Aconselham os especialistas em finanças a nunca fazermos compras por impulso. Normalmente é sinónimo de dinheiro mal gasto. E no que toca às leituras? O impulso deve ou não deve ter uma palavra a dizer? Muitas das leituras que fiz por impulso revelaram-se, com efeito, decepcionantes. Mas se a vida estivesse toda programada e não houvesse espaço para a imprevisibilidade também não tinha graça nenhuma.
Coloco a questão porque senti recentemente uma vontade irresistível de ler um livro que não estava para já nos meus planos, Cem Poemas, de Emily Dickinson (ed. Relógio d’Água).
Esta poeta tornou-se-me um nome familiar por causa de ‘The Dangling Conversation’, uma canção de Simon e Garfunkel de 1966 que fala sobre um casal em vias de se separar. Há um tom crepuscular que perpassa toda a melodia, e a alturas tantas surge a quadra:
And you read your Emily Dickinson
And I my Robert Frost
And we note our place with bookmarkers
That measure what we’ve lost.
Quando penso em Emily Dickinson é quase inevitável vir-me esta canção à memória. Mas entretanto passei também a associá-la à voz de Ana Luísa Amaral, que me habituei a ouvir ler e comentar poesia na rádio Antena 2 – e que traduziu, organizou e posfaciou a antologia que agora tenho em mãos.
Amaral chama a atenção no posfácio para as «fracturas na língua» e a «peculiar gramaticalidade» dos poemas de Dickinson. Julgo que será esse desrespeito pelas convenções gramaticais, essa construção idiossincrática das frases, que introduz por vezes uma nota de dissonância nos seus versos.
Mas, mais do que as questões ‘oficinais’, encantaram-me certas ideias que só podiam ter nascido na mente de uma pessoa muito brilhante e muito atormentada. Ideias como «Pressentimento – é essa longa sombra – na Relva – / Indicativa de que sóis se estão a pôr –»; «Não há Fragata como um Livro/ Para levar-nos Terra afora»; «Este pó silencioso foi Damas, Cavalheiros, / Rapazes, Raparigas – / Foi riso, perícia e suspiros»; ou a minha favorita: «Não é preciso ser Quarto – para ser-se Assombrado –».
A peculiaridade de Emily Dickinson não se limitava à subversão das regras da gramática. Ana Luísa Amaral transcreve parte de uma carta que Mabel Loomis Todd (a mulher que viria a editar os seus poemas) endereçou aos pais em 1889: «Tenho de vos contar da personagem de Amherst. É uma senhora a quem chamam o Mito. É irmã do senhor Dickinson, e parece ser o clímax da peculiaridade de toda a família. Não sai de casa há quinze anos, excepto uma vez em que saiu para ir ver uma igreja, à noite e à luz do luar. Quem visitar a mãe e a irmã não a pode ver. Veste-se toda de branco e dizem que a sua mente é absolutamente maravilhosa. Escreve muito bem, mas nunca ninguém a vê».
Numa bela passagem do seu posfácio, a tradutora recorre à imagem do vulcão: «a vida e a obra da poeta foram vulcânicas, brilhando na escuridão do praticamente anonimato a que a votou o seu tempo; com tremores de terra imperceptíveis a outros; com níveis de subterraneidade riquíssimos e escondidos sob um aparente sossego comunitário». Esta senhora vestida de branco que nem de casa saía tinha uma vida interior tão intensa que queimava.
Não é difícil perceber, através destes 100 poemas, que Emily Dickinson via a poesia como um dom só ao dispor dos eleitos e que dava acesso, se não à própria transcendência em vida, pelo menos a êxtases que tornavam tudo o resto irrelevante. E talvez fosse esse o motivo do seu recolhimento. O dom da poesia era como um tesouro e – fosse para se não dissipar, fosse para manter o seu grau de pureza sem mácula – havia que guardá-lo ciosamente.