com cerca de 900 metros quadrados, foi integralmente escavado no subsolo. Se à sombra do engawa nos sentimos debaixo da grande onda, aqui estamos verdadeiramente no ventre do grande leviatã. E até lhe podemos ver as entranhas: há uma sala de reservas visitáveis, onde se pode ver algumas das obras emblemáticas da coleção. É certo que o CAM se assume como um espaço com vocação para a experimentação e para assumir riscos, em contraponto ao Museu Gulbenkian. Mas é questionável a opção de manter ‘clássicos’ do século XX – sobretudo Almada e Amadeu –, que poderiam ser âncoras da coleção, no relativo anonimato de umas reservas visitáveis.

Concebido para ser vivido

Em torno das três principais galerias gravitam ainda espaços de menores dimensões:_o Espaço Projeto; a Sala de Som, destinada a obras de arte sonora; a H Box, uma espécie de nave assinada por Didier Fiúza Faustino, que tem viajado por museus e festivais e de todo o mundo e agora aterrou no átrio do CAM, para ver videoarte; e a Sala de Desenho, por onde irão passando rotativamente alguns dos 8 mil desenhos da coleção de obras sobre papel.

A loja surge também renovada – a excelente livraria Almedina faz parte do passado –, bem como a cafetaria/ restaurante. O novo restaurante – A Mesa do CAM – «vai propor uma experiência gastronómica farm to table, recorrendo a produção própria e a uma rede de produtores locais», revela a fundação. Os peixinhos da horta, panados, cup de frutas e sobremesas hipercalóricas do antigo self-service – tão apreciados que era raro não haver longas filas à hora do almoço – serão substituídos por uma ementa que «irá privilegiar a sustentabilidade e a sazonalidade».

O_tiro de partida deste novo capítulo na vida da Fundação Gulbenkian será dado dia 20 de setembro, sexta-feira, com a inauguração oficial. Os dois dias seguintes são de festa, com uma programação intensa de conversas, concertos e performances.

«Além de ser visitado, o CAM foi concebido para ser vivido», disse Ana Botella, diretora-adjunta do CAM. «A festa de abertura é simultaneamente uma celebração e uma amostra do que está para vir. Foi programada para ser uma manifestação da alegria e do poder de partilhar experiências em conjunto».

Entretanto, decorre também a Temporada de Arte Contemporânea Japonesa, com Go Watanabe a apresentar uma obra site-specific. Yasuhiro Morinaga inaugura a Sala de Som, com a instalação The Voice of Inconstant Savage. Por falar nisso, e porque o Japão é um dos países do mundo mais atingidos por sismos, a estrutura do edifício recebeu um reforço anti-sísmico.

O acesso ao novo CAM mantém-se gratuito até 7 de outubro.

jose.c.saraiva@nascerdosol.pt