Numa época cínica como a nossa, o futebol deve ser das poucas emoções que arrancam os homens do seu estupor, e lhes trazem algo mais que um resquício de esperança, e não lhe faltam lendas isso deve-se precisamente a providenciar uma distração que não é para ser apreciada com a mente, não exige muito da nossa racionalidade ou lógica, até as dispensa, preferindo trabalhar com o que carregamos por dentro, intimamente, atinge e revira-nos as entranhas. A irracionalidade é o verdadeiro triunfo do futebol, e uma das últimas hipóteses de elevar ao estatuto de lendas homens, de resto, iguais em tudo ao mais comum dos mortais. Essa é a chave redentora deste desporto, e a este título é bastante elucidativo o caso de ‘Totò’ Schillaci, que até se sagrar a figura do Mundial de 1990, nunca marcara um golo pela seleção italiana, e que depois desse torneio só o viria a fazer uma vez mais. Nem um ano antes de ter apontado os seis golos que fizeram dele o melhor marcador da competição, este avançado siciliano jogava ainda na segunda divisão, e acabou por ser ele o responsável por levar o seu país à terceira posição, num campeonato cuja relevância era ainda maior por a Itália ser a anfitriã da prova. Schilacci nem começou como titular, tendo sido chamado como suplente de Andrea Carnevale quando faltavam 16 minutos para o final da partida frente à Áustria, mas depois de ter marcado, conseguiu impor-se, formando uma memorável dupla atacante com Roberto Baggio. Reforçou a confiança repetindo a proeza nas cinco partidas seguintes, até à meia-final, onde fez um golo à Argentina, o que não impediu a derrota, mas depois ainda marcou outro à Inglaterra, conquistando assim para Itália uma posição no pódio. Volvidas três décadas, o anúncio da sua morte esta quarta-feira, gerou grande comoção para lá da nação transalpina. ‘Totò’ tinha apenas 59 anos, tinha sido internado no início do mês, tendo-lhe sido diagnosticado há mais de dois anos um cancro no cólon.
A sua estreia no Mundial foi apenas o seu segundo jogo pela squadra azuura, e o próprio Schillaci admitiu que já estava feliz apenas por ver o seu nome na lista de 22 jogadores. Não contava fazer mais do que seguir o campeonato a partir do banco. Mas o selecionador, Azeglio Vicini, gostava de ter algumas surpresas do seu lado e tinha orgulho no seu faro enquanto caçador de talentos. Quando todos os olhos estavam postos em Roberto Baggio, Mancini, Vialli, Roberto Donadoni, entre outros, durante os treinos disse a Totò que acreditava nele e que talvez tivesse alguns minutos em campo para lhe provar que não se enganara.
Schillaci entrou em campo com isto em mente, e assim que Gianluca Vialli lhe passou a bola tratou de agradecer ao selecionador. Envergando a camisola de uma nação habituada a uma infinidade de estrelas, de repente emergia algo completamente inesperado: um herói do Sul.
Totò voltaria a Palermo e à casa do seu pai, que viveu sempre no mesmo apartamento na Sicília. Um prédio alto, de apartamentos acanhados, a fachada de um branco gasto pelos anos e com vista para um campo de futebol vermelho e poeirento para crianças, com as balizas já inteiramente despidas da tinta. Trouxe uma grande alegria àquelas ruas que o viram crescer, uma esperança que acabaria por pairar como um sonho, e, com o passar dos anos, Schillaci agarrava-se à memória daqueles dias triunfais como a um consolo, reconhecendo também um certo pesar por não ter ido mais longe seleção na seleção. Acabaria por ser recordado sobretudo por aquelas quatro semanas numa carreira que ainda foi longa.
O seu primeiro clube, o Amat Palermo, fora batizado com o nome da empresa de autocarros local e foi lá que ele viu Messina pela primeira vez. Totò passou sete anos felizes no clube, de 1982 a 1989, e, de repente, mas depois de marcar 23 golos na segunda divisão, foi contratado pela Juventus e, sofrendo do síndroma de impostor, foi conta as suas próprias dúvidas que deu continuidade à sua série de golos, marcando 15 vezes na Série A e 21 vezes em todas as competições.
Sempre que entrava em campo era como um orgulhoso operário que abordava a partida, com a camisola bem dentro dos calções, quando marcava um golo exprimia uma surpresa ainda maior do que qualquer pessoa que estivesse a assistir ao jogo pela televisão, e os festejos loucos em que se lançavam, os de um homem que esbugalhava os olhos e abanava os braços descontroladamente, contagiava todos com a sua euforia . Não sabia como se vai dali até à arrogância, preferindo manifestar a honra de viver algo que superava os sonhos a que se autorizara na infância. Para completar a imagem de herói por acaso, a sua pequena estatura e os movimentos ágeis davam um toque especial aos seus golos. Foi na sequência daquela época na Juventus que foi chamado à seleção nacional, que era para ele a maior das honras. Nunca se deslumbrou, e certa vez, ao ser comparado com Paolo Rossi, lenda da conquista italiana do torneio de 1982, apenas disse: «Ele era um campeão. Eu sou um tipo comum e humilde. Só espero poder continuar a fazer o que tenho feito».
Após o Mundial, Schillaci continuou na Juve e seguiu ainda para a Inter em 1992, antes de se mudar para o Japão para encerrar a carreira, em 1997, depois de quatro temporadas no Júbilo Iwata. Ganhou duas Taças UEFA, na Juventus e no Inter Milão, tendo apontado 188 golos num total de 533 jogos. Ao dar a notícia aos seus leitores, a Gazzetta dello Sport, anunciava: Morreu o «bomber das Noite Mágicas», homenageando aquele jogador que entrava em campo como um representante de todos os miúdos que envelhecem em frente ao televisor num misto de fantasia e desconsolo pelas esperanças que nutriram um dia de se igualarem aos seus heróis. Totò foi longe o suficiente para vingar as esperanças anónimas que levam tantos a essa epopeia dispersa pelos campos assinalados ou improvisados onde as ruas fazem esquina com o que resta de fulgor mitológico neste tempo.
Para Totò o sonho esfumou-se naquele verão. Após deixar os relvados, ficou à mercê dos abusos da programação televisiva que o sangrou até à última gota em reality shows e outros programas igualmente degradantes, que pegam em qualquer elemento nostálgico e o prostituem enquanto concentrar audiências. «Ele deixou uma passagem muito profunda, uma escrita frenética e indelével nas páginas desse romance popular que é o futebol», escreveu aquele jornal italiano, no texto que melhor exprime a razão porque o futebol chega a ser o último refúgio de uma moral de massas, quando o resto da cultura popular se sacrifica a deuses cada vez mais grotescos.