Se o leitor se recorda do meu último artigo, com o título Silly rentrée, concordará que a minha apreensão era fundamentada. O que sucedeu em Vale dos Judeus é uma réplica previsível e agravada do que aconteceu em Tancos. Há uma decomposição do nosso Estado, que é cada vez mais exíguo e insuficiente. O que ainda resta é mal gerido por políticos que não têm vontade ou coragem e conduzido por funcionários acantonados em corporações, que fogem às suas responsabilidades.
Este pseudo-Estado é cada vez mais inútil, sempre deficitário, muito caro e pago por uma minoria cada vez mais minguada. E é também perigoso, porque o Estado moderno tem o monopólio de competências em matéria de proteção e segurança. E essas competências, se não forem bem exercidas, colocam-nos a todos em risco.
Neste episódio, e mais uma vez, é a Justiça que está em causa. Isto porque, contrariando pareceres técnicos, um juiz determinou que presos perigosos e especializados em fugas fossem reunidos numa cadeia que não é a mais segura do país. Estava, assim, criada a base da sopa de pedra. Faltava só juntar laxismo, preguiça, desmazelo, estupidez, incompetência e, quem sabe, uma pitada de cumplicidade.
Correu tudo mal. A fita do tempo é aterradora: nem sequer tiveram pressa em chamar a PJ! Agora pedem-se responsabilidades e espera-se que haja consequências. Infelizmente, haverá a tentação de confundir este caso com a avaliação de medidas de fundo que tardam. Já se ouve que tudo se resolve com mais guardas, a quem temos de pagar melhor. Ora, há um guarda prisional por cada três presos. Será que a solução passa por ter três guardas por cada preso? Temos o maior número de presos per capitada Europa ocidental e somos um país seguro?
No fundo, existe a convicção generalizada de que a impunidade grassa. A comunicação social entrou em alarido, porque queria a todo o custo que o Governo se precipitasse em explicações. E houve até pessoas prudentes, como Marques Mendes, que não resistiram à vertigem. Mas o caso mais insólito teve como protagonista Clara de Sousa, que tentou até à exaustão obter uma opinião que quebrasse o silêncio de José Miguel Júdice, recusando-se a aceitar que o comentador nada podia dizer por ser pai da ministra da Justiça.
Uma ministra que teve sangue-frio e sentido de Estado. Esperou pelo relatório preliminar antes de anunciar decisões imediatas e procurou não prejudicar a ação da PJ, cujo diretor nacional esteve mais uma vez à altura das circunstâncias. Não se percebe, aliás, porque não foi ainda reconduzido.
Diz-se que são precisas reformas, nesta e outras áreas do Estado. O diagnóstico é unânime, mas falta o consenso. Em vez disso, argumenta-se que são necessários mais funcionários e um reforço de meios. Ou seja, quer-se apagar o fogo lançando notas inexistentes para a fogueira.
Ora, a solução passa por incutir uma cultura de responsabilidade na Administração Pública. Devemos pagar para atrair competências, exigir compromissos e assiduidade e libertar os descontentes e supranumerários do sacrifício que dizem fazer em lugares onde não servem o interesse coletivo.
É que o garantismo a que chegámos na Administração Pública, inexistente no setor privado, é intolerável. Se duvidam, expliquem-me como é que um professor que está a ser julgado por dezenas de crimes de pedofilia pode ser reintegrado e chamado a dar aulas. Pelos vistos, o ministério nada pode fazer para o impedir. A medida óbvia de prevenção limitaria os direitos inatacáveis desse indivíduo, mais importantes, parece, que o interesse.